Guerra é guerra. Pode ser travada nos campos militar, diplomático ou eleitoral. As armas mudam, mas as estratégias são muitas vezes as mesmas. O Brasil tem a sorte de ter uma história pacífica no terreno militar: a última vez que guerreou foi há 139 anos, contra o Paraguai. Mas a retórica belicista do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, promete fazer escola no Brasil neste ano. Só que no campo eleitoral. Em outubro os brasileiros vão às urnas para escolher os prefeitos e vereadores dos seus 5.564 municípios. No quartel-general montado pelo PT do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, boa parte da estratégia já foi elaborada para tentar passar de 209 prefeituras para cerca de 600 e, com isso, assegurar a hegemonia política nos quatro cantos do País. A famosa expressão “eixo do mal”, cunhada por Bush para designar países tidos como inimigos, é repetida a todo instante no QG petista. “Os nossos adversários já escolheram o eixo do mal: é São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro”, afirma Sílvio Pereira, secretário de Organização, de Comunicação e presidente do chamado Grupo de Trabalho Eleitoral do PT, sempre acionado em época de eleição.

Neste ano, os exércitos partidários que obtiverem as maiores vitórias estarão em vantagem para vencer outra guerra poderosa: o pleito de 2006 para presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais. A principal batalha agora será travada em São Paulo, com a tentativa de reeleger Marta Suplicy. “Uma derrota em São Paulo será um tiro no nosso coração”, reconhece Pereira. No Rio, o petista da hora é o deputado federal Jorge Bittar, relator do Orçamento, e a tentativa do partido é forçar um segundo turno com o prefeito Cesar Maia (PFL). Em Belo Horizonte, a batalha governista será para reeleger o prefeito Fernando Pimentel. “Vamos atacar o núcleo duro do PSDB e do PFL. Queremos derrotar o governador Geraldo Alckmin e o ex-ministro José Serra, o prefeito Cesar Maia e os senadores Antônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen”, trombeteia José Genoino, presidente do PT.

Mais do que estratagemas políticos, o governo sabe que sua tropa precisa de munição para ganhar. Munição que, no terreno político, se traduz em dinheiro para obras. Os gestores
da grana pública são políticos – como o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu – e não negligenciam
a pressão dos candidatos. Assim, criou-se
para este ano uma fórmula mágica. Da despesa de R$ 413 bilhões estimada pelo Congresso, o Planalto resolveu aumentar o bloqueio, que passou de R$ 6 bilhões para R$ 7,4 bilhões.
Mas o governo vai abrir a carteira e sacar pelo menos R$ 1,5 bilhão em obras reivindicadas pelos deputados e senadores País afora. As primeiras liberações virão ainda neste mês, o que é incomum na execução orçamentária. Geralmente ocorrem a partir de outubro. Mas, por ser ano eleitoral, o dinheiro só pode sair do caixa até
30 de junho. “No ano passado o orçamento não era nosso. Por isso as emendas não tinham mérito. Já neste ano as emendas estão sintonizadas com o nosso governo”, explicou o ministro do Planejamento, Guido Mantega. “O governo não vai liberar dinheiro só para petistas. Não vamos usar a máquina”, diz Genoino.

Outro desafio dos petistas será ganhar os chamados grotões do País, cidades com até 20 mil habitantes, dominadas pelo PSDB, PMDB e PFL. Para alcançar esse objetivo, o PT preparou uma estratégia especial: conclui até março o processo de informatização de seus diretórios municipais comprando cinco mil computadores ao preço de R$ 21 mil. Assim, todas as cidadelas estarão plugadas. “Mas ninguém ganha a guerra apenas com artilharia aérea. É preciso ter infantaria. Não basta estar informatizado”, acrescenta Sílvio Pereira. A infantaria, no caso, será liderada por um pelotão de 400 dirigentes municipais especialmente preparados para a batalha, munidos com cartilhas padronizadas e com a defesa do governo Lula na ponta da língua. Cada um desses líderes, espalhados em todo o País, vai tomar conta de um QG, as chamadas microrregiões. Assim, o PT – que já tem 600 mil filiados e pretende chegar a 800 mil até junho – vai tentar enfrentar os adversários também num terreno que ainda lhe é hostil: as pequenas e médias cidades.

A oposição também elabora a sua tática. Seu quartel-general, dividido entre PFL e PSDB, promete retaliar duro. “Nosso objetivo maior é derrotar o PT em São Paulo, com ou sem aliados”, desafia o chefe da tropa pefelista na Câmara dos Deputados, José Carlos Aleluia, líder da bancada. “A prefeita Marta Suplicy está ligada aos tubos de oxigênio de Lula. Sobrevive com índices pittagóricos de popularidade, dignos do ex-prefeito Celso Pitta”, ironiza Arthur Virgílio, chefe da artilharia do PSDB no Senado. O governo Lula, como todos os outros, vai usar do poder devastador da caneta para proteger seus soldados, acudir aliados, atrair simpatias, demolir resistências e encurralar adversários. Tudo, prometem os generais governistas, sem esfarrapar a bandeira da austeridade fiscal, do controle orçamentário e da estabilidade econômica. Mas as tropas sabem que vão para o campo arranhadas pelos juros altos, arrocho interno, tesouradas orçamentárias, desemprego, queda na massa salarial. Os aliados do governo e os próprios petistas pressionam para receber as mirradas verbas federais. “O dinheiro tem que ser para a base”, reza o capelão governista, deputado Bispo Rodrigues (PL-RJ), referindo-se ao R$ 1,5 bilhão que os guardiães do cofre prometeram distribuir em emendas paroquiais que, liberadas, se convertem em obras.

