Numa época em que ser malandro implicava uma certa aura romântica e rebelde, o pernambucano João Francisco dos Santos (1900-1976), o mítico Madame Satã, podia se vangloriar das credenciais de bandido chique. Homossexual assumido em plenos anos 30, ele reinava como camareiro, cozinheiro, transformista, leão-de-chácara e ladrão no submundo da Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro. Ao todo, João Francisco contabilizou 27 anos e oito meses de cadeia, 29 processos, três homicídios e cerca de três mil brigas. Ágil lutador de capoeira e mestre no manuseio da navalha – contam que ele sempre trazia uma presa na sola do sapato –, Madame Satã só recorria ao revólver em situações extremas, a exemplo da vez em que desfechou um tiro num soldado, na esquina da rua do Lavradio com a avenida Mem de Sá. Na famosa entrevista concedida ao histórico tablóide O Pasquim, em 1976, com seu deboche habitual o malandro afirmou ter sido preso injustamente, alegando que a arma disparara de forma casual. “A bala fez o buraco, quem matou foi Deus”, afirmou. Dizia que não brigava, se defendia. Todas as contradições desta figura lendária, a um só tempo violenta, terna, trágica e monstruosa, surgem marcadas por intensas cores no excelente Madame Satã (Brasil, 2002), longa-metragem de estréia do cearense Karim Aïnouz, 36 anos, que entra em cartaz no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte na sexta-feira 8, depois de cumprir carreira de sucesso na mostra paralela do Festival Internacional do Filme de Cannes e de ganhar o prêmio de melhor diretor no Festival de Biarritz e de melhor filme no Festival Internacional de Chicago.

Tão bom quanto o clássico Rainha Diaba (1971), de Antonio Carlos Fontoura, o filme se esquiva da cinebiografia acadêmica. Aïnouz não acompanha o personagem linearmente, do nascimento à morte. Preferiu retratá-lo na complexidade de sua personalidade. Com uma trama concentrada num curto espaço de tempo, o ano de 1932, o drama casa com competência humor e argúcia psicológica ao se deter na juventude de João Francisco, cujo papel coube ao ótimo ator de teatro Lázaro Ramos. A trajetória cerca o momento que antecede sua transformação no explosivo Madame Satã, codinome inspirado no filme Madam Satan, de Cecil B. De Mille, tema da fantasia usada pelo malandro no bloco carnavalesco Caçadores de Veados, em 1942. Alegoria perfeita, porque Madame Satã, que dizia ser filho de Iansã e Ogum e devoto da cantora americana Josephine Baker, era um mitômano sempre afeito a salpicar de purpurina os incríveis lances de sua vida. “O motivo de ter feito uma ficção e não um documentário foi justamente este”, explica Aïnouz. “Ele era um performer que criava personagens para si próprio. Não seria justo tentar contar a sua verdade.”

Amores clandestinos – Tomadas as devidas liberdades, como as de fundir várias figuras reais numa só, o enredo acompanha os passos de Satã pelos becos e bares da Lapa, sempre escoltado por sua “família” singular, a mulher e prostituta Laurita, vivida com galhardia por Marcélia Cartaxo, o submisso e covarde homossexual Tabu (Flávio Bauraqui) e o sedutor michê Renatinho (Fellipe Marques). Na vertiginosa sucessão de pequenos golpes, brigas e amores clandestinos, mostrados em ousadas cenas de sexo entre homens, se entrevê algo daquela sórdida e poética atmosfera dos romances do francês Jean Genet, enfatizada por uma fotografia epidérmica, de textura contrastada.

Negro, pobre e analfabeto, Madame Satã é mostrado como o excluído dos excluídos, mas que nunca se deixa excluir. Numa cena reveladora, ele e seu grupo são barrados ao tentar entrar num clube de elite. Sem se fazer de rogado, com socos e golpes de capoeira, Satã derruba uma legião de porteiros numa luta felina. “Uma das questões que me atraíram na biografia de Madame Satã foi o lado político”, diz Aïnouz. “Ele tinha uma paixão impressionante pela vida, uma insistência em viver e ser feliz. Ao mesmo tempo, eu queria entender a genealogia do malandro carioca no momento posterior à abolição da escravatura e como se começou a formar uma identidade brasileira.”

Ao todo, Aïnouz pesquisou 29 livros sobre o personagem e sobre temas relacionados à marginalidade, ao homossexualismo e à vida boêmia de então. Em vez de uma ostensiva reconstituição de época, o filme de R$ 2,3 milhões exibe um convincente microcosmo de hábitos, gírias e códigos próprios. “Fiz uma opção pelo detalhe e por uma história da vida privada”, conta Aïnouz. Especialmente feliz e engraçada é a maneira de falar de Madame Satã, que mistura erros de português a uma tentativa de ser empolado, sempre referindo-se a si próprio como “a minha pessoa”.

Tal detalhismo não é esquecido na trilha sonora, recheada de clássicos da velha guarda, entre eles Noite cheia de estrelas, conhecido na voz de Vicente Celestino, Fita amarela e Mulato bamba, ambos de Noel Rosa. Especula-se que esta última canção seja inspirada em Madame Satã. “A vida é melhor quando a gente canta, rebola e rodopia”, filosofa o malandro num show de cabaré, caracterizado como um pré-Ney Matogrosso. Na verdade, seu sonho era brilhar num enredo antropofágico das Mil e uma noites, sobrevoando, assim, nas palavras do personagem, o mundo devasso e fedorento em que vivia.

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