ciencia_tit_brasileiro_01.jpg

 

Depois de tantas idas e vindas entre a Espanha e o Brasil, a espanhola Marina Vidal Castro, uma alegre e faladeira caixeira-viajante, já sabia o momento certo de subir ao deque principal do transatlântico Príncipe de Astúrias a tempo de avistar as luzes do Rio de Janeiro. Foi assim, repetindo esse ritual, que Marina, fantasia de melindrosa no corpo, chegou ao pátio principal do navio naquele 5 de março de 1916 – era sábado de Carnaval. Àquela altura da viagem, o Príncipe de Astúrias já estava em Ilhabela, próximo à ponta da Pirabura, mas o mau tempo impedia que ela visualizasse bem a ilha. Os relógios marcavam quatro horas da madrugada. Neblina pesada. De repente, a embarcação sofreu um violento chacoalhão e passageiros de Pierrô, passageiros de Colombina, passageiros de Arlequim, todos atônitos, corriam de um lado para o outro tentando se equilibrar. Tragédia: o famoso Príncipe de Astúrias trombara violentamente com um dos rochedos escarpados da encosta e os tripulantes pouco podiam fazer contra a água gelada que invadia o casco partido. As caldeiras explodiram. Marina pensou em descer até a segunda classe do navio, para apanhar as suas jóias, mas desistiu ao ver parte da proa afundar. Em menos de cinco minutos, a embarcação foi a pique matando 477 passageiros. Por sorte e obra de Deus, a melindrosa salvou-se.

ciencia_tit_brasileiro_02.jpg

 

Noventa anos se passaram e agora a história desse naufrágio e a de alguns de seus sobreviventes viraram livro. Para escrever Príncipe de Astúrias – o mistério das profundezas, o jornalista José Carlos Silvares fez dez viagens à Europa e à Argentina, consultou 47 acervos e entrevistou familiares de vítimas. “Foram 25 anos de investigações”, diz Silvares. O resultado é um retrato preciso do que aconteceu antes, durante e depois de o transatlântico adernar levando consigo uma série de suspeitas. Uma delas é o número de passageiros: oficialmente, o navio espanhol Astúrias levava 700 pessoas, sendo 193 tripulantes. Logo após ser resgatada, Marina lamentou a provável morte de uma centena de italianos que embarcaram clandestinamente em Cádiz, na Espanha. Segundo o seu depoimento às autoridades portuárias da cidade de Santos, no litoral paulista, os imigrantes fugiam da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Nessa época era comum o transporte de clandestinos em transatlânticos, tanto que diversos países mantinham navios de combate no Atlântico para “patrulhar” os navios mercantes. É justamente por isso que se especulou que o desgoverno e o naufrágio do Astúrias foram motivados pelo ataque do navio de guerra inglês Glasgow que tentava evitar a fuga de desertores. “O diário de bordo da embarcação inglesa, no entanto, prova que naquele sábado de Carnaval ela estava atracada em Abrolhos”, diz Silvares.

ciencia_tit_brasileiro_03.jpgciencia_tit_brasileiro_07.jpg

 

 

Outro enigma é o destino do carregamento de 11 toneladas de ouro (no valor estimado de 40 mil libras esterlinas), destinadas pelo governo espanhol à Argentina como pagamento de dívida comercial. Até hoje o tesouro é dado como perdido, bem como as estátuas de bronze que fariam parte de um monumento a ser erguido na praça Palermo, em Buenos Aires, em comemoração ao centenário de independência da Argentina. Outra grande revelação do livro é a foto que mostra os destroços do navio atualmente. Nela, o Príncipe de Astúrias nada mais é que um sombrio e tétrico monstrengo de ferro retorcido a 40 metros de profundidade: o transatlântico de 140 metros de comprimento e capacidade para 1.890 passageiros rompeu-se em três pedaços que repousam lado a lado no fundo do mar. Na verdade, a foto é um retrato-falado feito por desenhistas especializados a partir de relatos de mergulhadores que, ao longo de três anos, desceram mais de 40 vezes aos escombros – utilizou-se esse expediente devido à enorme dificuldade de se tirar fotos em águas cuja visibilidade não passa de dois metros em dias de sol. As fotos menos ruins foram tratadas eletronicamente e ajudaram a reconstruir a imagem do Príncipe de Astúrias, que simbolizava, até no nome, a realeza espanhola em alto-mar.

ciencia_tit_brasileiro_04.jpg