A regra é clara, diria o juiz de futebol Arnaldo Cezar Coelho. O artigo 192 da Constituição brasileira limita a cobrança anual de juros a 12% ao ano. Mas, atuando como bons árbitros sul-coreanos, as instituições financeiras ignoram solenemente a lei e ditam as normas de seu próprio jogo. O desrespeito começa no Banco Central, que estipula uma taxa básica para o mercado de 18,5% ao ano (e que já chegou a 40% em outras épocas). No fim das contas, o usuário do cheque especial chega a pagar, por mês, aquilo que a Carta Magna determina que deveria ser cobrado durante o ano inteiro.

O drible acontece diariamente e, apesar de algumas contestações judicias darem ganho de causa aos devedores, seria otimismo demais acreditar que um dia o artigo será respeitado por todos os bancos e financeiras. A prática transforma a Constituição em letra morta e é a mãe de todos os desrespeitos aos direitos garantidos por leis, conjuntos de normas, códigos e jurisprudências em vigor no Brasil, e ignorados pelos mais interessados – os consumidores – ou simplesmente desrespeitados flagrantemente. Uma amostra de fatos exemplares da má relação fornecedor-consumidor está no quadro abaixo.

“O cidadão comum nem sequer sabe de seus direitos e deveres. E os prestadores de serviços e fabricantes de produtos vivem tentando enganá-los”, resume o presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Nélson Miyahara. A legislação brasileira de proteção é uma das mais avançadas do mundo. O Código de Defesa do Consumidor, em pouco mais de uma década de vigência, fez amadurecer as relações de consumo no Brasil. “O consumidor está mais incisivo e os empresários começaram a perceber que se tornavam mais competitivos se se adequassem às regras”, avalia a advogada e coordenadora de atendimento ao associado da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Pro Teste), Maria Inês Dolci. Quanto a isso, há consenso até entre os defensores mais pessimistas. Mas, apesar dos gigantescos avanços na matéria nas últimas décadas, ainda há um vazio de consciência entre os brasileiros. “É uma questão de cidadania”, diz Miyahara.

É a cidadania que perde quando, por exemplo, os bancos tentam criar um código próprio de relação com o consumidor – uma tentativa até agora frustrada por pressão dos órgãos de defesa. Ou quando os planos de saúde, por conta da ausência de punições severas por parte do governo, deitam e rolam sobre os direitos de seus associados e atingem o posto de campeões das reclamações. “Hoje, os grandes problemas estão concentrados nos serviços públicos recentemente privatizados. As agências reguladoras, criadas para fiscalizar as atividades dos concessionários, não funcionam adequadamente”, diz Maria Inês.

O principal veículo para as reclamações são as associações de defesa. Em última instância, a saída é a Justiça. “Muitas vezes a morosidade do Judiciário é o fator dominante para a desistência do consumidor em busca de seus direitos. Ele acaba pesando o custo, o tempo e o benefício que terá e acaba por abdicar do direito pela precariedade do sistema e pela falta de celeridade”, avalia o advogado Miguel Pereira Neto. Resta ao consumidor se armar de paciência e continuar (ou começar) a protestar.

Conheça alguns casos em que você pode estar sendo lesado

• As instituições financeiras não podem cobrar mais de 12% ao ano de juros. Além disso, é vetada a cobrança de juros sobre juros.
• O consumidor tem até sete dias para devolver qualquer produto, mesmo que não apresente defeito, em compras feitas via internet, telefone, reembolso postal, catálogo ou em domicílio.
• Na antecipação do pagamento de financiamentos, o devedor tem o direito a um abatimento proporcional de juros e outros acréscimos.
• Pessoas portadoras do vírus HIV, cardíacos em estado grave, inválidos, entre outros, têm direito à isenção do pagamento do imposto de renda sobre pensão.
• Escolas não podem cobrar juros de mercado por parcelas em atraso. Elas não são instituições financeiras, portanto só podem cobrar multas e outras sanções financeiras previstas no contrato.
• As cláusulas de qualquer contrato consideradas leoninas (claramente prejudiciais a uma das partes) podem ser anuladas na Justiça.
• Quando há cobrança de um valor superior ao devido, a quantia deve ser devolvida em dobro.
• Serviços essenciais, como água e luz, não podem ser interrompidos sem comunicação prévia e sem oportunidade de defesa. Além disso, a multa não pode exceder 2% e a concessionária do serviço tem até 90 dias após o consumo para emitir a conta.
• O cobrador não pode expor o devedor ao ridículo. Por exemplo, fazer a cobrança em público.
• Ninguém é obrigado a fazer compras “casadas”. Por exemplo, se você precisa de apenas um pé da geladeira, o vendedor é obrigado a vender apenas um, e não um jogo com quatro. Outro exemplo: um banco não pode obrigá-lo a adquirir um seguro para lhe oferecer o cheque especial.
• Gastos clínicos com doenças provenientes de alimentos contaminados devem ser bancados pelo estabelecimento que
vendeu o produto. Além disso, é possível ainda cobrar outros danos materiais (ausência prolongada ao serviço, por exemplo), e também danos morais.
• É considerado crime utilizar peças usadas no reparo de equipamentos sem a prévia anuência do consumidor.
• Quando se compra um carro usado, o prazo de garantia continua válido para o novo dono.
• Frases do tipo “não nos responsabilizamos por objetos deixados no interior do veículo” não têm efeito legal nenhum.
• Toda vítima de trânsito tem direito à indenização do
seguro obrigatório. Basta procurar qualquer seguradora e
comprovar o sinistro.

• A carência dos planos de saúde não pode ser prolongada em casos de inadimplência. O atendimento também não pode ser suspenso antes de 60 dias de atraso (consecutivos ou não durante um ano).
• O fornecedor pode ser obrigado a indenizar o consumidor (e não apenas a trocar a peça) em casos de entrega de produto em desacordo com o solicitado.
• Se algum dano ocorrer em um prédio por falta de manutenção, o ônus é do condomínio.
• Bares e restaurantes não podem cobrar consumação mínima nem estipular taxas abusivas pela perda do cartão de consumo.
• O consumidor pode solicitar abatimento no valor da mensalidade em casos de má prestação de serviços. Por exemplo: se o telefone fica mudo durante três dias por problemas técnicos da operadora, ela é obrigada a conceder o desconto proporcional.
• Se o mesmo produto estiver em exibição numa loja por dois valores diferentes, vale o mais baixo.
• O consumidor tem o direito de renegociar e revisar cláusulas
de contratos que, por algum motivo, se tornaram
excessivamente onerosas.

Onde reclamar
Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) – Na Grande São Paulo, o telefone é o 1512. O site é www.procon.sp.gov.br. Em outras cidades, consulte o Procon local.

Pro Teste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor) – (0xx11) 5573-4696, (0xx21) 2213-1118 ou www.proteste.org.br

OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) – (0xx11) 3116-1000. Fora de São Paulo, é preciso procurar a OAB local. Na internet, www.oab.org.br.

Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) – (0xx11) 3874-2152 ou www.idec.org.br