A cara da fome é feia e assustadora.
Mas não intimidou Luiz Inácio Lula da Silva. Afinal, ele será o único presidente brasileiro que sentiu na carne a dor e a humilhação da miséria. Derrotou-a na infância, quando se alimentava apenas com um mingau de farinha e café pela manhã e só comia carne quando os irmãos mais velhos conseguiam caçar preá ou rolinha no sertão pernambucano para fazer a “mistura”.

Deixar de ser um prisioneiro da miséria foi uma proeza. Chegar onde chegou foi quase um milagre. Como diz a música de Caetano Veloso: “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome.” Eleito, decretou sua segunda guerra contra a miséria. Suas palavras ecoaram pelo mundo: “Se ao final do meu mandato cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida.” O anúncio teve reação imediata da Organização das Nações Unidas (ONU), do Banco Mundial (Bird) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), principais instituições multilaterais de financiamento, ao lado do FMI. A aposta destes organismos internacionais em Lula é alta: a de que ele poderá protagonizar um modelo mundial no combate à fome. Este é o recado enviado do Exterior ao general petista.

O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, ligou para Lula na quinta-feira 31, dizendo que vai colaborar com o projeto para aplacar a desnutrição. O relator da ONU para a Fome, Jean Ziegler, vai convidar Lula para uma reunião, em dezembro, onde combinará estratégias contra a miséria.

Autor de um relatório sobre a situação da fome no Brasil, ele aconselha Lula a aumentar o salário mínimo e acelerar a reforma agrária. A FAO, organismo da ONU responsável pelo combate à fome, vai dar seu valioso aval para que o governo Lula consiga recursos. O presidente do Bird, James Wolfensohn, e do BID, Enrique Iglesias, enviaram mensagens de apoio ao petista. São sinais mais do que promissores. Só o
Bird tem um fundo de empréstimos de US$ 5,3 bilhões. “Em nome do Banco Mundial, gostaria de expressar nosso desejo de trabalhar com Lula e sua equipe em nossa agenda comum de combate à pobreza e melhoria das condições de vida dos brasileiros”, afirmou Wolfensohn. O empresário Oded Grajew, interlocutor do petista com empresários e entidades internacionais, conta como está a expectativa lá fora com relação ao governo do PT: “Os organismos internacionais envolvidos no combate à fome querem parcerias com governos e a aposta agora é de que o governo Lula possa ser um modelo mundial na guerra à miséria.”

O plano de Lula chama-se Fome Zero: Uma Proposta de Política de Segurança Alimentar para o Brasil, com estratégias de longo e curto prazo. O público-alvo para os quatro anos de mandato são 9,3 milhões de famílias (44 milhões de pessoas) com renda mensal de R$ 180. Representa um terço da população brasileira. Em 2003, a meta é alimentar dois milhões de famílias. Os recursos virão do Fundo de Combate à Pobreza, com uma verba de R$ 4,5 bilhões para o próximo ano. Os petistas calculam que contarão com mais R$ 3 bilhões: é a soma de 0,08% da CPMF (Contribuição sobre Movimentação Financeira), 5% do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e uma alíquota ainda não definida do Imposto sobre Grandes Fortunas, além de contribuições voluntárias. A novidade no Fome Zero são os cupons de alimentação, inspirados no modelo americano implantado na década de 30 em meio à Grande Depressão (leia quadro ao lado). Nos Estados Unidos, o plano Food Stamps beneficia 18 milhões de pessoas por mês.

O economista José Graziano da Silva, assessor de Lula, explica que os cupons serão representados por cartões magnéticos. Só poderão ser utilizados na compra de alimentos da cesta básica em locais credenciados. Cada família terá entre R$ 80 e R$ 150 mensais, dependendo do número de filhos. Nos locais mais inóspitos serão distribuídos tíquetes com cores diferenciadas a cada mês, para evitar que se transformem numa espécie de moeda paralela. “A vantagem dos cupons de alimentação é que combatem a miséria e dinamizam a economia, incluindo as pessoas no mercado interno”, observou Graziano. Mas a alma da guerra à fome declarada por Lula é a participação da sociedade. Na próxima semana, Lula vai liderar a quarta reunião com representantes de sindicatos, igrejas, entidades, ONGs e empresários – uma espécie de embrião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Serão chamados à mobilização total.

