Diante da barbárie em que o País está mergulhado, hastear a
bandeira contra a violência como forma de enfrentar a criminalidade é um ato de coragem. Mas esse é um atributo que não falta ao vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo. À frente do Ministério Público do Estado de São Paulo, este senhor franzino, de quase 80 anos (a completar no dia 5 de julho), combateu, no final dos anos 60, o famoso esquadrão da morte. Era um grupo de 35 policiais civis – liderados pelo lendário e truculento delegado Sérgio Fleury – que decidiu agir como justiceiros, caçando e eliminando os bandidos, sem levá-los à Justiça. Assim como nos tempos da ditadura militar, Bicudo continua tentando enterrar o lema segundo o qual “bandido bom é bandido morto”, num momento em que a polícia mata mais do que nunca, fazendo justiça com as próprias mãos. “Sei que não é nada popular essa luta, ainda mais agora que as pessoas estão com muito medo. Mas o incentivo à violência pode resultar na reviravolta do próprio sistema democrático. Todas as pessoas, inclusive os bandidos, têm direito de serem julgadas por um juiz imparcial, dentro da lei”, ressalta.

Incansável, enérgico, humanista, Bicudo dedica-se agora a mais uma causa pela cidadania. Está empenhado em provar que os 12 integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) mortos durante uma operação da Polícia Militar de São Paulo na rodovia Senador José Ermírio de Moraes (Castelinho), no dia 5 de março, foram assassinados sem reagir ao tiroteio da barreira policial. Com base em laudos periciais, em relatos de parentes dos mortos e dos próprios policiais que participaram da ação, ele promete levar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, a qual presidiu no ano passado. “Recebi laudo feito pelo médico legista Nelson Massini (da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em que ele analisou cópias dos 12 laudos necroscópicos emitidos pelo Instituto Médico Legal de São Paulo. Eles morreram com tiros do peito para a cabeça. Alguns tiros atingiram os braços, as mãos, em gestos de defesa. A polícia disse que houve tiroteio de parte a parte, mas isso não aconteceu, inclusive porque os exames feitos não mostraram zona de esfumaçamento nas mãos (vestígios de pólvora, o que provariam a troca de tiros). A polícia entrou no ônibus e eliminou quem estava lá dentro”, afirmou Bicudo, que também preside o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, ligado à Arquidiocese de São Paulo. Suas idéias e atuação incomodam muita gente. “Depois que me empenhei neste caso, o número de palavrões e ameaças de morte que recebi, por telefone e por carta…”, conta, lembrando que nem nos tempos da luta contra o esquadrão da morte sofria tantas reações negativas. Para mostrar que a violência policial continua tão ou mais presente quanto antes que Bicudo resolveu relançar, na quinta-feira 27, o livro Meu depoimento sobre o esquadrão da morte, pela Editora Martins Fontes. De 1976, quando surgiu a primeira edição, até hoje, o livro já teve dez edições e transformou-se num marco na história da defesa dos direitos humanos.

Condecorado há dois anos com a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, Bicudo constata que hoje é mais difícil defender a vida e a Justiça do que nos duros tempos da ditadura. “As coisas mudaram para pior. Antigamente, o esquadrão da morte era um grupo restrito, formado por policiais civis que sentiam-se diminuídos diante da PM e queriam mostrar serviço matando bandidos. Hoje essa prática foi englobada pelas polícias militar e civil. Atualmente, a Polícia Militar atua, de modo geral, como se fosse um esquadrão da morte”, lamenta. Ele lembra que o esquadrão da morte tal como existia foi desbaratado por volta de 1972, mas seus principais líderes nunca foram presos e julgados. Dos 35 policiais acusados, apenas seis foram condenados, os que estavam na base da pirâmide hierárquica. Mas o esquadrão deixou uma triste herança para o País: seu método de atuação foi aproveitado pela repressão política. “Hoje, oficialmente cerca de sete mil pessoas são mortas por ano em embates com a polícia. Não se sabe quantas foram de fato mortas em confronto com policiais e quantas foram simplesmente eliminadas”, diz.

Incentivo – Ele explica que, quando a polícia cai em descrédito diante do aumento da criminalidade, ela passa a matar mais para mostrar serviço. “Prender bandido não dá notícia. Matar é que dá manchetes em jornais”, constata. Sem papas na língua, Bicudo (PT) afirma que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), está “incentivando” a violência com suas declarações defendendo uma polícia mais dura. “Onde já se viu governador acompanhar blitz?”, questionou. Não há soluções de emergência para a criminalidade e a violência. O remédio, segundo Bicudo, é o Estado estar presente nas periferias, nas favelas, com policiais bem treinados, postos de saúde, escolas e centros de lazer. Ele defende, sim, o aumento do número de policiais nas ruas e lembra que no dia 25 de janeiro, quando foi à comemoração do aniversário de São Paulo, não viu nenhum policial no caminho de sua casa, no Morumbi, até o centro da cidade, onde participou da festa oficial, um percurso de 20 quilômetros. Por sua luta, talvez Bicudo não deva ser reverenciado como o principal combatente do temido esquadrão da morte, mas como um dos maiores defensores do esquadrão da vida.