O comboio de bandidos poderia ser mais um entre tantos que se tornaram tristemente frequentes na violenta rotina das madrugadas cariocas. Por volta de 3h30m da segunda-feira 24, dois automóveis Fiat Siena, um branco e outro azul, e uma van azul transportavam vários homens com armas de guerra, como fuzis AK-47 e FAL, e granadas de uso exclusivo das Forças Armadas. No centro da cidade, o bonde, como os traficantes chamam esse tipo de comboio, deu uma demonstração de seu poder de fogo, disparando mais de 200 tiros e lançando duas granadas. O alvo, dessa vez, não eram os integrantes de uma facção criminosa rival ou cidadãos incautos. Numa inédita demonstração de ousadia, os marginais alvejaram com mais de 200 disparos o imponente Centro Administrativo São Sebastião, sede da Prefeitura do Rio de Janeiro. Também lançaram duas granadas, que não detonaram. Nada menos que 55 janelas de trinta salas foram estilhaçadas, inclusive a da chefia de gabinete do prefeito Cesar Maia (PFL). Desarmados, os guardas municipais de plantão fugiram. “Foram dez minutos de terror. O chão tremia, o prédio tremia”, descreve um dos guardas. O prefeito pediu a decretação do estado de defesa na cidade e o presidente Fernando Henrique Cardoso, que estava no Rio, visitou o prédio. “Os bandidos tentam mostrar que há um poder paralelo, mas o poder é o que o povo elegeu”, disse o presidente, prometendo medidas enérgicas.

O ataque foi mais uma ação audaciosa na série de confrontos diretos dos bandidos contra autoridades constituídas. Policiais, diretores de presídios, juízes e promotores entraram para a lista de vítimas em potencial dos marginais. Delegacias, prédios de secretarias estaduais e agora até mesmo a sede do Poder Executivo municipal estão na mira. “Ataques desse tipo têm um peso simbólico muito grande, uma repercussão maior”, avalia o sociólogo Ignacio Cano, professor da Uerj, estudioso da segurança pública. Nesse caso, Cano estranha que os bandidos tenham atacado o poder municipal, que nada tem a ver com a repressão à criminalidade. “Pode ser uma ação com motivação política, para desestabilizar o governo estadual”, observa.

Sem provas – O secretário estadual de Segurança, Roberto Aguiar, também levantou a possibilidade de o ataque fazer parte de uma orquestração para influenciar as próximas eleições. “Estou sabendo que existem articulações para aumentar a insegurança e mudar o voto”, afirmou, sem apresentar nenhuma prova. Com ou sem fundo político, o atentado acabou sendo explorado à exaustão pelos opositores do PT, partido que governa o Rio. No mesmo dia, Fernando Henrique visitou o prédio acompanhado pela candidata ao governo pelo PFL, Solange Amaral, apoiada pelo PSDB. No dia seguinte, foi a vez de o próprio candidato do PSDB à Presidência, José Serra, posar para fotos durante visita ao local do crime. O tucano acusou a governadora Benedita da Silva e seu antecessor, o presidenciável do PSB, Anthony Garotinho, de “eficiência escassa”, defendeu ações sensacionalistas, como o fechamento das fronteiras, e descartou a possibilidade de atentado com motivações eleitorais.

Seja de autoria de traficantes, seja de agentes políticos, de qualquer forma o crime foi perpetrado por bandidos que se aproveitaram da impotência do Estado em mais uma afronta absurda às autoridades constituídas. As exibições de audácia da bandidagem contra os agentes do Estado são cada vez mais frequentes em todos os níveis. Em 14 de maio, a Secretaria Estadual de Direitos Humanos, a 500 metros do Palácio Guanabara, foi atacada a tiros de fuzil e granadas. Esse crime recente continua sem solução, assim como outros mais antigos. Há dois anos, a diretora da penitenciária Bangu I, Sidneya de Jesus, foi assassinada com vários tiros quando chegava em sua casa, na Ilha do Governador, zona norte. A diretora tomava na época várias medidas para controlar o contato entre advogados e detentos, inclusive instalando aparelhos de escuta na sala de visitação. “É inaceitável que até agora não se tenha a mais leve idéia de quem seja o autor do assassinato de Sidneya ou de quem jogou a bomba na secretaria estadual”, cobra Julita Lemgruber, socióloga e ex-diretora do Departamento Geral do Sistema Penitenciário do Estado (Desipe). “A impunidade estimula o crime.”

O presidente da Associação de Cabos e Soldados da PM, Vanderlei Ribeiro, concorda: “Os bandidos perderam o respeito pelas autoridades por causa da impunidade, da corrupção.” Somente este ano, oito PMs foram mortos em serviço. A Polícia Civil também sofre. Em outubro do ano passado, um caminhão dirigido por bandidos abriu um buraco na parede da Polinter, a mais segura carceragem do Rio, e possibilitou a fuga de 14 presos. Várias delegacias já foram alvejadas por disparos. “Quando se ataca uma autoridade, a intenção é enfraquecer os poderes constituídos”, afirma Wladimir Reali, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio de Janeiro. “Se medidas enérgicas não forem tomadas, o alvo poderá ser o Palácio Guanabara”, emenda o delegado.

