Felipão diz que o que pode mudar o Brasil é o caráter de um governante e de quem estiver ao seu redor. Como no futebol, ninguém faz nada sozinho

O entardecer de primavera em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, ganhou um ilustre admirador. Os habitantes do lugar já se acostumaram a ver seu mais famoso vizinho, Luiz Felipe Scolari, o Felipão, caminhar pelas tranquilas alamedas da cidade ao lado da esposa, Olga. O comandante do penta está vivendo um momento atípico na vida. O tempo com a família, antes escasso, agora é aproveitado em passeios, viagens ou na simples contemplação dos chutes do filho caçula, Fabrício, dez anos. Mas os dias de sossego parecem contados.

Felipão reuniu-se com dirigentes da Federação Mexicana de Futebol. A cartolagem saiu da conversa animada com os métodos de trabalho apresentados pelo técnico, mas achou salgadíssimo o pedido do técnico: cerca de US$ 2 milhões por ano. O acerto seria um alívio para os treinadores que sonham ocupar o posto deixado após a vitoriosa campanha na Copa. Alguns deles consideram Felipão um fantasma, pronto a assombrá-los no primeiro fracasso. “Quem tiver receio de assumir o cargo pensando que eu vou tomar o lugar dele é um cagão”, dispara Felipão. O técnico recebeu ISTOÉ na sala de espera de seu confortável apartamento em Canoas, onde se destaca a imponente fachada, em mármore marrom. No dia da entrevista, a caminhada diária com Dona Olga foi cancelada. A conversa, programada para consumir uma hora, durou quase uma tarde inteira.

ISTOÉ – Desde a conquista do penta o sr. não tem um emprego oficial. Como tem sido a sua vida?
Felipão

Para sair tranquilo, tenho que organizar locais e horários dos meus compromissos. As solicitações são muito maiores do que as dos tempos de técnico. Hoje, tenho mais tempo para ficar com a família, mas também gasto mais tempo para cumprir compromissos sociais. São convites para participar de homenagens, palestras, o lançamento do livro (Felipão, a alma do penta, sobre a Copa 2002, escrito pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann).

ISTOÉ – O que o sr. tem feito?
Felipão

Tenho passado os finais de semana em casa. A gente faz uma pizza, eu preparo o meu arroz à carreteiro, que a turma adora. Assisto a filmes do Gene Hackman – o pessoal diz que é meu clone. O Fabrício me obriga a ver uns desenhos esquisitos, que têm uns bichos com uns olhões grandes. Tenho ido muito à serra gaúcha também: Caxias, Garibaldi, Bento Gonçalves. Ali jantamos bem, tomamos bons vinhos, batemos bons papos. Aproveito a estadia para ver meus imóveis em Caxias. Visito com frequência Gramado e Canela. Na minha opinião, são os locais mais bonitos do Brasil. Em Gramado, gosto de ver o Fabrício jogar bola com os amigos.

ISTOÉ – Nessas horas sai de cena o pai e entra o técnico?
Felipão

 Nem me meto. Nunca dei uma chuteira, um calção ou influenciei meu filho a jogar bola. Não falo nada. O que ele gosta mesmo é de ser goleiro. Aí, eu brinco: “O, frangueiro.”
 

ISTOÉ – O sr. tem propostas dos mexicanos e conversa com os europeus. Seleção Brasileira nunca mais?
Felipão

Meu envolvimento com a Seleção foi até a Copa. Agora, dificilmente teria um caminho tranquilo nas Eliminatórias. Prefiro ficar de fora. Se daqui a quatro, cinco, oito anos, eu tiver a oportunidade de voltar, ótimo. Se não, tudo bem.

ISTOÉ – A CBF ainda não definiu quem será o seu substituto. Muitos técnicos temem que, ao primeiro tropeço, o sr. volte…
Felipão

(Irritado) Quem se intimida com isso tem é que treinar o Flor de Alá Futebol Clube. Espera um pouquinho: treinador cagão não pode dirigir porra nenhuma. Ué, ele não tem confiança no trabalho dele? Quando entrei naquela fria ninguém disse porra nenhuma. Agora, aparece gente para falar bobagem. Se o outro técnico for melhor, tenho que correr atrás do prejuízo para provar que sou melhor do que ele.

ISTOÉ – O sr. não acha que os técnicos brasileiros, hoje, querem passar a sensação de que são eles que ganham ou perdem os jogos, e não os jogadores? Antes, o Santos era o do Pelé, o Flamengo era o do Zico e o Corinthians era o do Sócrates. Agora, só ouvimos Palmeiras do Luxemburgo, Grêmio do Felipão, São Paulo do Telê…
Felipão

 Mas não são os técnicos que estão pedindo isso, não! Eu, por exemplo, sou o pior marqueteiro possível. Quem é o cara que tem mais bronca com a imprensa do que eu? A questão tem que ser vista de outro ângulo. Antes, o aspecto tático não era tão evoluído como agora. Hoje, tu pegas equipes médias que brigam de ponta a ponta pelo título de qualquer torneio. Usam a parte física, que evoluiu 1.000%, para se nivelar a clubes grandes. Aí, o papel do treinador foi valorizado. Quando as coisas eram decididas apenas pelo talento individual do jogador, o técnico não aparecia. Só os craques brilhavam. Isso mudou.

