Sem partido, deputado quer repensar a visão de mundo, mas não abre mão de defender candidaturas gays e a descriminalização da maconha

Há 25 anos, o ativista mineiro Fernando Gabeira retornava do exílio político para dar início a uma vida partidária que oscilou entre o vermelho e o verde – o PT e o PV do Rio de Janeiro. Hoje sem partido e sem o brinco que adornava uma de suas orelhas, Fernando Gabeira preserva o discurso vigoroso daqueles verões dos anos 80, quando agitava as praias cariocas com sua sunga cavadíssima.
Em entrevista a ISTOÉ, Gabeira, cutuca o governo Lula por sua
postura dúbia em relação aos transgênicos – motivo de sua saída
do PT –, admite pela primeira vez, publicamente, o que todos
imaginavam, que fuma maconha, e prega o lançamento da candidatura
de um travesti para a Câmara dos Deputados, reafirmando sua ligação com as minorias. A maconha, aliás, já criou sérios problemas para o deputado. Em 1996, Gabeira importou cinco quilos de sementes de Cannabis sativa da Hungria e acabou sendo alvo de um processo
criminal. Na quarta-feira 11, o procurador-geral da República,
Cláudio Fonteles, encaminhou pedido de arquivamento do inquérito
ao Supremo Tribunal Federal. A importação seria endereçada ao
Centro de Pesquisas de Algodão, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Vermelho, verde, de todas as cores. Tudo
isto é Gabeira, 62 anos, 47 dos quais polemizando na vida pública.

ISTOÉ – Quando toma atitudes ousadas, como a defesa da descriminalização do uso de drogas e de uma candidatura gay, o sr. não se sente solitário na política?
Fernando Gabeira

Pelo contrário. A candidatura desses travestis
e gays foi apresentada junto com a campanha do governo “Travesti
e respeito. É hora dos dois andarem juntos”. Não me sinto solitário porque falo de uma experiência já existente lá fora. Uma travesti
foi eleita como vereadora em Paris e agora está disputando o cargo
como deputada verde pelo Parlamento europeu. Detalhe, é uma brasileira: Camile Cabral, uma brasileira que mora na França há mais
de 20 anos. Nós somos, junto com a Tailândia, um país muito presente
na economia libidinal internacional.

ISTOÉ – Se um parlamentar travesti ou assumidamente gay fosse eleito por aqui, não sofreria hostilidades no Congresso?
Fernando Gabeira

Tudo depende da maneira como as pessoas conduzem suas lutas. Em 1982, tivemos a eleição de um índio, o Juruna, e ele atuou dentro dos limites. O importante é que exista uma expressão política
do movimento gay. Quem consegue no Brasil colocar um milhão de pessoas nas ruas, como foi a Parada Gay, em São Paulo? Não existe nenhum outro movimento de massa com essa capacidade. É razoável
que também estejam representados no Parlamento.

ISTOÉ – Que partido teria mais condições de abrigar essa candidatura?
Fernando Gabeira

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O PT tem se apresentado bastante receptivo. Alguns candidatos gays já se candidataram, mas não foram vitoriosos.
Outros tantos se lançaram pelo PV, mas também não foram eleitos.
Esses dois partidos tenho certeza que acolheriam candidaturas gays.
O PT participou da Parada do Orgulho Gay, juntamente com a prefeita Marta Suplicy, assim como o presidente do partido, José Genoino, o que mostra um nível de reconhecimento oficial bem grande.

ISTOÉ – Gay vota em gay?
Fernando Gabeira

Não necessariamente. Os mecanismos que levam ao voto dependem do nível de consciência da pessoa. Uma parte do eleitorado pode votar numa pessoa porque ela é bonita, por exemplo. Na medida
em que o candidato vai se afastando desse núcleo mais consciente
e militante, o nível de previsibilidade vai aumentando.

