O complicado jogo político que há anos era disputado no Oriente Médio acabou. Continua a contenda, entenda-se, mas a competição mudou de modalidade. Em vez de um, digamos, acirrado carteado de “buraco”, foi introduzido agora o “pôquer texano”. Para os não familiarizados com as práticas desta modalidade, cabe esclarecer que elas implicam cuidadoso cálculo de riscos, muito blefe, dissimulação, sangue frio e gatunagem. Sorte ou azar têm pouco a ver com os resultados. Trata-se, como o nome indica, de uma invenção – e predileção – americana. E são os Estados Unidos que estão dando as cartas, tendo algumas ficado nas mangas desse carteador. Ao invadirem o Iraque, as tropas de Washington não apenas viraram a mesa na região, mas partiram agressivamente para impor o ritmo das apostas. No mesmo fôlego com que declarava que “a luta principal no Iraque terminou”, o secretário de Estado, Donald Rumsfeld, também ameaçou tomar as fichas da Síria. Damasco, tudo indicava, tornara-se a bola da vez, antes mesmo da previsível Teerã, a capital do antiamericanismo.

Naquela que se transformaria na frase mais emblemática do presidente George W. Bush, no Discurso sobre o Estado da União em 2001, constava a metáfora do “eixo do mal”. Trata-se de uma linha imaginária ligando
três países considerados engrenagens de uma máquina diabólica.
Iraque, Irã e Coréia do Norte formavam os pontos ligando esta reta.
Com a queda de Bagdá, há duas semanas, a peça de retórica ficou capenga, Para continuar funcionando, seria preciso o acréscimo de
outro elemento. A Síria, com sua enorme fronteira com o Iraque, foi escolhida como estepe. Na semana passada, Damasco passou a
sofrer o bombardeio verbal – no estilo “choque e pavor” – com
petardos desferidos a partir de Washington.

As acusações de que os sírios ajudaram o esforço de guerra do regime de Saddam Hussein com envio de material e guerrilheiros já haviam causado ira e ranger de dentes nos americanos. As suspeitas de que o país também providenciara depósitos para as supostas armas de destruição em massa iraquianas aumentaram ainda mais a fúria. Agora, afirma-se ou imagina-se que lideranças e cientistas do antigo governo de Bagdá obtiveram exílio no país vizinho. Passou-se, assim, à fase das ameaças. Os marines, entenda-se, ainda não foram chamados para buscar o final da estrada de Damasco, mas já se engatilham as armas do embargo econômico, das pressões diplomáticas e “medidas de outra natureza”, nas palavras intimidantes de Condoleezza Rice, a conselheira de Segurança Nacional da Casa Branca. “É hora de se entrar num novo tipo de jogo no Oriente Médio”, ameaçou Rice.

Mais ameaças – De outros quadrantes de Washington viriam mais ameaças. O secretário Rumsfeld fez sugestão, mais ou menos velada,
de que as tropas americanas já estão mesmo na região e é só
abastecer tanques, blindados e aviões com a farta gasolina local
e rumar para a captura da turma de Saddam e seu arsenal escondido
na Síria do presidente Bashir al-Assad. “Os iraquianos responsáveis
pelas armas de destruição em massa são indivíduos que não podem
ser aceitos na Síria. Damasco deve rever não apenas isso, mas
também sua política de suporte a grupos terroristas”, fez coro
o secretário de Estado Colin Powell.

A Síria, por sua vez, nega todas as acusações. Haitham Kilai, ex-embaixador sírio na Organização das Nações Unidas, disse, na semana passada, que as acusações feitas pelos americanos na verdade não passam de mais uma artimanha de seus eternos inimigos sionistas: “Washington está se deixando envolver nas mentiras espalhadas pelo governo de Israel, que tem todo interesse em ver danificadas as relações dos Estados Unidos com a Síria. Há também um grupo de ideólogos neoconservadores em Washington, todos comprovadamente ligados ao lobby judaico, cuja política é a da derrubada de regimes árabes que não são amigos de Israel”, disse.

Na verdade, desde o governo Richard Nixon, há 30 anos, a Síria consta do relatório do Departamento de Estado como integrante do grupo de países que apóiam organizações terroristas. Trata-se de uma lista negra, cujos integrantes não podem comercializar com os Estados Unidos. No entanto, os sírios são uma exceção a esta regra. Isso, a despeito de que, num relatório feito pela CIA em 2002 ao Congresso americano, apontaram-se provas de que Damasco tem estoques de armas químicas, como gás mostarda, há cerca de uma década. Também foi dito que há dez ou 12 meses foram multiplicados seus esforços para a fabricação de gás sarin e outros agentes químicos com finalidade bélica. A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos até agora não havia feito nada contra isso. Na semana passada, foram introduzidas leis que visam impor total embargo a produtos sírios, como proibição de empresas americanas de comercializar com aquele país, cancelamento de vôos bilaterais e congelamento de depósitos bancários.

“A mostra da disposição combativa americana já foi dada com a invasão do Iraque. Acabou-se com o mito de que os Estados Unidos eram um tigre de papel”, afirma o arabista americano Robert Fisher, do Instituto de Estudos do Oriente Médio, organismo de estudos de geopolítica e economia da região, em Nova York. “O chefe terrorista Kahalid Sheik Mohammed, gerente financeiro da al-Qaeda preso recentemente no Paquistão, disse a seus interrogadores que vários grupos radicais islâmicos consideravam os americanos medrosos. E que o governo deste país não suportaria grande número de baixas entre seus soldados. Isso era apontado como um grande ponto de incentivo a suas ações. A campanha no Afeganistão e essa guerra do Iraque mostraram o quanto essa percepção estava errada. Tanto que, agora, a Coréia do Norte freou sua retórica combativa, parou de exigir diálogo bilateral com os Estados Unidos e se declarou pronta a aceitar negociações multinacionais sobre seu programa nuclear. O que o governo Bush faz agora é capitalizar sobre esta realidade nova que se descortina”, diz Fisher. “Mas isso não quer dizer que os Estados Unidos vão invadir a Síria. Não creio que exista nenhuma mente sã em Washington que planeje uma aventura desta a curto ou médio prazo. Não só seria um desastre diplomático, transformando o país num pária entre as nações do mundo; mas também implicaria uma guerra cujo final poderia ser dos mais apocalípticos. Além de tudo, não há dinheiro em caixa para manter a ocupação do Iraque, quanto mais para promover uma invasão da Síria. Simplesmente não temos recursos para isso”, diz Fisher.

Nesta visão dos fatos, a geopolítica americana seria semelhante à do valentão de porta de padaria. Aquele que exibe músculos, xinga quem passa, ameaça a todos, e consegue sempre o que deseja. Afinal, ele já arrancou a pele de um sujeito que o desrespeitou. É a pressão e o blefe vencendo cartadas mais elaboradas.