De um lado, o retrato de uma negra quase arquetípica, com sua “arroba de seio pendendo sobre o braço”. De outro, uma profusão de mulatas doces, lânguidas, sonolentas, imersas numa atmosfera de calma e sensualidade. Apesar das diferentes estratificações sociais e dos estilos diametralmente opostos, existem muitos pontos em comum entre a ousadia tropicalista de Tarsila do Amaral (1866-1973) – a grande dama do modernismo, autora do marco A negra, filha dileta da aristocracia cafeeira paulista – e o lirismo voluptuoso de Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), nostálgico das delícias suburbanas de São Cristovão, um perfeito carioca nas suas próprias palavras. É a exuberância das pinceladas destes dois grandes mestres que tomará conta do amplo salão do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), a partir da sexta-feira 25, com a exposição Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti: mito e realidade no modernismo brasileiro. Reunindo 111 obras, entre desenhos e pinturas, a mostra também retoma o projeto original feito para o museu pela falecida arquiteta Lina Bo Bardi, ao liberar as janelas laterais de vidro para a paisagem do parque do Ibirapuera e pintar de vários tons de azul as paredes da área interna.

Com esta bela exposição, o MAM encerra as comemorações dos 80 anos da Semana de Arte Moderna, que teve em Di Cavalcanti um dos idealizadores, e, nunca é exaustivo repetir, da qual Tarsila do Amaral não chegou a participar. Na época, ela respirava ares parisienses. Mesmo assim, a ausência da pintora no evento não tira desta paulista de Capivari o título de figura-chave do modernismo. É o que pensa a curadora Maria Alice Milliet, que concebeu a mostra com o propósito de fazer um contraponto e provocar novas questões em vez de solidificar consensos a respeito deste momento especial da arte brasileira. “Tarsila e Di Cavalcanti são os principais atores do primeiro estágio do modernismo, muito mais que Anita Malfatti, cuja obra era pequena, ou Lasar Segall, que veio formado de fora”, explica a curadora.

De Tarsila serão mostradas 49 obras, entre elas alguns clássicos da fase pau-brasil, caso da já citada A negra (1923); da fase antropofágica, a exemplo da surrealista Antropofagia (1929), que funde numa mesma composição A negra e Abaporu; e da fase social, como 2ª classe (1933), cuja dramaticidade é visivelmente tributária ao muralismo mexicano. Profundamente marcada pelas paisagens animadas do francês Fernand Léger, com quem estudou nos anos 20, Tarsila buscou aplicar o olhar cubista aos temas nacionais. Mas foi depois da viagem feita às cidades históricas mineiras com o franco-suíço Blaise Cendrars que ela descobriu a paleta de cores de seus sonhos – “o amarelo vivo, o rosa violáceo, o azul pureza e o verde cantante” de que fala Drummond no poema Brasil/Tarsila. Este cromatismo caipira surge em várias telas da mostra, como Vendedor de frutas (1925), E.F.C.B. (1924), O mamoeiro (1925) e Carnaval em Madureira (1924), que transporta a Torre Eiffel para o subúrbio carioca.

Maria Alice, contudo, destaca algumas obras pouco conhecidas, mas que merecem igual atenção. Caso do painel Batizado de Macunaíma (1956), de fatura gauguiniana, feito em homenagem a Mário de Andrade para a Editora Martins, ou da tela Maternidade (1938). Em relação a Di Cavalcanti, Maria Alice buscou fugir do clichê “mulatista-mor da pintura”, título atribuído a ele pelo amigo Mário de Andrade. Entre as 62 obras selecionadas, além de naturezas-mortas, como Vaso de flores (1929) – à altura das melhores telas do gênero assinadas, entre outros, por Guignard –, pode-se apreciar três quadros não tão famosos retratando paisagens realizadas em Paquetá, na década de 30, quando o comunista Di se refugiou numa igreja abandonada, perseguido pela polícia do governo Getúlio Vargas. Foi talvez a única vez em que ele se dedicou às paisagens.

Mais tarde, Di comentaria, com humor, estas fugas e prisões. “Fui preso quatro vezes: três por atividades subversivas e uma por ter partido a cara de um empregado da Light.” A mesma verve está presente numa preciosa série de 12 charges políticas, feitas em nanquim, pertencentes ao álbum A realidade brasileira. Com nítida influência do alemão Georg Grosz, Di desenha padres, militares e burgueses como gordos tinhosos e cheios de vícios. O desenho Para os problemas brasileiros, as soluções brasileiras, mostrando um frágil cidadão comum de mãos dadas com um magnata estrangeiro, se mostra atualíssimo. No entanto, é impossível não se curvar ao encanto picasso-matissiano de suas mulatas, em especial a tela Moças com violão (1937) e A mulher e o caminhão (1932). Talvez por causa das suas musas, Di Cavalcanti se autodefinia como o “Amoroso de muitos amores”. Melhor alcunha, impossível.