A internet sempre foi um espaço aberto.Por isso mesmo, a rede dispõe de lugar até para atrocidades como a pedofilia e campanhas pró-racismo e pró-nazismo. Agora, a sociedade terá de se preparar para enfrentar um novo inimigo virtual. Um exército de adolescentes está usando a internet para ensinar outros jovens a serem anoréxicos, pregando a inapetência e a autopunição sempre que comerem. Tudo para chegar ao que seria a coisa mais importante da vida, de acordo com os autores dos sites: ficar magro. As páginas são assustadoras. Exibem fotos de meninas esquálidas, como as que aparecem acima, apontadas como modelos de beleza, e dão, inclusive, dicas e artimanhas para enganar os pais.

A anorexia é um distúrbio psiquiátrico que atinge principalmente meninas, que se tornam obcecadas pela magreza. Elas param de comer para emagrecer, mas nunca ficam satisfeitas com o corpo, mesmo que estejam pele e osso. “O último estágio da doença é a morte, em geral causada por arritmia cardíaca súbita provocada pela desnutrição. Outra causa importante de morte é o suicídio, muitas vezes a única forma encontrada pelos pacientes para parar de sofrer”, explica Angélica Claudino, coordenadora do Projeto de Orientação e Assistência aos Transtornos Alimentares (Proata), da Universidade Federal de São Paulo. Como se vê, trata-se de uma doença grave, muito diferente do que a maioria dos sites pró-anorexia afirma. Neles, a “Anna”, o apelido da anorexia, e a “Mia”, o apelido da bulimia (distúrbio caracterizado por indução de vômito após uma refeição), são colocadas como um estilo de vida. “Mas a negação da doença é um dos principais sintomas”, alerta Angélica.

O fenômeno de produção destes sites é mundial. Há os produzidos no Brasil, nos Estados Unidos e em países europeus, entre outros lugares. Além de fotos de mulheres magérrimas, a maioria deles exibe diários nos quais as autoras contam o que não comeram, dão dicas de como enganar pais e amigos para fingir que estão alimentadas e formas de se punir caso comam algo que engorda. Outro aspecto gravíssimo é o fato de as autoras também incitarem outras jovens a não se render a tratamentos ou ceder a pessoas que insistam para que elas se nutram. Neles, lêem-se frases assustadoras como “perdi oito quilos nos últimos cinco dias. Foi difícil, mas mesmo assim ainda não é o suficiente” ou “esse site foi feito por uma anoréxica que escolheu não se recuperar”. Tão preocupante quanto essas afirmações é a divulgação dos “mandamentos” registrados nos endereços virtuais. “Você não deve comer sem se sentir culpado. Você não deve comer algo que engorda sem se punir depois. Você nunca está magro demais. Ser magro é a coisa mais importante que existe”. Esses são de um site brasileiro.

Embora recente, a proliferação dos sites já despertou a atenção dos especialistas. A escritora espanhola Espido Freire, ex-bulímica, dedicou um capítulo de seu livro Cuando comer és un infierno às páginas virtuais pró-anorexia. Na opinião da escritora, as autoras converteram a anorexia em uma religião. “Erroneamente, elas pensam que a doença é uma opção. Acreditam que escolheram ter esse transtorno e podem controlá-lo”, escreve.

Além da influência que os sites podem exercer sobre pessoas que não têm a doença, os especialistas temem que eles se tornem um braço de apoio às meninas e meninos já doentes. Antes do estouro desses endereços, as vítimas, em geral, eram muito sozinhas, o que de certa forma facilitava a aproximação da família, aumentando a adesão ao tratamento. Com o acesso à internet, os pacientes contam com a ajuda uns dos outros, complicando ainda mais o combate ao problema. “Se esse movimento não for brecado, atrapalhará muito nosso trabalho. Já nadamos contra a maré o tempo todo. Só para se ter uma idéia, 95% das meninas que atendemos entram no ambulatório contrariadas. Se algo favorecer ainda mais a maré, as coisas pioram”, afirma a médica Angélica.

ISTOÉ tentou entrar em contato com algumas autoras de sites, nacionais e internacionais, mas não obteve resposta. Em seu livro, Espido Freire conta que, de fato, as meninas escolhem a dedo com quem se comunicam. Anna Paterson, ex-anoréxica americana, também afirma que chegar às autoras é difícil. Em uma entrevista por e-mail a ISTOÉ, ela afirma que os sites encorajam as meninas a só falarem com outras anoréxicas. “Isso torna a obsessão pela doença ainda maior. Elas competem entre si, mesmo parecendo parceiras, e esse contato, além de afastá-las do tratamento, acirra a vontade de ser a mais magra, estimulando loucuras ainda maiores”, alerta.

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Na verdade, trata-se de um crime disfarçado de clube. Para o delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, especialista em crimes da internet, o dono de um site desse tipo pode ser acusado e processado por lesão corporal grave e até por auxílio ao suicídio. “Fazer apologia de algo que faz mal à saúde e pode levar à morte pode ser considerado um crime”, afirma. Já a responsabilidade dos portais que abrigam esses sites é diferente. De acordo com Silva, ela se compara à responsabilidade de um estacionamento por abrigar ali um carro roubado. “O portal só pode ser responsabilizado se, depois de informado da presença do site, não tirá-lo do ar”, explica o delegado.

Mas isso nem sempre acontece. O portal HPG, por exemplo, abriga um dos sites pró-anorexia. Procurado por ISTOÉ, o presidente do portal no Brasil, Tony Reis, disse que a responsabilidade pelo conteúdo da página é estritamente do criador. “Não temos por que nos proteger de algo que não fere a legislação e não desrespeita nosso termo de serviço”, alega. O termo de serviço a que Reis se refere é um compromisso assinado pelo autor do site se responsabilizando inteiramente pelo conteúdo divulgado. Amparado nessa declaração, o portal manteve o site no ar, mesmo uma semana depois de ter sido alertado pela reportagem.

Não é por acaso que a Associação de Anorexia Nervosa e Distúrbios Associados (Anad), entidade sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos, luta para que os sites pró-anorexia sejam incluídos na lista dos conteúdos ilegais, a exemplo da pedofilia. “Explicamos por que esses sites devem ser combatidos e como é possível mudar o termo. Muitos dos portais realmente não sabem o mal que estão incentivando. Já temos muitos parceiros e conseguimos derrubar muitas páginas, mas essa é uma luta difícil, já que sempre há espaço na internet”, explicou Vivian Hanson Meehan, presidente da entidade. Para ela, é complicado imaginar que alguém possa procurar tratamento se há tanto suporte para que se mantenha doente.

Os especialistas consideram que uma das melhores formas de controlar a disseminação dos sites está na marcação cerrada dos pais. “Se os
pais conseguirem ter acesso ao que os filhos estão fazendo na internet, haverá muito menos espaço para sites pró-anorexia”, defende Viviam.
Na opinião do delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, os pais também são a saída para não deixar que crianças sejam influenciadas pelos sites. “Educar seu filho para que ele seja crítico ao que vê é essencial num mundo onde há 100% de acesso à informação”, afirma. Além disso,
as pessoas podem denunciar a existência de sites do gênero à Anad (anad20@aol.com).
 


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