“A novidade que vem do brejo da cruz é a criançada se alimentar de luz”
(Chico Buarque)

Aqueles que fazem uma ou menos refeição por dia não querem só comida. Trabalho e moradia são tão importantes quanto ingerir o mínimo de calorias para sobreviver. A ex-sem-terra Manoela Rodrigues, 36 anos, vive no albergue Reciclázaro, no centro de São Paulo, junto com a filha, Mônica, de cinco meses. Manoela abandonou um acampamento no Rio porque não havia comida. Seu sonho é ter uma casinha, pôr a menina numa creche e sair para trabalhar. Enquanto o pesadelo não acaba, ela consegue um pouco mais para a filha nas igrejas que fazem doação de alimentos. “O que preenche e valoriza a pessoa é uma moradia, um trabalho. Pra mim já tava bom, só assim minha filha crescerá com dignidade”, diz. Na favela do Sapo, zona norte de São Paulo, 300 famílias se espremem em barracos de madeira. Uns vivem de bicos, muitos de caridade, o restante na base do “só Deus sabe”. A viúva Guiomar Pinheiro, 51 anos, baiana, é faxineira. Sobrevive com oito filhos e quatro netos dentro de um barraco. “Ontem não jantei, hoje não almocei. A gente não aguenta mais viver só de arroz. Seria muito bom que Lula não deixasse a gente morrer à míngua.” A vizinha Rosemar Sabino, 51 anos, mineira, também está desempregada. Sem marido, ela mora com cinco filhos e 15 netos. “Com exceção das crianças, aqui só se come uma vez por dia. Carne eu só vejo quando passo em frente ao açougue”, lamenta. Marina Oliveira, 35 anos, tira do lixo uns trocados para manter nove filhos. O décimo não sobreviveu. “A gente consegue comer porque o povo dá. O leite a gente pega na creche e quando tudo acaba o jeito é perder a vergonha e pedir. Comida é importante, mas eu prefiro emprego e carteira assinada”, diz ela, que mora de favor num barraco de uma amiga. Mas Marina não perde a mania de ter fé na vida e, agora, no novo governo.

“A gente não quer só comida.
A gente quer comida, diversão e arte (…)
A gente não quer só comer, a gente quer prazer para aliviar a dor”
(Arnaldo Antunes, Marcelo Frome
r e Sérgio Britto)

A guerra de Lula a favor das marinas e manoelas terá duas frentes. Uma, de longo prazo, são ações estruturais que promovam o crescimento da renda, como o aumento do salário mínimo, a geração de empregos e a aceleração da reforma agrária. O MST prepara um documento para ser entregue a Lula mostrando que há 100 mil famílias acampadas necessitando de cestas básicas. “Podemos fazer parceria com o governo Lula na guerra contra a fome. Temos terra, mão-de-obra, cooperativas produtivas e muita disposição para dialogar. Não vamos tratar o governo Lula como tratamos o governo FHC”, afirmou João Paulo Rodrigues, dirigente nacional do movimento. Os empresários também demonstram ânimo. Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos de Responsabilidade Social, que reúne 660 empresas representando 30% do PIB, afirma que Lula contará com o apoio de atores poderosos, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban).

O Nordeste será prioridade nos primeiros meses. A região abriga 50% da população abaixo da linha de pobreza. Gente como Francisca Aureni Laurentino da Silva, 38 anos, mãe de oito filhos, que vive num barraco na periferia de Fortaleza. O marido, pedreiro, ganha R$ 400 por mês. Dá para comprar feijão e arroz. Ela fugiu da seca para morar numa área de risco. Quando chove, só sobrevive com a ajuda dos amigos e vizinhos. É a solidariedade. Mas para acabar com a miséria é preciso algo mais.

A fome tem que ter raiva pra interromper.
A raiva e a fome de interromper
A raiva e a fome é coisa dos home
(João Bosco e Aldir Blanc)

A inspiração

Depois do crash da Bolsa de Nova York, em 1929, um quarto da força de trabalho americana estava sem emprego. Em 1933, um ano depois de chegar à Presidência dos EUA, Franklin Roosevelt (1882-1945) implantou o New Deal, um conjunto de reformas sociais para conter a crise. Os mais necessitados passaram a receber um cupom para trocar por comida. A mudança de rumo nos EUA dos anos 30 só foi possível graças à união de diferentes setores da sociedade – empresários, agricultores, trabalhadores – em torno de um projeto comum. O que Roosevelt fez há 70 anos pode ser comparado ao pacto social que Lula quer pôr em prática no Brasil.

“ Dá vergonha ”

 

“A fome te destrói moralmente e você tem muita vergonha, principalmente quando temos família e não temos o que colocar na mesa para os nossos filhos. Isso acaba com você como pessoa. Eu, além de ter passado muita fome, meus filhos passaram comigo. Por isso, para mim, criança e combate à fome têm uma relação muito direta. Enquanto passava fome, eu aguentava. O que eu não suportava era ver os meninos, meus filhos Nilcéa e Pedro Paulo, passarem fome. Não ter um leite para botar no mingau deles. Tinha dia que o único alimento que nós tínhamos era pão. Comíamos sopa de pão. Muitas vezes dormi com fome. Uma criança gritando com fome na sua cabeça, e você também com fome, você faz bobagem. Meu marido na época (Nilton da Silva), um ex-menino de rua, um alcoólatra, disse uma vez: nunca mexi em nada de ninguém, mas acho que o dia em que eu vir meus filhos com fome sou capaz de fazer qualquer coisa. Aquilo mexeu tanto comigo que eu tinha um compromisso com meus filhos: no dia em que não tinha nada em casa, quando o pai chegasse, todos diziam que tinham comido. E arrumávamos alguma coisa pra ele comer. Graças a Deus, nenhum de nós precisou tirar nada de ninguém e vencemos os obstáculos.”