ISTOÉ – Nesses 25 anos, desde que o sr. voltou do exílio, o Brasil ficou menos conservador?
Fernando Gabeira

Sem dúvida. Avançamos muito no campo da consciência ambiental. Saímos, no final da década de 90, da posição de vilão internacional e assumimos uma posição de liderança mundial. Do ponto
de vista de costumes, tivemos avanços consideráveis. O simples fato
da Marta, a prefeita de São Paulo, ter defendido a proposta de união
civil entre pessoas do mesmo sexo serviu para reduzir o estigma contra os homossexuais. Queremos avançar no marco legal e, simultaneamente, questionar essa homofobia brasileira. Precisamos enfraquecer progressivamente essa homofobia e, assim, enfraquecer o nível de violência contra o homossexual. Propus a legalização da prostituição e as reações foram civilizadas, não há mais aquela grande tensão do passado. O Brasil está avançando. Se nós chegássemos ao Brasil ideal, talvez eu ficasse um pouco triste porque não teríamos mais nada para avançar.

ISTOÉ – O sr. acha possível a Igreja Católica rever sua posição contra o uso de camisinhas e engrossar a luta contra a Aids?
Fernando Gabeira

Considero essa posição historicamente irresponsável, dessas que daqui a 50 anos um papa vai pedir perdão. Só que aí será tarde.
É melhor rever essa posição logo do que pedir perdão por um erro histórico. Como aconteceu em relação ao nazismo. Os evangélicos
são mais tolerantes do ponto de vista do uso de preservativos, mas
têm uma posição contrária à união civil, assim como a legalização da prostituição. Nesse ponto, a base do raciocínio deles é a mesma da Igreja Católica. Existe ainda uma grande dificuldade dos religiosos em aceitar a idéia de que o sexo pode ser feito pelo prazer, sem a perspectiva da procriação. A suposição dos conservadores de combater a Aids pela defesa da monogamia é idealista. A realidade no mundo é que nem todos praticam a monogamia.

ISTOÉ – Dizem que as pessoas vão ficando mais conservadoras com o tempo. Aos 62 anos, o sr. é um homem conservador?
Fernando Gabeira

Não me acho conservador. Já quebrei muito a cabeça, já gastei muita energia em situações desnecessárias. Usando metáforas do futebol, eu diria que deixo a bola correr mais do que corro atrás dela. Talvez eu tivesse uma expectativa juvenil de mudar cabeças que não precisam e não devem ser mudadas. Hoje, sou muito mais tolerante. Eu dialogo com os evangélicos na Câmara. Brinco dizendo que a Igreja Católica vai me mandar para o inferno e os evangélicos também, só que com vista para o mar.

ISTOÉ – Restou alguma mágoa do PT?
Fernando Gabeira

De jeito nenhum. A impressão que ficou na minha saída do partido foi a de que eu estava desapontado ou mesmo decepcionado
com o PT. É preciso que fique claro que eu estava era decepcionado comigo. Achei que poderia haver um processo de transformação
e que o PT estava realmente disposto a mudar o Brasil. Percebi que
o PT queria mesmo era ficar no poder, garantindo sua presença no
poder. Mas não tenho nenhuma mágoa. Continuo discutindo com o
PT em todos os momentos que posso e continuo esperando que o partido, em algumas áreas, assuma os compromissos que fez durante a campanha eleitoral. O PT assumiu uma série de compromissos com setores modernos do Brasil e, quando chegou ao governo, se associou aos conservadores. De uma certa maneira, quer se desvencilhar desses penduricalhos modernos do passado.


ISTOÉ – Quais os principais erros do governo?
Fernando Gabeira

Fazer escolhas equivocadas. Faz parte da mitologia da esquerda um certo culto da onipotência do quadro político. A primeira grande experiência negativa foi a indicação do médico Jamil Haddad para a presidência do Instituto Nacional do Câncer, o Inca. Sua indicação provocou uma crise sem precedentes na instituição. Ficou claro que estabelecer direções políticas em órgãos de excelência, sem que essas direções políticas tenham sintonia com o tema, acaba dando em desastre. O PT sempre teve um discurso progressista em relação à ciência e tecnologia, mas está fazendo escolhas retrógradas.

ISTOÉ – Sem partido, o sr. se sente mais livre para defender suas posições?
Fernando Gabeira

Claro que existe uma liberdade maior, mas o PT jamais me
criou algum constrangimento. Sempre me senti com bastante liberdade dentro do partido. Mas a presença em um partido implica uma certa solidariedade e eu tenho dificuldade de cumprir essa solidariedade
porque normalmente isso requer que a disciplina supere a inteligência. Depois que deixei o PT voltei a olhar o governo com certa simpatia distante, sem tantos ressentimentos.

