23/04/2003 - 10:00
Dono da maior empresa brasileira de auditoria e consultoria, Antoninho Marmo Trevisan, 54 anos, comanda uma equipe de 700 profissionais especializados em conferir balanços, analisar desempenho de empresas e, eventualmente, desvendar fraudes. A experiência de mais de três décadas acabou, por acaso, ajudando a mudar a trajetória da cidade na qual ele nasceu, Ribeirão Bonito, a 270 quilômetros de São Paulo. Junto com quatro amigos de infância, Trevisan criou, no final de 1999, a Amarribo, Amigos Associados de Ribeirão Bonito. A proposta romântica de revitalizar a cidade e restaurar prédios antigos esbarrou no pesado esquema de corrupção que havia se instalado na prefeitura. A partir do trabalho da Amarribo, um complexo processo para extirpar o mal culminou na prisão do antigo prefeito, Antonio Sérgio de Mello Buzzá. Ribeirão Bonito, por sua vez, está em franca recuperação, prestes a servir de espelho para o resto do Brasil. Impulsionado por uma série de consultas de moradores de outras cidades, Trevisan e sua turma escreveram a cartilha O combate à corrupção nas prefeituras do Brasil, cuja versão impressa acaba de ser lançada, em parceria com o Instituto Ethos e a Transparência
Brasil. A versão eletrônica está no site www.amarribo.com.br. A
seguir, os principais trechos da entrevista concedida a ISTOÉ
por Trevisan, que também integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do governo Lula.
Numa conversa entre amigos, concluímos que devíamos muito aos valores adquiridos nos quatro anos do grupo escolar. Quisemos então retribuir o que recebemos, recuperando lugares marcantes de nossa infância, como o cinema, um prédio dos anos 20 que estava deteriorado. Logo nos defrontamos com os desvios na prefeitura. A corrupção saltava aos olhos. Estava tudo sujo, abandonado. À medida que fomos questionando, apareceram denúncias. Era o caso de empresas, como a fornecedora de carne para a merenda escolar, que jamais entregavam a mercadoria, embora recebessem religiosamente.
A família do prefeito começou a passear pela cidade com um carro zero quilômetro. Verificamos no Detran que o carro pertencia ao fornecedor de carne, que era de uma cidade vizinha. Uma relação no mínimo suspeita. Numa segunda etapa, soubemos pelas merendeiras, que são pessoas formidáveis, que nunca tinha carne na merenda escolar. Em todos os segmentos que analisamos havia problema. Entramos então com uma ação no Ministério Público.
Ele se negou a entregar os documentos requisitados pelo promotor, que entrou com um mandado de busca e apreensão. Com
isso, pudemos investigar uma série de outros gastos. Tivemos também
a confissão de um prestador de serviços hidráulicos e elétricos. Do dinheiro que recebia todo mês, ele ficava apenas com 10%. O restante, colocava debaixo do chapéu, no banco, e levava para o gabinete do prefeito. Por isso, a cartilha alerta contra os cheques ao portador, cheques que não são cruzados. Eles possibilitam que a pessoa retire
o dinheiro sem deixar pistas.
A produção das licitações forjadas e das notas fiscais falsas vinha de uma cidade vizinha, onde o prefeito que hoje está preso havia sido secretário. Com os desdobramentos, foi criada uma Comissão Especial de Investigação na Câmara Municipal. Só que, dos 13 vereadores, 11 estavam comprometidos com o prefeito. Tudo indicava que havia um sistema de distribuição de caixinha.
Mobilizamos a comunidade. A classe política reage sob pressão de seus eleitores. Numa audiência pública, apresentamos cada uma das provas. Foi inesquecível. Conseguimos reunir mais de mil pessoas, ou seja, cerca de 10% dos habitantes da cidade, apesar de o prefeito ter suspendido a circulação dos ônibus. A partir daí, durante todo o tempo que durou o processo, três vezes por dia, tinha um sujeito encarregado de soltar um rojão. Para lembrar que estávamos atentos. Durou até o dia da votação, quando o prefeito foi afastado por 12 votos a zero. O presidente da Câmara se absteve de votar.
