O governo Lula está rachado. De um lado, a equipe econômica e seus compromissos com o mercado financeiro. De outro, ministros ávidos por tocar obras e desengavetar projetos. Os grupos, na verdade, se estranham desde o primeiro minuto da era Lula, mas suas diferenças nunca haviam ficado tão à vista quanto nas duas últimas semanas. Catalisadora das divergências, a ata da reunião de janeiro do Comitê de Política Monetária (Copom), divulgada na quinta-feira 29, provocou ondas de choque duradouras e serviu de estopim para a primeira grande crise dentro do governo Lula (leia às págs. 26 e 27). Além, é claro, de ter quebrado um ciclo de paz no mercado financeiro, que já vinha preocupado com a sinalização do Banco Central americano de elevar os juros. A medida pode reduzir o fluxo de investimentos no Brasil. O deputado federal Delfim Netto (PP-SP) resumiu numa frase o coro dos descontentes: “Eles estão vendo fantasmas”, sobre o alarde promovido pelo Copom em torno da ameaça inflacionária.

A disputa reproduz o que nos últimos anos, sob Fernando Henrique Cardoso, era chamado de guerra entre monetaristas e desenvolvimentistas. Uns concentrados em manter os gastos sob controle extremo, com uma política monetária voltada para o combate à inflação a qualquer preço. Outros preocupados em promover o crescimento e gerar empregos, mesmo que isso signifique audácia no manejo dos juros e dos gastos públicos. Essa é a parte teórica da briga. A prática, muito mais emocionante, envolve movimentos de bastidores, boatos e intrigas. O embate é complexo, mas o foco recai sobre o secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy. Em duas ocasiões, a interlocutores diferentes, Lula o espinafrou. “Eu não suporto ouvir a voz desse cara. Não podemos ser reféns de uma pessoa como essa”, impacientou-se o presidente. A demissão de Levy, que não deve ser entendida como sinal de mudança brusca na política econômica, já é tida como mera questão de oportunidade.

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, demissionário, segundo a boataria da quarta-feira 4, fica. Foi ele quem abriu a reunião ministerial da sexta-feira 6, no último ato de um esforço público do governo de dissipar os temores do mercado e mostrar que a retomada econômica já começou. Palocci também ganhou um afago de Lula, horas antes da reunião. “Nós somos a primeira experiência no Brasil que está levando este país à estabilidade sem inventar nenhum plano econômico. Não existe um plano Palocci, um plano Lula…”, disse o presidente, num claro sinal de fé na ortodoxia de seu ministro da Fazenda. À tarde, Lula seguiu para a reunião ministerial, na qual seria decidido um corte de R$ 4 bilhões no orçamento do ano. A intenção do governo é preservar ao máximo os investimentos, realizando economias no custeio da máquina estatal. O esforço de manter o rumo na economia não deve poupar a figura de Levy, o homem que tem a chave do cofre e cultiva um estilo enérgico, considerado intrometido. Funcionário do FMI, é um aplicado epígono da ultraconservadora Universidade de Chicago. Sua biografia liberal provoca engulhos em boa parte do governo. O ministro José Dirceu o considera “reacionário”.

Na viagem à Índia, na semana passada, Lula chamou o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, num canto do avião, contou-lhe ter ouvidos queixas e mais queixas e recomendou a substituição do tesoureiro. Palocci contemporizou. Prometeu enquadrar o desinibido Levy. Alegou ainda que não seria hora de gerar atritos com o FMI. Lula consentiu, mas mantém Levy na alça da mira.

Bedelho – De fato, o secretário do Tesouro mete o bedelho em assuntos que fogem à gestão orçamentária e financeira. Suas digitais estão em todos os becos do governo, do acordo com o FMI ao novo marco regulatório e parcerias público-privadas, além da penúria generalizada na Esplanada. Recentemente, o deputado Miro Teixeira – ainda no comando das Comunicações – dirigiu uma pergunta a Palocci numa reunião de governo. Levy se arvorou em responder e foi secamente cortado por Miro: “Eu não estou perguntando ao senhor, minha pergunta foi para o ministro.” As broncas contra a postura de Levy vão se acumulando na Casa Civil.

Numa das reuniões técnicas do novo modelo energético, o secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, escudeiro de Levy, espinafrou o plano apresentado pelo Ministério das Minas e Energia, na frente de 19 executivos de empresas
do ramo. A irritação foi tão grande que a ministra Dilma Roussef ligou para Dirceu duas vezes, num mesmo dia, protestando contra a investida. O
chefe da Casa Civil passou a mão no telefone e
ligou para Palocci, que prometeu, de novo, enquadrar os auxiliares. Na conversa, o ministro
da Fazenda esclareceu que não havia orientado
a equipe a agir daquela maneira.