Rodrigues dá como exemplo o Rio de Janeiro, onde Lula conquistou 80% dos votos. O governo demitiu três ministros cariocas: Benedita da Silva, Miro Teixeira e Roberto Amaral e ainda por cima levou uma escola de samba paulista para os Emirados Árabes. “Lula está derrubando seu candidato no Rio”, amaldiçoa Rodrigues, anunciando que o PL marchará sozinho com o bispo-candidato Marcelo Crivella contra os coronéis cariocas da oposição, o prefeito Cesar Maia e o ex-prefeito Luiz Paulo Conde (PMDB). O comando governista já havia identificado dificuldades em reproduzir a aliança que elegeu Lula e, por isso, procurou o PMDB para ampliar seu poder de fogo, tendo como um dos principais interlocutores o ministro das Comunicações, Eunício Oliveira (CE). Os dados da última eleição municipal, em 2000, mostram que PMDB, PFL e PSDB são os mais fortes no interior, onde está nada menos que 30% do eleitorado brasileiro. Os três partidos elegeram prefeitos em 60% dos municípios. O PT venceu nas metrópolis: obteve um total de 11,9 milhões de votos em todo o País, mas elegeu somente 187 prefeitos. O PMDB elegeu um batalhão de 1.257 prefeitos tendo apenas 1,35 milhão de votos a mais do que o PT. “PT e PMDB juntos poderiam ter 25 milhões de votos. Seria uma força imbatível. Além do mais, nós entraríamos nos grotões”, observou Sílvio Pereira.

Mas em quatro capitais, além do Rio, a união dessas forças é praticamente impossível: Porto Alegre, Recife, Campo Grande e Salvador. Em São Paulo, Marta Suplicy já se reuniu com o ex-governador Orestes Quércia. O PMDB quer a vaga de vice, mas a prefeita rejeita a idéia: ela bate o pé para ter como companheiro de chapa seu secretário de Governo, Rui Falcão. Isso porque ela deseja trocar de patente em 2006 e ser candidata a governadora. Com um vice petista, que assumiria o comando da capital antes do fim de seu mandato, esse plano está garantido. Com um vice peemedebista, Marta terá que ficar de fora do páreo em 2006 porque o PT não entregaria de bandeja o terceiro maior orçamento do País a outro partido. Mas os cardeais petistas que sonham disputar o Palácio dos Bandeirantes em 2006 torcem para que o vice de Marta seja mesmo do PMDB, para amarrá-la na prefeitura. São eles o ministro José Dirceu, o presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, o senador Aloizio Mercadante e o próprio Genoino.

São Paulo é uma grande incógnita: além de Marta, somente a deputada federal Luiza Erundina (PSB), ex-prefeita e ex-petista, anunciou sua disposição de disputar a eleição. Erundina já saiu chutando a canela de Marta e até do governo Lula, afirmando que a prefeita não vem cumprindo suas promessas de campanha e que Lula adota uma política “neoliberal”. As críticas incomodaram: Genoino foi se queixar ao presidente do PSB, Miguel Arraes, lembrando que o seu partido tem um ministério (Ciência e Tecnologia). Os tucanos continuam em cima do muro, demonstrando que ainda não aprenderam a ser oposição. Irritam o PFL, que gostaria de ver logo um nome definido com chances de vitória, como o de José Serra ou um candidato do governador Geraldo Alckmin, preferencialmente o secretário de Segurança Pública, Saulo Abreu Filho. Mas Serra vem sinalizando que não quer duelar com Marta, preferindo disputar o Palácio dos Bandeirantes em 2006. Em um jantar com jornalistas, em Brasília, na quarta-feira 11, o presidente Lula afirmou, num tom que resvala o desafio: “Serra não disputa a Prefeitura de São Paulo porque tem medo de perder.”

Para o senador Arthur Virgílio “se o PSDB quiser brigar para valer tem que entrar para ganhar em São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Em São Paulo, só quem tem a perder é o PT”. Aí é que surge outro complicador no front. Os governadores tucanos Aécio Neves (MG) e Marconi Perillo (GO) e o senador Tasso Jereissati (CE) andam se aproximando das hostes palacianas enquanto alimentam seus projetos pessoais. Em Fortaleza (CE), o deputado Inácio Arruda (PCdoB) pode ter o apoio da dupla Jereissati/Ciro Gomes em troca do governo em 2006. Em Goiás, Perillo fez um pacto de não-agressão com Brasília para pavimentar um mandato de senador em 2006. Em Belo Horizonte, o PSDB pode deixar o bastião para o PT por mais quatro anos e reconduzir Aécio Neves em 2006, mantendo acesa a esperança de suceder Lula em 2010. “O Aécio não hostiliza o governo e vice-versa. Os mineiros sabem uma coisa em política: aliança não precisa ser reconhecida em cartório”, diz Genoino.

Embora municipal, a eleição de 2004 mexe com estandartes nacionais.

O governo diz que a disputa é local, a oposição diz o contrário. “Se

o Lula continuar caindo, vamos nacionalizar o debate. Se ele permanecer com popularidade alta, o PT é que vai federalizar a eleição. De qualquer maneira, a disputa de 2004 será nacional”, aposta Arthur Virgílio. “Em

vez do espetáculo do crescimento, o governo Lula só trouxe desemprego, impostos, inflação, arrocho e juros altos”, faz coro o pefelista José

Carlos Aleluia. “Eleição para prefeito é tema local, de interesse das comunidades. Nenhum candidato é maior do que o partido ou do que

o presidente”, rebate Genoino. O governo garante que sua tropa está pronta para encarar vaias e hostilidades. “Político tem que levar lama

na cara. O importante é estar presente”, diz Genoino sobre as manifestações contra Marta Suplicy, que bateu boca com uma

paulistana em meio às chuvas, e o ministro Ricardo Berzoini, que levou uma torta no rosto, no Ceará.