O prefeito fugiu. Ele teve o mandado de prisão decretado, por causa da investigação na promotoria, que corria paralelamente. Meses depois, foi preso em Rondônia. Com a repercussão do processo, pessoas de outros municípios começaram a nos procurar, pedindo orientação para implementar ações similares. Existem particularidades jurídicas que têm de ser observadas, para que os corruptos não consigam anular todo o trabalho, através de medidas liminares.
Ela mostra toda a experiência, ponto a ponto. Desde os aspectos administrativos – como é que você faz uma investigação sem ser especialista, como entra com um processo, como verifica nos diferentes setores públicos se o gasto é adequado… Indicamos sites como os da Receita Federal e do Tribunal de Contas. Sozinha, a sociedade civil não consegue fazer tudo. Quando trabalha junto com o Ministério Público, com o Tribunal de Contas, faz muito. Mostramos também a relação com a mídia, que é a mídia local, a rádio da cidade. Como não tinha jornal, chegamos a criar um boletim semanal, para manter a cidade informada. Porque a corrupção não se estabelece isoladamente. É toda uma rede, que numa cidade pequena é muito mais fechada. A cartilha também ensina a lidar com as contra-informações. A mais comum é tentar desqualificar os autores. No nosso caso, o prefeito, para se defender, dizia que era um bode expiatório, que nós queríamos holofotes para criar um movimento nacional.
É até engraçado. Mas nunca passou pela nossa cabeça criar um movimento nacional. Nós estávamos ali, um grupo de amigos, querendo ajudar a recuperar a festa da cidade, a praça… Agora estaremos presentes em todos os municípios brasileiros.
O Conselho Federal de Contabilidade, que tem uma comunidade de 350 mil contabilistas, vai participar do processo. Vai instalar em cada município um delegado para disseminar a cartilha e, ao mesmo tempo, analisar para a comunidade local os gastos da prefeitura. Quando houver indicativo de desvio, a denúncia será encaminhada para o conselho dos contabilistas, que, por sua vez, encaminhará para o tribunal competente ou para a entidade do governo que está sendo tungada. Além disso, haverá uma agenda positiva, com a premiação de prefeituras que ditarem suas regras pela transparência.
Waldir Pires, que comanda a Controladoria Geral da União, ficou apaixonado pelo projeto. Ele pretende adotar a cartilha no órgão recém-criado, que tem mais de mil auditores com função de fazer inspeção nas administrações municipais.
Seria um pouco mais complicado. Mas o que prevaleceu foi sobretudo a vontade de fazer. Não há conhecimento técnico capaz de gerar esse movimento. É claro que cada um colocou à disposição o seu conhecimento. O José Chizzotti, que é advogado, cuidou da parte jurídica. O irmão dele, Antonio Chizzoti, que é padre, também foi muito importante, porque nos abençoava. O Josmar Verillo teve um papel formidável, de infantaria. Durante três meses chegou a ir para lá com colete à prova de balas. Eu cuidava da parte estratégica. O Rubens Gayoso Junior era responsável pela mobilização. Esse grupo reduzido teve o apoio de um grupo de mulheres maravilhosas de Ribeirão Bonito, que nos mantinha diariamente informados.
Seria um pouco mais complicado. Mas o que prevaleceu foi sobretudo a vontade de fazer. Não há conhecimento técnico capaz de gerar esse movimento. É claro que cada um colocou à disposição o seu conhecimento. O José Chizzotti, que é advogado, cuidou da parte jurídica. O irmão dele, Antonio Chizzoti, que é padre, também foi muito importante, porque nos abençoava. O Josmar Verillo teve um papel formidável, de infantaria. Durante três meses chegou a ir para lá com colete à prova de balas. Eu cuidava da parte estratégica. O Rubens Gayoso Junior era responsável pela mobilização. Esse grupo reduzido teve o apoio de um grupo de mulheres maravilhosas de Ribeirão Bonito, que nos mantinha diariamente informados.
Trocávamos e-mail o tempo todo. Um dia fomos avisados de que o prefeito estava nos atacando na rádio da cidade. Ficou duas horas, desqualificando especialmente o Josmar (hoje presidente da Alcoa), que tinha acabado de deixar a presidência da Klabin. Imagine que ele dizia que o Josmar tinha sido mandado embora, que tinha dado um desfalque… Por causa do nosso eficiente sistema de comunicação, na hora em que o prefeito estava saindo da rádio, o Josmar já estava chegando, de helicóptero, para contrapor. A rádio também abriu espaço para Horário Lafer Piva, o presidente da Fiesp, um dos acionistas da Klabin, que, ao vivo, desmentiu a calúnia. Foi uma operação de guerra. Combater a corrupção não é fácil.
