Costela de porco para Odé, costela de boi para Ogum. Gaúcho serve churrasco até para santo. E haja sal grosso. Do rio Guaíba aos pampas, descendentes de alemães e italianos balançam ao toque dos tambores e fazem do Estado o maior terreiro de axé do País. É este o cenário apresentado pelo Censo Demográfico 2000, divulgado recentemente pelo IBGE. Pode parecer estranho, mas 1,63% dos gaúchos professam alguma religião afro-brasileira, enquanto a média nacional é de 0,34%. Pela primeira vez, o Rio de Janeiro ficou em segundo lugar, com 1,32%. Na Bahia, terra de Mãe Menininha do Gantois, o índice cai para 0,09%: uma desconfortável 13ª posição.

Os números surpreendem quando comparados aos índices de raça e cor da população. Enquanto 75% dos baianos e 45% dos fluminenses se declararam pardos ou negros, apenas 13% dos gaúchos são descendentes de africanos. O campeão nacional do axé é também o segundo Estado mais branco do Brasil, atrás apenas de Santa Catarina. O fenômeno reflete o que o professor de antropologia da USP Vagner Gonçalves da Silva chama de transformação do candomblé em religião de conversão. “As religiões étnicas foram praticamente extintas. O catolicismo não é uma religião de hebreus e mesmo o judaísmo já permite conversão. Do mesmo modo, o candomblé deve ser encarado como religião universal”, explica. “Alemães podem cultuar seus orixás e não precisam abdicar de sua religião de berço. Na Bahia, a maioria dos pais-de-santo vai à igreja. O Dia de Iemanjá é o Dia de Nossa Senhora dos Navegantes e até as fitinhas do Bonfim têm as cores dos santos”, diz o antropólogo.

No Rio Grande do Sul, as religiões afro-brasileiras assumem formas um pouco diferentes das práticas hegemônicas no Rio e na Bahia. Os gaúchos se dividem entre os terreiros de umbanda – religião nascida no Brasil com influências negras, indígenas e européias – e os templos de batuque, uma vertente do candomblé com pequenas variações. Tanto uma quanto a outra raramente são citadas pelos adeptos na hora de responder ao censo. Por isso, os resultados causam surpresa. Para Pedro de Oxum Docô, um dos mais festejados pais-de-santo de Porto Alegre, o primeiro lugar no ranking deve-se à convicção dos conterrâneos. “Muitos batuqueiros se declaram católicos para o recenseador. Talvez isso aconteça com menos frequência no Rio Grande do Sul”, supõe. “Esta auto-afirmação do gaúcho explica-se em parte aos incentivos do governo”, conta Pedro, vestindo abadá e bombacha. Ele se refere a eventos públicos introduzidos nas últimas administrações, como a Festa de Oxum, realizada desde 1994 no dia 8 de dezembro, e a Semana da Umbanda, que leva centenas de médiuns à praça pública em frente à prefeitura.

Conforme estimativa levantada pela Federação da Religião Afro-brasileira (Afrobras), com sede em Porto Alegre, há cerca de 50 mil templos dedicados à umbanda ou ao batuque em todo o Estado. O número
deles cresce a cada ano, assim como o de lojas especializadas em
artigos religiosos. O fenômeno navega contra a corrente. De 1991 a 2000, de acordo com o censo, a proporção de adeptos de religiões
afro-brasileiras no País caiu de 0,45% para 0,35% da população. Enquanto a maioria das tradições culturais morre à medida que seus praticantes envelhecem, o batuque gaúcho não encontra resistência
nem mesmo entre os jovens. “Na minha sala de aula, quase todo
mundo é batuqueiro”, conta a estudante do ensino médio Fayra Vieira,
17 anos. Acostumada a virar a noite com vestido branco e colar de contas azuis, a filha de Iemanjá aprendeu a cantar em dialeto africano. “Hoje, eles são gravados em CD para que os fiéis possam praticar em casa”, conta Pedro de Oxum. Como a maioria dos babalorixás gaúchos, Pedro confirma a tese da conversão religiosa. Ele estudou em colégio católico, foi coroinha e ia à missa cinco vezes por semana. Hoje, aos
41 anos, Pedro comanda um dos maiores templos de batuque da
capital, além de um site e um programa na TV Guaíba.

Simplicidade – Mas não é preciso internet nem televisão para atrair adeptos. “O africanismo cresce no Rio Grande do Sul porque é mais simples. Nossas divindades vêm até nós, não ficam escondidas em um plano superior”, resume Genezi de Araújo, conhecida como Mãe Iara e dona de um centro de umbanda. Foi esta sua experiência pessoal: “Quando era menina, tinha uns ataques que todo mundo pensava ser epilepsia. Fui a vários médicos, até que uma vizinha sugeriu que eu visitasse um terreiro. Era apenas meu caboclo tentando se manifestar”, conta. “Sempre que recebia um passe durante a seção, voltava para casa tranquila”, diz. A mesma tranquilidade exala dos olhinhos da
pequena Júlia Eggers Rehbein, de apenas três meses, que toda semana visita o centro de Mãe Iara. Às vezes, dorme nos braços de um médium, alheia ao cheiro de charuto e incenso. “Minha família não gosta, mas trago a Júlia toda terça-feira, desde a primeira semana de vida”, conta a mãe, Carla Eggers, 30 anos, uma loira de olhos claros. A família,como muitas no Estado, é alemã, luterana até a raiz dos cabelos. Santo de casa não faz mesmo milagre.