Um avião monomotor Cessna 210 carregado de cocaína sobrevoa os céus do Estado do Mato Grosso, proveniente do Paraguai e com destino a Jataí, em Goiânia (GO). São 10h30 do dia 10 de julho de 2002. A aeronave é detectada pelos radares do Primeiro Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta I), que, sem conseguirem identificar o intruso, acionam a defesa aérea. Um caça T-27 Tucano decola da base de Porto Velho (RO) e, minutos depois, faz a interceptação do avião. Seguindo as normas internacionais de tráfego aéreo, o piloto do Tucano inicia o interrogatório da aeronave. Dentro do avião intruso, trava-se o seguinte diálogo telefônico entre o piloto e alguém que, provavelmente, é o seu chefe imediato.

– (Piloto): O avião pegou nóis, pai! O avião vai pegar nóis aqui!
Está aqui do lado!
– (Voz): Abaixa o vidro e joga fora! Abaixa o vidro e joga fora!
– (Piloto): Eu estou a 1.000 pés, tá quase chegando no chão
e o avião está aqui do lado…
– (Voz): Segura e joga fora!
– (Piloto): Joga tudo fora?
– (Voz): Joga tudo fora! Segura e joga fora!
– (Piloto): Eu sei, vamos ver quanto tempo eles vão andar mais,
e qualquer coisa eu jogo fora.
Passam-se alguns minutos.
– (Piloto): Estão seguindo nóis, estão seguindo. Nóis tamo raspando
e estão seguindo nóis…
– (Voz): Vocês jogaram fora ou não?
– (Piloto): É um Tucano.
– (Voz): Pois é, mas vem embora! Não vai derrubar. Ele não derruba.
Vem embora direto que eles não derrubam.
Passam-se mais alguns minutos.
– (Voz): Tá tudo bom? Tudo beleza?
– (Piloto): Tá, mas o Tio tá chorando aqui já…
– (Voz): Eles foram embora?
– (Piloto): Negativo.
– (Voz) Não jogou fora não, né?
– (Piloto): Estão tirando foto.
– (Voz): Deixa tirar foto. Eles só tiram foto. Qualquer coisa você me liga.
– (Piloto): Quem falou que só tira foto?
– (Voz) Eu sei… Mas não vai jogar fora não, viu?
– Tudo bem…

A gravação acima foi ouvida pela reportagem da ISTOÉ, ao lado do major-brigadeiro-do-ar Clenilson Nicácio Silva, comandante do VII Comando Aéreo Regional (Comar), sediado em Manaus, e que abrange os Estados do Amazonas, Roraima, Acre e Rondônia. Nesse diálogo, fica clara a insolência dos traficantes que voam impunes no espaço aéreo nacional sem que os pilotos de caça da Força Aérea Brasileira (FAB) possam, no limite, derrubá-los. No máximo, a Aeronáutica pode dar tiros de advertência. E isso só acontece por causa de um mero entrave burocrático: uma lei que permite a derrubada de aeronaves civis invasoras, caso não obedeçam às determinações de aterrissar, pousa há mais de cinco anos no Palácio do Planalto. Aprovada em 1998 pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, a lei até hoje não entrou em vigor porque ainda depende de regulamentação, que vai determinar qual autoridade terá o poder de autorizar o chamado “tiro de destruição”, a derrubada da aeronave. E enquanto essa “lei do abate”, como foi batizada, não for regulamentada, a defesa aérea brasileira fica de mãos atadas no combate ao narcotráfico. “Essa impossibilidade legal de executar o tiro de destruição é que dá à aeronave que comete a contravenção a certeza da impunidade”, diz o brigadeiro Nicácio, um oficial-general de fala mansa, sereno e afável, mas que não esconde a indignação por esse impasse. “Nós não vamos sair por aí abatendo qualquer aeronave; é mais uma questão de dissuasão: se os bandidos souberem que poderão ser derrubados se não obedecerem às determinações do interceptador, pensarão duas vezes antes de correr riscos. Se tivéssemos regulamentado esse direito, teríamos uma redução quase completa dos ilícitos cometidos por pequenas aeronaves”, afirma. Os números falam por si: apenas no ano passado, cerca de 3.900 aeronaves desconhecidas cruzaram os céus brasileiros, e 200 delas só na região amazônica.

