O livro Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, tem uma epígrafe que diz: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Em determinado ponto do romance, Saramago fala da “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Comunista de carteirinha e de velha cepa – ele aderiu ao Partido Comunista Português antes de se tornar escritor, em 1947 –, Saramago sempre defendeu o regime de Cuba e seu comandante-em-chefe, Fidel Castro, de quem era amigo. Na segunda-feira 14,
o escritor finalmente abriu os olhos para uma realidade que ele sempre preferiu enxergar sob lentes opacas: num pequeno artigo para o jornal espanhol El Pais, Saramago desanca o regime castrista pela condenação de 75 dissidentes, muitos a penas de 20 a 25 anos de prisão, e pelo julgamento e fuzilamento sumários de três cubanos que tentaram sequestrar uma balsa para fugir para Miami. “De agora em diante, Cuba seguirá seu caminho e eu ficarei. Dissentir é um direito que se encontra inscrito com tinta invisível em todas as declarações de direitos humanos passadas, presentes e futuras. Dissentir é um ato irrenunciável de consciência. Pode ser que a dissidência conduza à traição, mas isso sempre tem que ser demonstrado com provas irrefutáveis”, escreve o português. “Não creio que se haja atuado sem deixar lugar a dúvidas
no julgamento recente em que foram condenados a penas desproporcionadas os dissidentes cubanos. (…) Agora, chegam os fuzilamentos. Sequestrar um barco ou avião é um crime severamente punível em qualquer país do mundo, mas não se condena à morte os sequestradores, sobretudo tendo em conta que não houve vítimas. Cuba não ganhou nenhuma batalha heróica fuzilando esses três homens, mas perdeu minha confiança, arrasou minhas esperanças e frustrou minhas ilusões. Até aqui cheguei”, lamentou o escritor.

Na mais violenta onda de repressão das últimas décadas, o governo cubano condenou há dez dias 75 dissidentes – intelectuais, jornalistas e líderes de oposição – a penas que variam de seis a 28 anos de prisão. As sentenças maiores foram dadas a organizadores do Projeto Varela, que em 2002 reuniu mais de dez mil assinaturas num pedido de reformas democráticas em Cuba. Embora o líder mais visível do projeto, Oswaldo Paya, não tenha sido preso, a organização foi desfeita e um de seus dirigentes, Héctor Palacios, condenado a 25 anos. A lista de sentenciados inclui também o poeta, escritor e jornalista Raúl Rivero e a economista Martha Beatriz Roque, ambos sentenciados a 20 anos de cárcere, e Marcelo López, da Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN), que pegou 15 anos. Segundo o governo cubano, os opositores tinham ligações com James Cason, chefe da Seção de Interesses Americanos em Cuba (Sina), que assumiu em outubro e, seguindo a orientação do governo George W. Bush, adotou uma política mais dura em relação a Cuba. Na sexta-feira 11, depois de um julgamento sumário por um tribunal especial de Havana, três sequestradores cubanos de uma balsa com 50 pessoas a bordo no dia 2 de abril foram condenados à morte e fuzilados. Outros quatro acusados pegaram prisão perpétua e um outro, 30 anos de cárcere. Os sequestradores tentavam rumar para os EUA e pedir asilo político. “O rito sumário está na legislação há anos e os acusados tiveram direito a advogados e julgamento público”, disse Jorge Lezcano, embaixador de Cuba no Brasil.

Violações de direitos humanos à parte, a questão que se coloca é: qual a mensagem que Havana está tentando enviar a Washington? “Castro ficou impressionado com a disposição de Bush no Iraque. Viu o que aconteceu a Saddam Hussein e acha que será o próximo da lista. E acredita que os EUA não serão detidos por leis e instituições internacionais numa eventual investida contra Cuba. Essa onda repressiva, na verdade, foi um erro estratégico dentro deste cenário, que me parece paranóico. Com isso, os cubanos acabaram perdendo apoio internacional, principalmente da Europa e do Canadá, em que se sustentam para conter qualquer esforço mais agressivo americano”, diz o diplomata Wayne Smith.

Já na opinião do deputado republicano Chris Smith (Nova Jersey), “Fidel sabe que nossas atenções estão voltadas para o Oriente Médio e ele aproveitou para, mais uma vez, impor suas barbaridades. Pois Castro se enganou. Nós continuamos atentos a seus movimentos. Por isso, somos contra as investidas de certos empresários americanos para abrir mais os laços comerciais bilaterais. Acho que esses crimes do regime de Fidel, agora, serão a última pá de cal nos argumentos de que o afrouxamento do embargo serve para abrir mais o regime”, disse ele a ISTOÉ.

De fato, Smith toca num ponto importante. Nos últimos anos, vários políticos, inclusive do Partido Republicano, tradicionalmente mais adepto ao arrocho do embargo econômico imposto há 32 anos pelos EUA,
têm feito pressões para que haja uma certa liberação comercial nas relações com Cuba, principalmente representantes de Estados agrícolas. Um desses políticos é o governador de Iowa, Tom Visack, que tinha agendada uma viagem a Cuba, liderando uma comissão para ampliar
as linhas de ação do intercâmbio econômico entre setores produtivos americanos e o regime cubano. A excursão foi cancelada depois da
onda de repressão. “Acho que Castro deu um tiro no próprio pé. Ele
só tinha a lucrar com este intercâmbio. Os fatos extremos de agora tornam indefensável qualquer esforço de estreitamento de laços
de amizade”, disse o governador.

No Brasil, onde Fidel Castro tem admiradores e amigos no governo Lula, as reações foram diversas. A repressão obrigou o Itamaraty a subir de tom. Embora sem condenar Cuba, o Brasil fará uma declaração de voto dura na Comissão de Direitos Humanos da ONU, manifestando “a forte preocupação do governo brasileiro com a questão do julgamento sumário, sem amplo direito de defesa dos réus, e sobretudo com a aplicação da pena de morte”, segundo o porta-voz Ricardo Neiva Tavares.

Já um grande amigo e admirador de Fidel Castro não deixou dúvidas sobre sua posição. “Sou totalmente contra a pena de morte. Se não houvesse pena de morte, Jesus Cristo não teria sido crucificado”, afirmou frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo), assessor do presidente Lula. “Nenhum Estado tem direito de tirar a vida de qualquer pessoa”, diz ele, destacando que, em 1989, quando o regime cubano fuzilou o general Arnaldo Ochoa, coordenou um manifesto de repúdio à execução, que depois foi entregue a Fidel, em Cuba, pelo próprio frei Betto e pelos escritores Antônio Callado e Fernando Moraes. “Meu protesto contra os fuzilamentos em Cuba não reduz minha solidariedade ao povo cubano diante da agressão americana que sofre há tantos anos”, afirmou. Como Saramago, frei Betto vê, repara e tem olhos que muitos perderam.