ISTOÉ – Mas, de alguma forma, vocês não contribuíram para o aparecimento da figura do supertécnico?
Felipão

É, de fato alguns acham que é bonito, um espetáculo ser super-star, maravilhoso, fantástico! Aí passam a imagem para todo mundo. Não quero falar de ninguém, mas alguns acham que são mais bonitos do que o mundo. Mas isso é assim em todas as profissões.

ISTOÉ – E os supersalários?
Felipão

Para técnico ruim tem que pagar salário ruim. Quem dá retorno tem que ganhar bem. Se eu for um executivo de empresa e der retorno para ela, tenho que ganhar bem. Se revelo jogador, dou título ao clube, consigo mais associados, tenho que ganhar bem. O meu salário não é baixo. Mas é muito pouco em comparação a tudo que ofereço. Quem quiser é só examinar meu currículo.

ISTOÉ – Seu rendimento mensal caiu muito sem o dinheiro da CBF no final do mês?
Felipão

Não estou passando fome (risos). Está na mesma base de antes.

ISTOÉ – É verdade que pede R$ 70 mil por palestra?
Felipão

É um pouco menos, mas cobro bem. Faço uma média de cinco, seis palestras por mês e ganho mais ou menos o que recebia no Cruzeiro, antes de ir para a Seleção (Felipão, segundo comentários, recebia R$ 300 mil mensais no clube mineiro). Também fiz três comerciais.

ISTOÉ – O público se divertiu com esses anúncios. O Felipão daria um bom ator?
Felipão

Foi mérito dos caras. Eu só interpretei o papel. Achei estranho, gozado. Sempre acho que falta alguma coisa. Fico me cobrando. Poderia ter um sorriso melhor, alguma coisa. Mas as pessoas que me vêem na rua dizem: “Ah, que legal!” Elas gostam. Esse da Philips tem uma foto tão bem-feita que quando tu passas parece que eu estou te seguindo com os olhos. Até uma senhora amiga minha passou por ele e disse “Oi, Felipão.” Cumprimentou o anúncio. Eu também não sou chato. Geralmente tem um camarim, não sei o quê. Eu não preciso de porra nenhuma. É só ajeitar a minha cara, que é feia mesmo, e vamos embora.

ISTOÉ – O sr. tinha a fama de ser uma pessoa difícil. Hoje, passa uma imagem simpática, apreciada até pelas crianças. O que mudou?
Felipão

Fui procurar auxílio. Não ia ficar brigando com todo mundo sempre. A Regina (Brandão, psicóloga que trabalha com Felipão desde 1998, quando o técnico estava no Palmeiras) e a minha esposa foram me ajudando. A Regina fez um teste psicológico para me dizer como poderia agir, o que fazer, que coisas poderia melhorar. Recebi também conselhos de alguns amigos que trabalham em jornais, televisão e principalmente do Rodrigo (Paiva, assessor de imprensa da CBF). Eles me ensinaram a lidar com a mídia. Fui à Copa preparado e organizado. Como reflexo dessa mudança, a Seleção Brasileira acabou sendo a mais acessível do Mundial. Hotel aberto, entrevista, horário para atender à imprensa. Eu não podia continuar sendo o mesmo cara que jogou nos anos 70. Evoluí.

ISTOÉ – O que faz com o dinheiro que ganha?
Felipão

Graças a Deus não posso reclamar. Tenho uns apart-hotéis, edifícios, lojas… Cuido também da construtora da família da Olga. Mas quem vai levar vantagem com o que ganhei são os meus filhos. Sempre fiz meu patrimônio pensando no futuro. Quando assinei um contrato com o Caxias, na década de 70, comprei um apartamento. A prestação consumia todo o meu salário. Então, tive que ralar como professor de educação física em colégio particular, além de juntar os bichos que ganhava no time, para sobreviver.

ISTOÉ – O que o sr. espera desse Brasil que sairá das urnas em 27 de outubro?
Felipão

Propaganda política é uma coisa, prática é outra. Eu só ouço falar “ah, vamos fazer isso, aquilo” e não vejo muita coisa sendo feita. Outro dia visitei uma entidade de drogados que ajudo aqui em Canoas. Saí de lá revoltado. Às vezes acho que não vale a pena votar. Falam, falam, falam e ninguém move uma palha. Poderia ser fácil ajudar as pessoas. Falo isso por mim. Cumpro todas as minhas obrigações, ajudo diversas entidades e só melhoro de vida. Vejo tantas prefeituras e governos que poderiam ajudar e não mexem uma palha. Por isso, como sou obrigado, voto nos meus amigos. Até porque posso cobrá-los depois, publicamente. Não voto em partido. Essa história de que o partido tal tem um programa… Não me venha com esse papo, não! Às vezes, a fidelidade ao programa do partido faz o sujeito aprovar uma besteira. É por isso que eu voto na pessoa. Porque, se ela me decepcionar, posso cobrar.

