Assista ao trailer:

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VIOLENTO
Leonardo DiCaprio interpreta um fazendeiro
perverso: primeiro vilão de sua carreira

No filme “Django Livre”, faroeste passado durante a época da escravidão nos EUA (estreia prevista para a sexta-feira 18), ouve-se a palavra nigger (crioulo) pelo menos 110 vezes. Tratando-se de um enredo com duração de 2h45, calcula-se que a expressão é dita quase a cada minuto. Nos EUA, o termo “nigger” é considerado um xingamento. Tanto é assim que, na imprensa, ao se referir a ele, usa-se o termo “n-word” (“palavra que se inicia com n”). Natural, portanto, que o diretor Quentin Tarantino fosse criticado por essa provocação, o que de fato vem acontecendo em seu país e em qualquer lugar onde “Django Livre” é exibido. Sua irreverência, no entanto, vai mais longe. Ao abordar um capítulo odioso do passado americano – e de qualquer lugar onde vigorou o trabalho escravo –, o diretor voltou as costas aos manuais acadêmicos e criou uma verdadeira fantasia histórica. É o que os especialistas chamam de “alternate history” (história alternativa), quando episódios da humanidade são relidos segundo a ótica da ficção, muitas vezes negando fatos sobre os quais não existe qualquer dúvida de sua veracidade.

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DUPLA ATÍPICA
O alemão Schultz (Christoph Waltz) e o escravo
Django (Jamie Foxx): em busca de recompensas

Como é um diretor extremamente talentoso, essa ousadia rende sempre enredos instigantes, como seu filme anterior “Bastardos Inglórios”. O mesmo se dá nesse novo trabalho, orçado em US$ 100 milhões e que já se pagou só com a renda alcançada nos EUA em duas semanas de exibição. O faroeste segue a trajetória de Django (Jamie Foxx), um escravo que se investe de vingança para libertar a sua amada de um feitor abominável. Tudo é improvável, a começar pelo nome do herói, tirado dos westerns espaguetes estrelados por Franco Nero – que, aliás, faz uma ponta na produção. A surpresa já dá sinais no prólogo, quando Django é salvo de uma dupla de vendedores de escravos pelo caçador de recompensas alemão King Schultz (Christoph Waltz), que se passa por dentista itinerante – ele precisa da ajuda de Django para encontrar alguns bandidos cujas cabeças valem ouro. Em troca, o escravo faz uma exigência: que o novo senhor o ajude a encontrar a namorada, levada para as plantações de algodão do cruel Calvin Candie (Leonardo DiCaprio, em seu primeiro papel de vilão). 

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O que se assiste nesse périplo em direção ao sul escravocrata é algo que nunca foi mostrado em filmes do gênero. A crueldade dos fazendeiros é descrita em tom aberrante, mas, à medida que a trama avança, Django vai ganhando poder e se transforma numa espécie de Zumbi de coltre e pistolas. Numa das cenas mais polêmicas, chicoteia antigos senhores com a mesma violência que sofria no passado. “Não há nada melhor que matar branco e ainda ser pago por isso”, diz ele. Resistente a essa apropriação da história dos afro-americanos, o diretor Spike Lee foi o primeiro a se colocar contra o filme. Publicou em seu Twitter que não iria assisti-lo e que “a escravidão não foi um faroeste espaguete de Sergio Leone, mas um holocausto”. Tarantino disse que sabia do que estava falando e que não tinha o menor escrúpulo em tratar do assunto dessa forma: “Filmes sobre a escravidão sempre foram feitos com o viés de história com H maiúsculo. Quis quebrar essa redoma, jogar uma pedra nesse anteparo de vidro, estilhaçá-lo e assim envolver as pessoas”, disse ao jornal inglês “The Guardian”.

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Liberdades históricas são comuns nos trabalhos de ficção, mas Tarantino faz questão de exacerbá-las a ponto de soarem absurdas. Em outra passagem improvável, Django aparece vestido como um criado da monarquia francesa, usando casaca e calça azuis, sapatos de salto, meias brancas e frufrus no pescoço. Do alto de sua postura racista, Candie dá uma longa explanação para a suposta submissão dos negros – obviamente uma mentira de fundo biológico. O mais surpreendente é que esse enredo explosivo e naturalmente candidato a gerar polêmicas não afastou astros afro-americanos engajados, como Jamie Foxx e Samuel L. Jackson, que interpreta um escravo traidor de sua causa, braço direito do latifundiário Candie. Foxx, inclusive, levou seus filhos para conhecer um dos sets de filmagem, a fazenda Evergreen, em Nova Orleans, onde se montou o cenário de uma senzala, propriedade que remonta aos tempos escravocratas. Achou a visita didática. Lembrando a postura do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que respondia aos críticos que não fazia teatro mas “teato”, Tarantino afirmou que seu filme não é um western, mas um southern (por se passar no sul dos EUA). Uma piada que, no caso, procede.