Nós cuidamos para que fosse basicamente aplicada para municípios, mas os problemas são parecidos. Quando o orçamento não pode ser lido por um leigo, na hora em que o balanço não é compreensível, pode ter certeza. Aí tem tungagem.
O que vimos em Ribeirão Bonito é parte de um processo multiplicado pelo Brasil. Constatamos que a briga contra a corrupção não pode ser de cima para baixo. Nossa experiência mostra que de 30% a 40% do orçamento das cidades é desviado. Isso em todo o Brasil.
Onde tem corrupção, certamente o crime organizado está instalado. Em nossa experiência, encontramos sinais claros de envolvimento com a máfia do combustível. A corrupção pressupõe a existência de recursos que não podem ser visíveis, que precisam de canais específicos para serem operados. Isso tudo entra, necessariamente, na marginalidade.
A Controladoria Geral está no caminho certo. É claro que é um espectro muito pequeno e só terá bons resultados se as organizações não-governamentais de cada cidade se aliarem ao processo. Tem fraude que é praticamente impossível de se detectar através de uma auditoria. Se aqueles que estão ao redor dela, que têm conhecimento dela, levam ao conhecimento das entidades competentes, há ganho de eficácia. Não creio que Brasília, por si só, possa romper um processo de décadas em que o crime organizado se infiltrou na sociedade civil, na administração pública, nos ministérios, no Legislativo.
No âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, discutimos as reformas tributárias e da Previdência. Um capítulo que considero fundamental é o controle do dinheiro da Previdência. Há coisas muito simples que precisam ser trabalhadas, como o caso do sujeito de 80 anos, viúvo, que se casa com uma moça de 20. Dois ou três anos depois, ele morre. A moça de 20 anos conquista uma pensão pela vida toda, sem ter trabalhado, sem ter gerado nenhuma contribuição. Essa é uma forma de fraudar a Previdência. Há uma série de problemas. Se o modelo atual fosse mantido, a Previdência implodiria. Além disso, não se pode manter direitos abusivos. É uma questão ética. Saber que tem alguém ganhando R$ 53 mil de aposentadoria é o fim.
Absolutamente. No campo tributário, existem 27 legislações e mais de 40 alíquotas diferentes em vigor. Isso representa um custo enorme para o País. Se fosse fácil, já teria sido feito.
Durante muitos anos venho discutindo sobre privatização, reforma tributária e reforma financeira. Acompanhei o presidente especialmente no mercado de capitais. No ano passado, ele convocou um grupo de 20 pessoas para discutir e criticar o programa. Agora, sou um dos 82 integrantes do Conselho de Desenvolvimento. Essa é minha colaboração. Eles são governo. Eu sou setor privado.
Essa questão é de lascar. Eu jamais vou declarar isso porque acho desagradável… Quem é convidado e não aceitou tem de levar com ele, não é verdade? Em que pese o ministro Palocci ter falado isso na Bolsa de Valores… Mas de mim ninguém nunca vai ouvir isso.
É o processo decisório, aquilo que ainda não está
percebido. Nunca tantos empresários, sindicalistas e organizações
não-governamentais foram chamados a discutir como agora. Lá fora,
o Brasil está ganhando uma credibilidade, especialmente pelas
ações de combate à miséria.
Com certeza. O investidor fica seguro. Recentemente,
recebi uma carta do Stanley Fischer, o presidente mundial do Citibank, que foi vice-presidente do Fundo Monetário Internacional, um dos
mais importantes formadores de opinião do mundo. Depois de uma
visita ao Brasil, ele escreveu que estava impressionado com o País,
com o governo Lula.
O principal é fazer com que todos compreendam esse processo. Em segundo lugar, o País está extremamente endividado.
É preciso mobilizar a sociedade tendo, ao mesmo tempo, de aumentar juros e de lidar com a falta de recursos para investir em saúde e educação. Haja credibilidade!