A política externa será uma das principais pedras no sapato no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Com a economia fragilizada, dependente de investimentos externos, o País vai ter de enfrentar uma extensa lista de obstáculos a fim de conquistar um lugar ao sol quando se trata de comércio internacional. Na prática, o PT, disposto a recuperar a soberania nacional, terá de defender interesses brasileiros sob intensa pressão das grandes potências. E a tarefa é bem complexa. Lula assegura que ministro seu não vai tirar os sapatos em nenhum aeroporto nos Estados Unidos, como fez o chanceler de FHC Celso Lafer em janeiro, em consequência do forte esquema de segurança montado após os atentados de 11 de setembro. O presidente eleito também diz que vai recusar a Alca se as barreiras protecionistas não forem derrubadas. Promete ainda uma reconstrução do Mercosul e prevê o fortalecimento das relações com os principais nichos comercias do planeta. FHC viveu oito anos nesse fogo cruzado e, na maioria das vezes, perdeu a guerra na OMC ou teve que ceder. Com o novo presidente o que será diferente?

A pedra no sapato das relações internacionais é conseguir um salto econômico suficiente para dar sustentabilidade ao comércio externo. O produto brasileiro ainda não tem a competitividade almejada ora pela carga tributária da indústria nacional, ora pelo baixo investimento tecnológico. “O Lula tem um perfil negociador, mas nem por isso ficará livre da conta alta que terá de ser paga”, analisa o cientista político Clóvis Brigagão. Nos últimos 20 anos, pouca coisa mudou na pauta de exportações do País, ainda caracterizada por produtos agrícolas e de pouco valor agregado. Por outro lado, pesa a nosso favor o fato de o País abrigar um grande contingente de consumidores e ter no currículo o perfil de uma nação pacífica.

No âmbito do Mercosul, o secretário de Relações Internacionais do PT, Aloizio Mercadante (PT-SP), acredita que os atrasos econômicos podem ser superados se o intercâmbio entre Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina não se restringirem apenas à questão aduaneira. “Devemos buscar políticas mútuas para a indústria, agricultura, ciência e cultura”, diz o deputado. A prioridade ao bloco foi reforçada num artigo de Lula publicado no jornal argentino Clarín, na edição de 26 de setembro, quando adianta a criação de uma Secretaria Executiva para pôr ordem na casa. Aproveitou a oportunidade para pedir desculpas pela gafe de ter chamado o vizinho de “republiqueta”. “Lo único que nos separa es el fútbol”, esclareceu o futuro presidente. Para Marco Aurélio Garcia, secretário da Cultura na Prefeitura de São Paulo, o Mercosul só não deu certo porque a política econômica dos países também estava errada.

Um segundo salto diplomático serão as negociações em torno da Alca, que deverão acontecer antes mesmo da posse de Lula em janeiro. No dia 1º de novembro os 34 países que discutem a Área de Livre Comércio das Américas estarão reunidos em Quito, Equador, para traçar os planos de trabalho. Na ocasião, Brasil e Estados Unidos assumem a co-presidência do Comitê de Negócios do bloco. Assim como o ex-presidente Itamar Franco permitiu em 1994 que o então eleito Fernando Henrique participasse da reunião para a criação da Alca, é esperado o mesmo convite para Lula. Para o petista, nos moldes atuais, o acordo sugere uma “anexação” e não uma “integração” do Brasil.

As atuais posições do PT nesse campo passam longe das questões ideológicas, como acontecia na política “anti-imperialista” defendida em 1989. Sobre a Cuba de Fidel Castro e a Venezuela de Hugo Chávez, Lula disse semanas atrás: “Vamos fazer alianças pensando nos interesses do Brasil e isso vale para todos.” A Alca entra nesse mesmo raciocínio. Os Estados Unidos destinaram US$ 180 bilhões em subsídios para produtos agrícolas, além de aumentarem a lista de produtos com barreiras alfandegárias. O aço e o suco de laranja só entram depois de pagar uma tarifa superior a 60% de seu custo. A embaixadora dos EUA no Brasil, Donna Hrinak, disse, em entrevista à Agência Brasil na quarta-feira 2, que o bloco só vai funcionar quando todo mundo sair dizendo: eu ganhei algo. “Eu confio muito nessas negociações”, acrescentou Donna. Já o ex-ministro Rubens Ricupero, atual secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), gosta de lembrar que os Estados Unidos continuam sendo um dos mercados mais abertos do mundo. “Exceto nas áreas onde se concentra nossa restrita competitividade”, completa em seguida. O encontro que discutirá lista de produtos e barreiras tarifárias está marcado para fevereiro.