Benedita da Silva, governadora do Rio de Janeiro

 

O sonho de Betinho

"A fome é exclusão. Da terra, do emprego, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma espécie de degredo moderno ou de exílio.” Se estivesse vivo, o autor dessa frase provavelmente se sentiria recompensado. Quatro anos antes de morrer, em 1993, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, liderou um movimento contra a exclusão, que completa uma década este ano. A Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida nasceu da utopia de erradicar a fome no Brasil. O sonho de Betinho não se realizou, mas desde a última segunda-feira tornou-se mais factível com o anúncio do projeto Fome Zero.

Ao anunciá-lo, Lula começa a reescrever uma história interrompida no ano em que nascia a Ação da Cidadania. Itamar Franco tinha acabado de assumir o governo quando recebeu das mãos de Lula uma proposta de política nacional de segurança alimentar elaborada pelo PT. Itamar criou o Conselho de Segurança Alimentar e Lula sugeriu Betinho para presidi-lo. O convite foi recusado porque a Ação da Cidadania já era trabalho demais para Betinho. Hemofílico, contraiu o vírus da Aids em transfusão de sangue. Coube então ao bispo dom Mauro Morelli, de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, presidir o órgão.

Enquanto Betinho iniciava sua cruzada, o governo anunciava os primeiros dados estatísticos sobre indigência. Eram 32 milhões de famintos em 1993, constatava o Ipea. No segundo Natal Sem Fome, 820 mil cestas básicas foram arrecadadas, beneficiando 410 mil famílias. O volume crescia ano a ano até que, em 1997, Betinho morreu. Seu projeto por pouco não foi engavetado, mas o filho mais velho, Daniel de Souza, e colaboradores, como Maurício de Andrade, decidiram não sepultar a ONG com seu fundador. No ano passado, foram 3,5 mil toneladas de alimentos arrecadados. “A cesta dura apenas uma semana, o que é irrisório. O importante agora é que a fome esteja em discussão e a sociedade reconheça que o problema é gravíssimo”, analisa Daniel, que espera discutir seu projeto com Lula. É com a autoridade de quem lidera o Natal Sem Fome há dez anos que seus gestores apresentaram o projeto Brasil Sem Fome aos candidatos. Com a ajuda da Embrapa, concluiu-se que o feijão é a leguminosa mais consumida na América Latina. Seu valor protéico varia de 20% a 25%. Cerca 50 milhões de brasileiros não comem feijão diariamente. O projeto sustenta que, com cerca de R$ 860 milhões anuais, seria possível, em um ano, acabar com a fome emergencial.

A trincheira do rio

A guerra contra a fome tem há sete meses uma trincheira no Rio de Janeiro, aberta por outra liderança petista que já não teve o que comer. Criada na favela Chapéu Mangueira, Benedita da Silva, 60 anos, passou fome na infância e viveu o drama de não ter como alimentar os filhos. A governadora montou uma rede de programas de combate à fome no Estado que pode servir de inspiração para o futuro governo. “Sou um soldado do novo presidente na guerra contra o pior dos flagelos. Ele passou fome como eu”, lembra a assistente social Benedita a ISTOÉ.

No Rio, ela criou uma Coordenadoria de Desenvolvimento Humano para controlar as sete secretarias com programas sociais – algo parecido com a Secretaria de Emergência Social a ser criada por Lula para implementar o programa Fome Zero. “A hora é essa”, afirma Ricardo Henriques, chefe da Coordenadoria. Um mapeamento da fome no Rio mostrou que o Estado tem 8% de miseráveis, ou 1,2 milhão de pessoas. Para “zerar a desnutrição”, Benedita criou programas como o Crescer, onde cada família recebe, por filho desnutrido, um vale-nutrição mensal de R$ 25 para trocar por leite em pó e óleo de soja. Em Queimados, São João do Meriti e Nilópolis, municípios pobres da Baixada Fluminense, são beneficiadas seis mil crianças subnutridas.

Moradora de Queimados, Ana Paula Miguel, 24 anos, não sabe da guerra de Lula e Bené, mas conhece o problema de perto. Ana, desempregada, e o marido Alex, camelô, travam uma luta diária para colocar comida no prato dos filhos Camila, oito anos, e Thiago, dois. A luta é desigual: R$ 500 reais mensais para fazer o milagre da multiplicação do pão, do arroz e, quando dá, do frango. Thigo pesa pouco mais de 11 quilos, quando deveria ter no mínimo doze e meio. Está com desnutrição grave, como outras 70 mil crianças de até cinco anos na Baixada. Na última quinta-feira 31, o menino passou a receber o vale-nutrição. Além de criar o Crescer, a governadora ampliou outros programas herdados do governo Garotinho, como o Leite Saúde, que nutre com leite em pó 100 mil crianças por mês, e o Sopa da Cidadania, que alimenta 70 mil pessoas, duas vezes por semana.