Todas essas pressões e contrapressões tornaram-se explosivas a partir da divulgação da ata do Copom. É bom que se entenda o contexto em que tudo aconteceu. Antes da reunião do BC sobre a taxa de juros, José Dirceu informou ao mundo que a autonomia do banco, promessa do início do mandato, fora adiada. Por pressão de Palocci, Dirceu recuou, dizendo que não havia decisão sobre o tema. Na semana seguinte, o BC elevou ao quadrado a própria ortodoxia e manteve os juros nos sufocantes 16,5%. Não foram poucos os analistas que entenderam o “atrevimento” como um sinal inequívoco de autonomia. Afinal, o próprio Lula vem clamando por crescimento desde a virada do ano.

De Genebra, na Suíça, o presidente jogou uma ducha fria nas aspirações do presidente do BC. Carimbou de acadêmica a discussão sobre autonomia. Para a classe política, o desprestígio do banqueiro central ficou evidente. “Lula colocou Dirceu acima de Palocci e deu o recado que espera mudanças na economia”, analisa o vice-líder do PMDB, Fernando Diniz (MG). Foi quando começaram a aparecer notas em jornais, segundo as quais Meirelles até tentara reduzir os juros para 16,25% anuais, mas foi vencido. Ou seja, Meirelles seria um executivo fraco, apesar de bem-intencionado. Tal versão teria sido disseminada pela central de boatos da Casa Civil, como tática para amolecer os corações monetaristas nas futuras rodadas sobre juros.

O contra-ataque veio na quarta-feira 4. Em Nova York surgiu o rumor de que Meirelles estava demissionário. De pronto, o ministro Palocci desmentiu. Foi seguido por Dirceu e pelo próprio presidente. Lula foi informado dos detalhes da boataria por seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, ainda na base aérea de Brasília, ao chegar do Nordeste. Sorriu e disse-lhe: “É mais fácil você cair do que o Meirelles.” Em questão de horas, o presidente do BC passou de fraco e claudicante a forte e estratégico. Como a contra-informação veio do mercado americano, onde o presidente do BC construiu a carreira, disseminou-se a versão de que o próprio Meirelles plantara o boato para recuperar o prestígio perdido. De uma forma ou de outra, conseguiu. No meio do tiroteio, o mercado financeiro entrou em parafuso. A Bolsa caiu, depois subiu, o dólar também, o risco-país acelerou, desabou, estabilizou-se. A intranquilidade do mercado provocou uma resposta lapidar do presidente. “O mercado está nervoso? Eu não”, disse na quinta-feira 5.

Antes do chiste presidencial, o ministro Palocci suou a gravata para abafar a crise. Foi à televisão, encontrou-se com deputados, promoveu uma entrevista coletiva. Em todas as ocasiões, disse exatamente a mesma coisa: a política econômica não muda, o debate enriquece, não há briga com o superministro Dirceu, as condições para o crescimento permanecem boas… Ele só escorregou quando foi perguntado sobre as críticas torrenciais à atuação “dos subordinados”, no plural. Palocci respondeu sobre Levy, no singular. “Guardiões do Tesouro não são exatamente as pessoas mais amadas dos governos.” O tesoureiro ainda encontrou tempo, durante a semana, de acirrar a disputa entre os grupos: informou que a área econômica iria bloquear um terço dos R$ 12 bilhões de investimentos previstos para este ano, para desgosto do ministro do Planejamento, Guido Mantega. Começa mais um assalto.

 

Apesar dos juros

O ambiente hostil à produção, formado por juros altos, burocracia e tributos em profusão, não impede que o brasileiro se destaque por sua capacidade de arregaçar as mangas e traçar o futuro profissional por conta própria. Uma pesquisa realizada em 30 nações, apresentada pelo Sebrae na semana passada, mostra que somos hoje o sexto país mais empreendedor da lista (no ano passado estávamos em sétimo). Ao todo, são 14 milhões de brasileiros donos de negócios com até dois anos e meio de atividade. É gente que se move por necessidade (47%) e, cada vez mais, por oportunidade (53%). São homens (54%) e, cada vez mais, mulheres (46%) entre 18 e 64 anos, em busca do sonho de criar o próprio emprego e, se possível, empregar os outros. “Diante de uma legislação tão perversa, empreender no Brasil é um ato de heroísmo”, disse o presidente do Sebrae, Silvano Gianni, no lançamento da pesquisa. Um empurrãozinho do Copom faria a alegria dessa gente. 