Soberania – Uma das difíceis missões do novo Congresso Nacional será a votação relacionada à Base de Alcântara, o acordo que permite o uso de uma área no Maranhão pelos Estados Unidos para o lançamento de satélites em foguetes espaciais. Uma de suas cláusulas impede o livre acesso ao local, mesmo o do próprio presidente da República brasileiro, sem prévia autorização. Também prevê que a fiscalização das áreas restritas ficará a cargo dos EUA. Para o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, trata-se de uma questão de soberania. “Não pode haver em território brasileiro nenhuma área onde não se tenha o livre acesso das autoridades, muito menos que seja proibido inspecionar o que entra e sai de lá”, argumenta. Sobre a proibição de o Brasil desenvolver sua tecnologia espacial – também prevista no projeto –, o relator do assunto na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Waldir Pires (PT-BA), analisa: “Isso impede o desenvolvimento tecnológico e interdita, a rigor, nossa relação científica, imediata ou futura, com Rússia, Ucrânia, França e China.” A Base de Alcântara foi inaugurada em 1980 no extremo norte do Maranhão por ser uma região próxima à linha do Equador, o que baratearia o custo para os lançamentos. Vinte anos depois, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas assinado por FHC deu aos Estados Unidos sua permissão de uso. Desde 2000, o projeto tramita no Congresso.

Hegemonia bélica – O Tratado de Não-Proliferação das Armas Nucleares, também assinado pelo Brasil na era FHC, é mais um exemplo da nova postura internacional do País. Mas ao contrário da Base de Alcântara, o PT não deve se concentrar nessa questão, pelo menos por enquanto. “Até porque, se o Brasil pedisse alteração desse acordo, haveria uma corrida armamentista na América Latina”, avalia o cientista político Clóvis Brigagão. Marco Aurélio Garcia explica que a adesão ao tratado só foi mencionada na campanha de Lula como um caso de negociação que deveria ter sido melhor conduzida. “O Brasil ficou fragilizado”, diz. “Vemos com apreensão a política de ataque preventivo americano, pois isso, amanhã, pode se voltar contra nós”, completa, referindo-se ao iminente bombardeio ao Iraque.

Lula garante que não vai assistir calado ao desrespeito dos Estados Unidos no âmbito militar. Haverá uma manifestação brasileira para cada assunto de repercussão jurídica internacional, sempre pautada pelo princípio da negociação pacífica, a exemplo do que foi feito no Timor Leste. Um bom passo nesse sentido seria a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). “Todos os Estados membros têm de cumprir essas determinações. O Brasil obedece tudo sem ser ouvido. Se conseguir essa vaga, o País será visto de outro modo”, explica o embaixador Pinheiro Guimarães. As chances de isso ocorrer, de acordo com o embaixador, existem. O Brasil teria de aproveitar uma eventual ampliação das cadeiras permanentes, de cinco para oito lugares.

Em seu discurso, o futuro presidente costuma dizer que no mundo das negociações ninguém respeita quem entra de cabeça baixa. O Itamaraty terá papel fundamental no projeto do PT, que vê no órgão um conjunto de bons diplomatas. Resultados à parte, a briga de Lula será boa. As polêmicas licitações internacionais já causam grande expectativa. Um exemplo de como será a postura do futuro presidente foi dado durante a campanha política, no horário gratuito da tevê, quando Lula falou sobre a concorrência para a construção de plataformas da Petrobras. Brigagão pede apenas cautela ao recém-eleito. Experiente, o cientista político lembra que não adianta falar que não vai tirar o sapato e depois ter de fazer isso obrigado. Fica pior.