ISTOÉ – Mas o sr. pensa em voltar para algum partido num futuro próximo?
Fernando Gabeira

Não tenho pensado sobre isso. Terminando esse mandato, completo 50 anos de vida pública, já que fiz minha primeira greve aos 16 anos como secretário-geral da União Nacional dos Estudantes. Estou completando 63 anos e chegarei ao fim desse mandato com 65 anos. Preciso fazer um balanço da minha vida. Passei pelo existencialismo no século passado, passei pelo socialismo, vi o socialismo ruir, transitei pela ecologia, cumpri três mandatos, acho que preciso sentar e refletir sobre esses 50 anos. Não é que não pense em me candidatar, mas, se vier a me candidatar, preciso saber com que visão.

ISTOÉ – O sr. defende a descriminalização do uso de drogas. Como equilibrar essa posição com a guerra que vivemos contra o tráfico?
Fernando Gabeira

O Brasil vive um relação muito intensa com o tráfico de drogas, o que acaba refletindo diretamente na minha vida. Não é à toa que meus votos, no Rio de Janeiro, foram tão poucos. Nas últimas eleições, a queridíssima juíza Denise Frossard expressava naquele momento alguma coisa capaz de reprimir e punir com eficácia o tráfico de drogas. E eu expresso uma posição liberal e perigosa nesse contexto. Jamais deixei de apoiar qualquer medida de repressão ao tráfico que fosse inteligente e isso sem trair minhas posições. Eu apóio porque acredito que só através do fracasso das mais inteligentes ações
contra o tráfico de drogas é que as pessoas vão compreender que é necessário legalizar. Enquanto houver uma polícia ineficaz, corrupta, todos vão alegar que o tráfico continua porque a polícia não funciona.
No dia em que tivermos uma polícia eficaz e honesta e muito bem equipada, vai acabar o tráfico de drogas. Eu contesto essa tese.
O traficante Fernandinho Beira-Mar estava no presídio de segurança máxima, em Bangu, e, às vésperas das eleições, provocou uma
correria no Rio, mandando fechar lojas e coisa e tal. Costumo brincar
que ele estava querendo me sacanear, já que assim eles querem
levantar a bola dos setores mais repressivos. Ele fez o que fez, em Bangu, foi levado para outro presídio em São Paulo e, mesmo assim, voltou a organizar o tráfico lá de dentro. Vai chegar o dia em que teremos que criar uma nova qualidade de presídio, o supermáximo.
Existe a esperança de que um dia o País esteja livre das drogas.
A visão mais madura no mundo é a holandesa. A droga sempre vai
existir, o melhor é trabalhar na redução dos danos.

ISTOÉ – Como o sr. pessoalmente lida com as drogas?
Fernando Gabeira

Acordo todos os dias e tomo um café. A cafeína é uma das drogas mais capazes de se integrarem em tudo de forma legal. No Brasil, sou forçado a discutir se se deve ou não liberar as drogas, porque aqui
o nível de reflexão é muito mais pobre que o da Colômbia. Sou favorável à legalização de todas as drogas e enfatizo a questão da maconha porque acho a droga mais popular. Ela é uma droga muito importante para nossa juventude. Acho também que a maconha é maltratada pelos conservadores que não compreendem que ela é uma cultura. A maconha é objeto de trabalhos internacionais, além de revistas especializadas. É uma droga que, comparada com outras, pode resolver a questão do tráfico porque pode ser plantada em qualquer lugar, inclusive dentro da gaveta. Quero trazer o debate da maconha para um campo onde os preconceitos não sejam tão fortes e em que possamos compreender a importância econômica da planta, da Cannabis sativa. Na Alemanha, por exemplo, já se produzem 25 mil subprodutos no mercado ligados ao cânhamo. Ficar fora desse debate é o mesmo que dizer que está proibido plantar cana-de-açúcar porque ela dá a cachaça.

ISTOÉ – O sr. fuma maconha?
Fernando Gabeira

Fumo, mas, como é proibido no Brasil, prefiro fumar
naqueles lugares onde a maconha é considerada legal. Como em Amsterdã, por exemplo.



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