Essa situação de insólita impotência contrasta com a capacidade, recentemente adquirida pelo Brasil, de controlar o vasto espaço aéreo da Amazônia, região onde as dificuldades do transporte terrestre fazem do ato de voar uma atividade vital para a sobrevivência de inúmeras comunidades isoladas. Com a inauguração do Sistema de Vigilância da Amazônia, o Sivam, em julho de 2002, o País finalmente passou a tomar conhecimento do que acontecia na Amazônia Legal, que, com 5.200.000 quilômetros quadrados e 11.248 quilômetros de fronteira, representa 56% do território nacional e cerca de 20% de todo o tráfego aéreo do País. O Sivam, que custou aos cofres públicos US$ 1,4 bilhão, dispõe de seis satélites, 18 aviões, sete radares fixos, seis radares transportáveis, 20 radares secundários e 70 estações meteorológicas de superfície. Entre as estrelas do Sivam estão os cinco aviões R-99A, um ERJ-145 transformado numa espécie de radar voador e os três R-99B, de sensoreamento remoto. “A simples presença desses aviões já constitui um alerta aos contraventores”, afirma o brigadeiro Nicácio. ISTOÉ viveu a experiência de uma interceptação simulada, quando o monomotor Caravan em que nos encontrávamos foi detectado por um R-99A e interceptado, a oito mil pés (três mil metros) de altitude, por dois Tucanos T-27 da Base Aérea de Boa Vista (RR). “Foi o nosso dia de bandido”, brinca o brigadeiro Nicácio. As condições de patrulhamento aéreo ficarão ainda melhores a partir deste ano, quando a FAB começará a receber os primeiros EMB-314ALX, os caças chamados “Supertucanos”, de um total de 76 aeronaves, que receberão a designação A-29.

Pelotões de fronteira – Mas não são apenas os aviões, de carreira ou não, que preocupam as autoridades brasileiras na Amazônia. Grupos guerrilheiros colombianos, contrabando e atuação de ONGs estrangeiras também acionam os alarmes. Tanto que o Exército vem paulatinamente ampliando sua presença na região, principalmente através da expansão do Projeto Calha Norte – criado em 1985 para aumentar a segurança e implantar projetos de assistência social na região ao norte dos rios Solimões/Amazonas. Os efetivos do Exército na Amazônia hoje chegam a 22 mil homens e atingirão, até 2006, 25 mil, cerca de 15% do total da força. O reforço virá com a transferência da 2ª Brigada de Infantaria Motorizada de Niterói (RJ) para São Gabriel da Cachoeira, na região da “cabeça do cachorro”, fronteira com a Colômbia. Mais da metade do efetivo atual, 12 mil soldados, integra quatro Brigadas de Infantaria de Selva (BIS), que englobam 14 batalhões e muitos pelotões de fronteira. (Uma brigada é composta de cerca de três mil soldados e um batalhão, entre 800 e mil, e um pelotão, de 40 a 70 homens.) Essas unidades são consideradas as mais bem treinadas do mundo em operações militares e combates na selva e a formação dos oficiais é feita no Centro de Instrução de Guerra na Selva (Cigs), em Manaus. A mobilização atual vem sendo feita em estreita colaboração com a Aeronáutica. “Aqui na Amazônia, afastada dos centros de poder econômico, político e cultural do País, existe um binômio entre o Exército e a Força Aérea”, garante o chefe do Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia, general-de-brigada Villas Boas. “A adversidade da região faz com que, aqui, a solidariedade entre as forças seja mais forte do que a existente em outras partes do País”, completa o brigadeiro Nicácio.

Adversas, sem dúvida, são as condições de ocupação dessa região. Imerso na imensidão da floresta amazônica, existe um outro Brasil, muito diferente daquele das metrópoles superpovoadas, lugarejos que às vezes nem constam dos mapas, nos quais somente as Forças Armadas marcam a presença do Estado na região. Nesses rincões não há transporte, comércio, mercado, farmácia, hospital, quase nada. Mantimentos só chegam a esses locais em barcos, em condições perigosas e quando as chuvas permitem. Ou então através de aviões da FAB. Um desses lugarejos é São Joaquim, na fronteira com a Colômbia, um local quase totalmente isolado da civilização, não fosse a presença do 3º Pelotão Especial de Fronteira, instalado pelo Calha Norte. Numa região de
fronteira porosa, que no passado foi área de atuação da guerrilha colombiana, a comitiva é recebida por um grupo de índios curipacos que entoa o Hino Nacional Brasileiro sem errar nenhuma estrofe. “Estamos muito isolados aqui. Mas nós estaríamos muito mais isolados se não fossem os militares”, atesta o índio Rogério Luís Quintino. A comunidade indígena tem cerca de 220 pessoas e seu líder atende pelo curioso nome de Clarindo Pancho Pedro, mas todos o tratam por “capitão”, como são chamados os líderes indígenas por aqui. Ninguém, aliás, gosta de ser chamado de índio. O “capitão” é um homem de baixa estatura, que aparenta bem mais do que seus declarados 44 anos. Ele diz que é brasileiro há 18 anos. “A região é do Brasil, mas nós éramos colombianos, com documento de identidade e tudo. Fugimos dos ataques das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e viramos brasileiros depois que o Exército se instalou aqui”, conta.

