Os cartunistas costumam acentuar as orelhas de abano do presidente George W. Bush. Como sempre, os desenhistas encostam o dedo na ferida. W. faz bom uso de sua concha auricular. Em dezembro último, o The New York Times revelou que a Agência Nacional de Segurança (NSA, órgão de inteligência com maior aparato de monitoramento eletrônico) recebera autorização especial presidencial para fazer, sem mandado judicial, escutas telefônicas e interceptar mensagens via internet ou fax, com origem ou destinadas ao território dos EUA. A arapongagem, iniciada logo depois do 11 de setembro de 2001, fere a Constituição – que, em sua quarta emenda, proíbe “procura e apreensão não razoáveis” –, além de uma lei especial de 1973 que coloca limites às espionagens domésticas. A Casa Branca alega que adquiriu direitos extraordinários para as bisbilhotices, desde que o Congresso aprovou os Poderes de Guerra ao Executivo no combate ao terrorismo, há quatro anos. A controvérsia está longe de terminar e provavelmente acabará na Suprema Corte. Deste modo, cidadãos da maior democracia do planeta constatam que as paredes têm ouvidos e que sua privacidade está sendo ameaçada pela ampliação do poder bisbilhotador do Estado.

O pior é que Times ficou sentado sobre a denúncia por mais de um ano, atendendo a pedidos do governo para que não fossem reveladas suas ações. Mas o autor da reportagem, James Risen, estava para lançar o livro State of war, em que fala deste e de outros abusos. Não havia como o jornal segurar mais a notícia. Bush chegou a implorar à direção do diário para que não mandasse o texto às impressoras. Alegava que a divulgação comprometeria a guerra ao terrorismo, dando-lhes informações sobre técnicas de combate. “Como se Osama Bin Laden não soubesse que o governo americano faz escutas telefônicas”, retruca o senador republicano John McCain.

Na semana passada, outra aula de direitos civis foi administrada ao povo, quando um cientista de Seattle descobriu surpreso que sua correspondência havia sido aberta pelos correios. Trata-se de um aprendizado tardio, pois os estrangeiros do país já sabiam da existência deste procedimento há anos. “Aos poucos, os americanos vão tomando conhecimento das dimensões reais de seus direitos à privacidade. E o que vêem não é o ambiente cor-de-rosa pintado nas aulas de educação cívica”, diz o professor de direito constitucional Albert Travino, de Nova York. “Na opinião da maioria dos constitucionalistas, as escutas telefônicas domésticas são ilegais. Trata-se de abuso do Poder Executivo.” O governo Bush alega que a xeretice eletrônica só é feita contra quem é suspeito de ligações com terroristas. Pegue-se um exemplo daqueles que suscitam inquietação: Edward Allen foi impedido de embarcar num avião da Continental, há duas semanas, porque seu nome consta da lista de radicais vigiados pelo governo. O perigoso meliante, na ocasião, declarou: “Eu não quero estar nesta lista. Eu só quero ver a vovó.” Edward tem quatro anos de idade.

“Quem é realmente um terrorista? Todos somos suspeitos. Mas um fato permanece: a Constituição não foi abolida com a cláusula de Poderes de Guerra ao presidente, autorizada pelo Congresso”, diz Mark Lindberg, da União por Liberdades Americanas. Sobre estes poderes extraordinários, o ex-líder democrata no Senado Tom Daschle esclareceu que na época em que a legislação foi aprovada a Casa Branca pediu ao Congresso a autorização para as escutas sem mandado. O requerimento foi negado. “Eis a demonstração de que o governo Bush sabia de que precisava de autorização especial. Como recebeu negativa, resolveu agir secretamente”, diz Daschle.

O pior é que cidadãos americanos parecem estar cedendo seus direitos. Uma pesquisa do instituto Rasmussen mostrou que 64% deles acham que a escuta pode e deve continuar. Por outro lado, ninguém consegue comprar uma única cueca nos EUA sem que o governo saiba exatamente o tipo, tamanho, data e preço da transação. Nem o KGB, o temido serviço de inteligência soviético, tinha tantos poderes.