O documento que alargou a fenda existente entre a equipe econômica e o restante do governo tem dez páginas de texto, fragmentado em 63 parágrafos numerados. A linguagem é técnica, praticamente indecifrável para
um leigo que resolva percorrer suas 6.711 palavras. A ata da reunião de janeiro do Comitê de Política Monetária (Copom), divulgada na quinta-feira 29, cita quatro diferentes índices de inflação nas sete primeiras linhas, desce a detalhes, como o preço do arroz ou a alta da tarifa dos ônibus em Fortaleza, mergulha em tecnicidades, como “métodos das medidas aparadas simétricas”,para, afinal, justificar a manutenção dos juros básicos da economia
em 16,5% ao ano.

Uma sensação generalizada de que a decisão foi conservadora em demasia ficou no ar e potencializou a velha discussão sobre a primazia da política monetária sobre medidas de incentivo ao crescimento da economia. Ao contrário das outras 12 vezes em que o Copom fixou os juros no governo Lula, desta feita o mercado financeiro participou da chiadeira, outrora generalizada apenas entre representantes do setor produtivo. Uma questão aparentemente superada, como o controle da inflação, na ótica do mercado, voltou à tona por obra da ata. Desde que ela foi divulgada, o mercado vive surtos de intranquilidade. Há tempos, as centrais de boatos não funcionavam com tanto vigor. Dos seis pregões da Bolsa de Valores de São Paulo que se seguiram, cinco terminaram no negativo (até a quinta-feira 5).

A ata é a única forma de saber o que os formuladores da nossa política econômica pensam, discutem e decidem. Sabe-se, por exemplo, que um dos nove membros do Copom optou por uma redução dos juros de 0,25% – um ato que, se aprovado, certamente teria poupado o governo do desgaste interno e externo dos últimos dias.
Foi um voto vencido, contra oito que optaram pela estagnação da taxa. Esse herói solitário da esquadra José de Alencar (o vice-presidente da República, símbolo da grita contra os juros altos) terá sua identidade preservada pela eternidade, já que o sigilo reina ao longo de todo o processo. O cuidado se justifica: qualquer décimo alterado na Selic significa milhões, até bilhões de reais em apostas realizadas no mercado financeiro. O dom da clarividência, no caso, é um patrimônio de valor incalculável.

A ata de janeiro foi a 92ª, e a mais polêmica da história do Copom, instituído em junho de 1996 com a missão de fixar diretrizes para a política monetária com uma transparência e uma estrutura decisória inexistentes até então. Em 1999, quando o governo brasileiro passou a basear todo o seu esforço em domar os preços, virou obrigação do Copom perseguir a meta de inflação definida pelo Comitê Monetário Nacional (CMN), composto pelos ministros do Planejamento e da Fazenda, e pelo presidente do Banco Central (BC). Em 2004, a meta é de rigorosíssimos 5,5%. Os juros são mantidos altos por conta dela. A lógica, numa interpretação superficial, é bastante simples: com crédito mais caro na praça, reduz-se o consumo. Por consequência, há menos pressão de alta sobre os preços.

A reunião de janeiro, como sempre acontece, durou dois dias. No dia 20, os nove membros do Copom* reuniram-se com seis diretores de departamento do BC e cinco assessores, no oitavo andar da sede do banco, para uma fase de apresentações técnicas. O salão, de pé-direito alto, é ornado com um belo painel de Portinari representando o Descobrimento do Brasil. No dia seguinte, só o grupo dos nove se dirigiu ao 20º andar do prédio para bater o martelo. Juntando as duas sessões, foram cinco horas e meia de reunião. O freio na curva de redução de juros estava decidido.

Em vários momentos, a ata cita o temor da volta da inflação. Frases como “percepção de maior disseminação das altas de preços” e “em janeiro, os índices de preços no atacado e ao consumidor deverão continuar registrando aceleração” são cristalinas em sinalizar a disposição de manter um controle rígido. Até quem lida com isso no dia-a-dia considerou a decisão exagerada. O economista Paulo Pichetti, coordenador do IPC da Fipe, disse que os sinais emitidos pelo dragão inflacionário “não são tão convincentes” quanto quer o comitê. Os que acusam o Copom de insensibilidade perante a realidade do País talvez se surpreendam com os vigorosos parágrafos (principalmente o 16 e o 17) dedicados à análise da atividade produtiva e do varejo. “O cenário mais provável é de continuidade
da expansão industrial”, diz a ata. Resultado, justiça seja feita, dos dez pontos porcentuais eliminados da taxa Selic desde junho de 2003. A decisão de manter os juros inalterados é “temporária”, lê-se no parágrafo 32. A próxima reunião (está na ata, item 34) começa em 17 de fevereiro. Que Portinari, célebre por seus retratos de trabalhadores braçais, jogue suas luzes sobre os homens do Copom. Que eles deixem o Brasil trabalhar.

João Paulo Nucci