Frade dominicano, escritor, homem do trabalho social, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, conheceu o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva um mês antes da fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Na ocasião, junto com outros sindicalistas, Lula pernoitou na casa dos pais de Frei Betto, em Belo Horizonte. Como havia apenas duas camas disponíveis para os hóspedes inesperados, todos decidiram dormir no tapete da sala. Desde então, a amizade dos dois se fortalece dia a dia. A fé que um tem no outro também. “Lula representa um caminho mundial”, acredita Frei Betto. “Se um outro Brasil for possível, um outro mundo será possível.” No convento dos frades dominicanos em São Paulo, onde vive, Frei Betto recebeu ISTOÉ para falar de sua amizade com o presidente eleito.

ISTOÉ – Qual a diferença entre o Lula que o sr. conheceu em 1980 e o presidente eleito da República?
Frei Betto –
Os princípios e a motivação são os mesmos. A diferença é que Lula amadureceu politicamente, se tornou melhor negociador do que já era, e adquiriu uma fantástica habilidade dentro do campo político.

ISTOÉ – Qual será o estilo Lula de governar?
Frei Betto –
O Lula não é homem de gabinetes nem de burocracia. É homem de mobilidade, de contato com o povo.

ISTOÉ – Qual será o seu papel no próximo governo?
Frei Betto –
Só o Lula pode responder esta pergunta. Minha ambição – sempre brinco com os amigos – é ser capelão do Palácio da Alvorada. Mas gostaria muito de continuar fazendo o que faço há 22 anos. Ser um amigo de confiança. Ajudar do ponto de vista religioso e de reflexão.

ISTOÉ – Na sua opinião, qual o papel do Lula no imaginário popular?
Frei Betto –
A população tem forte empatia com o Lula. Por causa de sua história política, de sua história pessoal e porque ele é uma pessoa carismática. Uma pessoa carismática irradia de dentro para fora as suas qualidades.

ISTOÉ – E os outros presidentes?
Frei Betto –
Tivemos o Getúlio. Vargas era uma figura carismática, embora eu o interprete como pai dos pobres e mãe dos ricos. Agora, o Lula vem no bojo de uma situação muito peculiar. É a primeira curva ascendente das forças progressistas do mundo depois da queda do Muro de Berlim. O Lula não representa só um caminho brasileiro. Representa um caminho mundial. Se um outro Brasil for possível, um outro mundo será possível. Caso contrário, nós teremos um segundo Muro de Berlim, desta vez simbólico, caindo sobre nossas cabeças.
 

ISTOÉ – Com a eleição de Lula, muda a relação do Brasil com Cuba?
Frei Betto –
Cuba tem uma medicina extremamente avançada.
Por outro lado, o Brasil tem tecnologia que interessa a Cuba, principalmente agrícola. A relação vai se estreitar, porque é projeto de Lula criar um grande enlace com os países da América Latina, sem exceção, e reforçar o Mercosul.

ISTOÉ – A expectativa da população aumenta a responsabilidade de Lula?
Frei Betto –
Aumenta e muito. Mas Lula é uma pessoa muito religiosa. Sabe que chegou onde chegou porque Deus deu a ele, primeiro, o milagre da sobrevivência no sertão de Pernambuco. A mãe dele teve 11 filhos, dos quais sobreviveram sete. Segundo, que Deus deu a ele determinados dons, talentos, que ele soube aprimorar. Terceiro, ele permanece com o coração humilde. Ele tem os pés no chão.

ISTOÉ – Essa religiosidade de Lula não é algo que se percebe…
Frei Betto –
Não. O Lula mantém discrição especialmente sobre dois aspectos da vida dele: a religiosidade e a família. Ele tem profunda veneração por Francisco de Assis. E foi o único dos candidatos que, no primeiro turno, reservou todos os domingos para estar com a família.

ISTOÉ – E esses domingos ele passava dentro do apartamento?
Frei Betto –
Não. No sítio Los Fubangos. Que é uma linguiça de terra, onde tem animais e plantas, e recebe os filhos, os netos, os amigos. Ali vai para o fogão de lenha e faz as suas mirabolantes alquimias culinárias. Cozinhava. Jogava bola. Mexia com a horta. Ajudava a Marisa nos cabritos, nos coelhos, nas galinhas, nos patos… Lula não leva serviço para casa. Não se conversa de política dentro da casa dele.

ISTOÉ – O sr. também foi para o fogão? Porque o
sr. também cozinha.
Frei Betto –
Nós competimos muito na cozinha, embora eu tenha o orgulho de ter introduzido o Lula na culinária. Me lembro do Fábio, filho dele, me vendo cozinhar na casa da família e dizendo assim: “mulherzinha, mulherzinha …” Na cabeça do menino, quem ia para a cozinha era a mulher. E, no entanto, o Lula se afeiçoou à culinária. Hoje é um bom cozinheiro, sobretudo quando faz carnes e massas.

ISTOÉ – Em recente artigo, o sr. escreveu que Lula jamais teve empregada doméstica…
Frei Betto –
Nunca tiveram. Todos os serviços dentro da casa são feitos pela família. Isso é um mérito da Marisa. Todos ajudam na cozinha, lavam prato, arrumam a cama, limpam o quarto, o banheiro e tal. Ela exige que todos eles – são todos homens –, lavem as suas cuecas e meias. Agora, quando tem um aniversário, quando a casa está muito cheia, a Marisa chama a Joana, que é uma irmã de criação dela, para ajudar. Às vezes outras pessoas da família também ajudam.

ISTOÉ – É tão difícil colocar homem para trabalhar…
Frei Betto –
Mas a Marisa coloca… Até o Lula.

ISTOÉ – O Lula tem de lavar as meias e as cuecas dele?
Frei Betto –
Tem. Não vou dizer que neste período eleitoral tenha feito isso, mas que fora deste período, no cotidiano, eu vi, eu vi. E várias vezes eu viajei com o Lula, pelo Brasil e pelo Exterior, e ele lavava.

ISTOÉ – O fato de a família Lula não ter empregada doméstica é um modelo a ser seguido?
Frei Betto –
Por um lado, é significativo. Por outro, com este desemprego, espero que as famílias que podem pagar empregadas domésticas não abdiquem delas, desde que tratando-as de acordo
com a lei e com a dignidade.

ISTOÉ – Em 1980, quando Lula dormiu no chão da sala de seus pais, o sr. imaginava que ele um dia seria eleito presidente?
Frei Betto –
Não imaginava mesmo. Aquele era um momento de ditadura militar. Depois de tudo o que presenciei, depois de duas prisões, uma delas de quatro anos, eu, mineiramente, tinha dúvidas de que o Brasil ainda iria caminhar para a democracia.