No cardápio de medidas drásticas, a mais enfática foi a de Cesar Maia, que pediu a decretação do estado de defesa no Rio. O dispositivo, nunca usado, restringe o direito de reunião e amplia as hipóteses de grampo telefônico legal. A idéia foi rejeitada pelo ministro da Justiça, Miguel Reale Junior. “O tráfico já não tem direito de reunião”, ironizou. Fernando Henrique criticou o Judiciário por libertar criminosos perigosos. “Muitos desses bandidos obtêm habeas-corpus e são soltos”, comentou, sendo contestado pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio, Marcus Faver. “Os juízes apenas seguem as leis”, rebateu o desembargador.

Estardalhaço – A primeira proposta de impacto da governadora Benedita foi defender a transferência para outros Estados dos líderes do tráfico presos em Bangu I. Apesar das falas inflamadas, os responsáveis pela segurança dos cariocas pareciam perdidos. O chefe da Polícia Civil, Zaqueu Teixeira, chegou a nomear o delegado Hélio Vígio, tido como um dos mais truculentos da polícia e acusado de ligação com o jogo do bicho, para chefiar um grupo de combate ao tráfico. Voltou atrás em 24 horas. Ao comentar o atentado à prefeitura, Teixeira perdeu outra oportunidade de ficar em silêncio. “Vejo muito estardalhaço, muito barulho, mas o dano foi pequeno se levarmos em consideração o poderio que eles quiseram demonstrar.”

As autoridades estaduais fariam melhor se tentassem sanar suas
próprias falhas. Poderiam, por exemplo, explicar como o criminoso Chapolim usou um telefone celular em Bangu I no último dia 19,
poucas horas depois de promotores do Ministério Público terem apreendido cinco aparelhos na penitenciária. A ação foi resultado
de uma investigação que gravou conversas telefônicas em que os traficantes presos negociam até a compra de um míssil. A ligação posterior de Chapolim foi novamente descoberta pelos promotores. O traficante, braço direito de Fernandinho Beira-Mar, encomendava quatro novos aparelhos para manter a dominação do tráfico nos morros do Rio. O Desipe, mais uma vez, nada sabia.

ATAQUES DO PCC E DA MÁFIA CHINESA

Explosões de bombas em fóruns, prédios públicos e atentados
a tiros tinham como objetivo minar a credibilidade do governo de
São Paulo. Este era o plano do Primeiro Comando da Capital (PCC), que realizou 14 atentados este ano, matando quatro pessoas e ferindo 16. Os detalhes dessas ações foram conhecidos em maio através de grampos telefônicos e serviram de provas para o Ministério Público denunciar, de uma tacada só, 14 integrantes da facção criminosa e três advogados por crimes de formação de quadrilha ou bando. Fora isso, o governo adotou novas medidas, e a cúpula do PCC foi transferida para Presidente Bernardes, único presídio no País com bloqueador de celular.

Os atentados de 11 de setembro em Nova York influenciaram os criminosos. “Os líderes se identificaram. Ao telefone, tratavam-se como Bin Laden e terrorista”, conta o promotor Roberto Porto, do Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco). De janeiro a março, São Paulo viveu um clima de horror. Para se ter uma idéia, em janeiro, um ônibus que transportava agentes penitenciários foi metralhado, matando um funcionário e ferindo sete. No mês seguinte, a Secretária da Administração Penitenciária foi atacada três vezes. Em uma delas, uma granada explodiu na porta do prédio e feriu cinco pessoas. O fórum de São Vicente foi metralhado – um advogado morreu e um vigia ficou ferido. Em março, a polícia desativou um carro-bomba com 40 quilos de explosivos no fórum da Barra Funda. Cinco homens invadiram o 3º DP de Sumaré e mataram dois investigadores. O último atentado, em 18 de março, aconteceu às 10h30 da manhã, quando quatro homens dispararam vários tiros contra o fórum de Itaquera.

A crueldade, no entanto, atingiu o seu ápice com a morte do auditor fiscal Hélio Pimentel Júnior, sequestrado e decapitado em 15 de maio. Além da cabeça, as mãos do auditor também foram cortadas. Ele trabalhava na inspetoria da Receita Federal em São Paulo e estava investigando crimes de sonegação fiscal. Em vez do PCC, suspeita-se que ele tenha sido vítima da máfia chinesa, outra organização criminosa que atua em São Paulo há algum tempo. Dois dias depois da morte de Pimentel, uma quadrilha invadiu o prédio da inspetoria, houve troca de tiros e um bandido foi morto no local.

Madi Rodrigues