Voluntários – O 3º Pelotão Especial de Fronteira é formado por cerca de 65 soldados, a esmagadora maioria indígena, como o cabo Clemente Pedro Luiza da Silva, da etnia baniwa, 32 anos, há 13 no Exército, onde diz ter encontrado uma “nova vida”. Já o comandante do pelotão, o primeiro-tenente Izackson do Nascimento, é do Recife, está aqui há dois anos, mas se identifica inteiramente com a comunidade. “Fiz a opção de vir à Amazônia”, conta ele, “para ter a oportunidade de conhecer melhor a região e ajudar essa gente. E deu vontade de ficar mais tempo”, diz o tenente, que estendeu sua permanência por aqui por mais um ano. Aos 24 anos, ele já está casado com Fabiana Siqueira, 22, de Resende (RJ), que se mostra ainda mais entusiasmada do que ele. “Essa é a minha comunidade”, diz ela. Fabiana dá aulas de alfabetização para as crianças indígenas. “Muitas vezes, tenho que recorrer a outras crianças para servirem de intérpretes, pois muitas não sabem uma palavra do português”, conta. Ela já foi picada por cobra, mas diz que não se intimidou. “Já achamos sucuri em casa, jararaca no banheiro e aranha armadeira no nosso alojamento”, afirma. O jovem casal não se importa com o fato de não haver diversão num local tão inóspito. “Quando chega um avião, é uma verdadeira festa”, diz Fabiana, com um largo sorriso.

O entusiasmo com a experiência na selva também se repete em Yauaretê, cerca de 150 quilômetros a sudeste de São Joaquim, onde está o 1º Pelotão Especial de Fronteira. A segundo-tenente médica Fernanda Meireles, 27 anos, veio parar no meio da mata porque se alistou para acompanhar o noivo, o segundo-tenente médico Geraldo Alexandre Machado, 26, convocado para a região. “Meu coração foi conquistado pela Amazônia”, confessa. Como na maioria dos Pelotões de Fronteira, os médicos da guarnição são quase sempre os únicos disponíveis para atender às necessidades das comunidades indígenas do local. “Aqui temos muitas crianças com carência alimentar e problemas devido à falta de higiene. Ainda temos dificuldade com a comunidade, pois muita gente ainda prefere o atendimento do pajé”, diz. “Isso demonstra que, se um dia o serviço militar obrigatório for abolido, a Amazônia poderá ficar sem médicos”, prevê o tenente-coronel Paulo Ubirajara de Moraes, do Comando Militar da Amazônia.

Em São Gabriel da Cachoeira, onde está sediado o 5º Batalhão de Infantaria da Selva, o hospital da guarnição, construído pelo Calha
Norte em 1988, é o único existente em toda a região da cabeça do cachorro. O hospital pertence ao governo do Amazonas, mas desde 1995 é administrado pelo Exército, que fornece material e pessoal. “Temos muitos casos de retiradas. Só no ano passado, 58 pessoas foram evacuadas deste hospital em aviões da FAB”, conta o coronel Luiz
Portela Martins, diretor do hospital. Em toda a região de São Gabriel
da Cachoeira, foram mais de 115 deslocamentos no ano passado. “Não fosse a FAB, os óbitos seriam muitos”, garante a assistente social Graciete, segundo-tenente do Exército. ISTOÉ presenciou uma dessas retiradas, a de Maria Nazarello Custódia, uma índia piratapuia de 23 anos que sofreu fratura exposta e teve que ser transferida para Manaus num Hércules C-130.

Já em Tunuí, no extremo norte da cabeça do cachorro, nem avião chega; todo suprimento vem através de helicópteros ou de embarcações. A comitiva da qual ISTOÉ fez parte chegou ao local a bordo de quatro helicópteros UH-1H. Em Tunuí vivem cerca de três mil índios das etnias baniwa e curipaco que praticam agricultura de subsistência e pesca. Silvano Alexandre, 49 anos, o líder de uma comunidade baniwa de 232 pessoas, reclama das privações. “Não temos médico, estamos isolados. O transporte é difícil”, diz. Eles esperam que as coisas melhorem em Tunuí depois que o pequeno destacamento do Exército se transformar no 7º Pelotão Especial de Fronteira e depois que a Aeronáutica terminar a construção de uma pista de 1.200 metros.