ISTOÉ – O sr. pensou em anular o voto?
Felipão

Às vezes a gente pensa. Mas também se tu deixas de votar, de acreditar, de passar confiança a uma pessoa, pode ser que tenha um, dois, três, cinco, dez bons que queiram fazer algo de bom. Eu confio nos meus amigos. Mas muitas vezes acho que eles estão rodeados de pessoas que não merecem. Afinal, o governo não vai ser uma pessoa só. É preciso ter um grupo junto com ele. Vai dizer que na Seleção fui eu o vencedor? De jeito nenhum! A gente fazia um grande grupo. Governo é isso. Tem um que é o eleito, mas ao redor dele é necessário ter pessoas que queiram ajudar.
 

ISTOÉ – Por que o sr. não declara quais são seus candidatos?
Felipão

Para que evitem falar que o técnico da Seleção, que nem sou mais, apóia esse ou aquele. O único que recebeu minha ajuda foi o Zezé (Perrella, presidente do Cruzeiro e candidato derrotado ao Senado por Minas Gerais). Foi meu presidente, trabalhei com ele. Gosto dele. Foi correto comigo, sério. Eu disse que, se estivesse em Minas, meu voto seria dele.

ISTOÉ – Como o sr. vê uma eventual vitória da esquerda, representada por Lula?
Felipão

Para mim, não interessa quem seja o presidente, desde que ele queira melhorar a situação do País. Agora, muitas vezes, essa visão de esquerda, que obriga quem tem a dar para quem não tem, não é correta. Dar de mão beijada? Isso não aceito! Porque, quando eu não tinha nada, fiquei horas trabalhando como professor para conseguir as coisas que queria. Tem muito vagabundo por aí ganhando dinheiro de graça. Quero uma coisa igual, condições semelhantes para todos. Mas, a partir daí, tu tens que provar que é bom. Como o caso dos sem-terra. Tudo bem, vamos dar terra para o pessoal. Mas não ao lado da cidade, onde tem ônibus, metrô. Tem que dar lá no interior. Agora, querer terra ao lado de Porto Alegre, eu também quero.

ISTOÉ – Então, a chegada do PT à Presidência causa preocupação?
Felipão

Não me preocupa em nada. Todo mundo está vendo as dificuldades do Brasil. Então, sigla não vai mudar porcaria nenhuma. O que vai mudar é a personalidade, o caráter do governo e de quem estiver ao seu redor. O Lula não faz nada sozinho. É a mesma coisa que o técnico da Seleção.

ISTOÉ – Depois da Copa, o sr. e o Ronaldinho tiveram alguns desencontros. Teve a história do mimado. A última é a de que Héctor Cupper, técnico da Inter de Milão, onde ele jogava, o teria aconselhado a não levá-lo para a Copa. É verdade?
Felipão

É mentira (irritado)! O Cupper jamais disse isso. Isso foi preparado pelos empresários do Ronaldo para justificar uma saída e me envolver na situação. Ele gosta do jogador Ronaldo. Apenas me disse que, para ele jogar na Seleção, teria que trabalhar mais do que na Inter. O problema era financeiro, de contrato. Na verdade, o que existia por trás disso era um negócio.

ISTOÉ – O sr. carregou um peso nos ombros ao não levar Romário para a Copa…
Felipão

Não deixei de levar Romário para a Copa por causa de noitada com aeromoça no Uruguai. Me decepcionei quando ele pediu dispensa da Copa América alegando que iria fazer uma cirurgia no olho e, dias depois, apareceu jogando amistosos pelo Vasco. Até entendo os motivos, já que os jogos teriam uma cota com ele e outra sem a sua participação. Mas o problema foi a quebra de confiança num momento delicado para mim. Estava chegando e, por pouco, não larguei ali mesmo, depois do fracasso no torneio. Disseram até que o Ricardo Teixeira me pressionou para convocá-lo após um almoço que teve com ele, no Rio. Nada disso. Ricardo foi ouvi-lo porque o respeita e é grato pelo que ele fez na Copa de 1994. Mas, segundo me disse, não prometeu nada ao Romário. E posso atestar que ele me deixou à vontade para fazer o que eu achava melhor. E assim foi feito. Eu sabia que, depois disso, toda a responsabilidade por um eventual fracasso da Seleção seria minha.

ISTOÉ – Após a Copa, esta revista definiu o sr. como um administrador de emoções. É o que o sr. faz melhor?
Felipão

Minhas equipes cumprem o combinado. Ouvi um técnico dizer que tinha 33 jogadas ensaiadas. Como ele levava o jogador, no campo, a identificar e realizar a jogada 33? Tem que ter duas, três jogadas bem feitas e pronto. Eu me daria nota sete em tática e, como motivador, 8 ou 8,5.