As necessidades são maiores ainda em Vila Bitencourt, distrito de Japurá, com cerca de dez mil habitantes. O prefeito Raimundo Matias diz que o local tem problemas de toda ordem: educação, saúde, saneamento e desemprego. “As asas da FAB são nosso único meio de transporte”, afirma Matias. Além de tudo, é um local perigoso. O 3º Pelotão Especial de Fronteira, às margens do rio Japurá, que separa o Brasil da Colômbia, é uma verdadeira fortificação, com soldados camuflados, armados de fuzis Pára-Fal, metralhadoras .50 e até um canhão de 85 mm., entrincheirados em vários pontos estratégicos. Em 26 de fevereiro de 2002 houve uma troca de tiros entre os soldados do pelotão e cinco guerrilheiros das Farc, que passaram de barco em alta velocidade, foram interceptados no meio do rio e atiraram nos militares. Os rebeldes fugiram mas uma guerrilheira foi ferida.

Mais afastada da fronteira, Eirunepê, a cerca de 300 quilômetros ao sul de Tabatinga, não tem problemas com as Farc, mas também sofre com o isolamento. A cidade, com cerca de 30 mil habitantes, vivia do extrativismo da borracha e hoje cultiva farinha branca seca e é a campeã amazônica da produção de açúcar mascavo, adquirida pela Record Farma, subsidiária da Coca-Coca. Eirunepê virou uma área estratégica: um radar móvel do Sivam está sendo implantado no local e a Comissão de Aeroportos da Região Amazônica (Comara) está construindo uma nova base aérea. “Aqui, existe uma grande quantidade de gente desocupada. Quando estiver concluída, a base vai alimentar a economia local”, diz o brigadeiro Nicácio. “Na Amazônia, as Forças Armadas têm um papel diferente do que desempenham no Sul do País. Elas têm uma dimensão social muito grande, de apoio às populações marginalizadas, sem ligações com os centros mais avançados”, atesta o brigadeiro Nicácio.

Mas a presença dos militares na região também “inibe todo tipo de ilícito”, segundo o general Villas Boas, que reconhece que não cabe ao Exército
o papel de polícia no combate ao narcotráfico, mas à Polícia Federal, trabalho que ficou mais fácil depois do Sivam. “Graças a ele, os Pelotões de Fronteira romperam o isolamento e passaram da era do rádio à internet”, completa outro oficial. Mas, por inépcia burocrática ou pressão de interesses poderosos, o País tem os meios de resguardar a região amazônica, mas não o correspondente poder de dissuasão. Enquanto isso, os traficantes continuam a voar nos céus da Amazônia, protegidos pelos ventos da impunidade.

 

“A prioridade é a Amazônia”

O general-de-Exército Cláudio Figueiredo (foto), comandante militar da Amazônia, diz que já se discute a criação da categoria de “crimes transnacionais” que afetam a segurança nacional, nos quais o Exército poderia atuar.

ISTOÉ – Qual o sentido do aumento da presença militar
na Amazônia?
General Cláudio Figueiredo –
Até os anos 80, a prioridade das Forças Armadas era o Sul. Com o advento do Mercosul, o foco se voltou para a Amazônia. Sabemos que o interesse internacional pela Amazônia é muito grande. Paulatinamente, o Exército foi trazendo efetivos para cá. A Brigada das Missões, de Santo Ângelo (RS), foi transferida para Tefé, para vigiar a fronteira Peru-Colômbia. Logo depois, a 1ª Brigada de Infantaria de Petrópolis (RJ) foi transferida para Boa Vista (RR), na fronteira com a Venezuela.

ISTOÉ – Na Amazônia, os militares devem ter papel de polícia?
Figueiredo –
O que se estuda no âmbito do governo é a possibilidade de se criar um poder de polícia das Forças Armadas nas áreas de fronteira para crimes transnacionais que afetam a segurança nacional, como contrabando de armas, tráfico de estrangeiros e o narcotráfico. Hoje, o Exército apenas dá apoio à Polícia Federal na repressão a esses crimes. Mas a PF tem recursos pequenos. Aí é que se discute a possibilidade de o Exército atuar com mais liberdade.

ISTOÉ – Existe conflito entre o Exército e as ONGs estrangeiras?
Figueiredo –
O Exército não tem conflito com ninguém, mas se preocupa com a regulamentação dessas ONGs: quem são, quantas são e o que estão fazendo. Têm ONGs do bem, a maioria, mas muitas são do mal, isto é, estão aqui como fachada, para fazer outra coisa.