As facções de traficantes do Rio de Janeiro explodiram os planos de Segurança Pública de sucessivos governadores fluminenses – de Leonel Brizola ao casal Garotinho (primeiro ele, depois a mulher, Rosinha), passando por Moreira Franco, Marcello Alencar e Benedita da Silva. Desde o início desse processo, na década de 80, não se via uma ação policial com índice de aprovação semelhante ao da mega-operação realizada no Complexo do Alemão a poucos dias da abertura do Pan. “Temos recebido manifestações de apoio”, comenta o governador Sérgio Cabral (PMDB).

Mesmo os questionamentos sobre como foram mortas 19 pessoas no conflito não o fazem mudar de rumo. “As comissões de direitos humanos da Assembléia Legislativa e da OAB estão fazendo seu trabalho legítimo. Eu estou fazendo o meu, que é combater o crime”, diz. Na avaliação do governador, o atual estágio da criminalidade não permite evitar o confronto. A operação foi a primeira iniciativa visível da estratégia traçada por Cabral, apoiada em dois pilares: livrar a Segurança Pública da influência dos políticos e efetivar a integração com o governo federal, que cedeu três mil homens da Força Nacional de Segurança (FNS) e liberou R$ 1,6 bilhão para obras no Alemão. A guerra ao tráfico foi declarada e o plano para as próximas batalhas já está traçado.

PRIMEIRO ALVO
A tarefa de levar adiante o combate ao crime está a cargo do gaúcho José Mariano Beltrame, escolhido por Cabral para comandar a Secretaria de Segurança Pública. Delegado federal, ele é um dos responsáveis pela elaboração do sistema de inteligência que hoje a PF usa em suas elogiadas operações. “Me guio pelo que as investigações indicam”, diz ele. Foi assim que ele elegeu o Complexo do Alemão como primeiro grande alvo. “Nosso trabalho apontou que o coração do Comando Vermelho está ali”, explica. Os possantes aparelhos de escuta localizados no terceiro andar da secretaria continuam monitorando os criminosos do Alemão e novas operações podem ocorrer no local. Quanto a futuras ações policiais na Rocinha, na Mangueira ou no Complexo da Maré, anunciadas pela imprensa, o secretário indica que uma surpresa está por vir, ao repetir um ditado gaúcho: “O quero-quero canta aqui e põe os ovos lá.” Ele reconhece que a decisão do governador de despolitizar o trabalho policial foi muito importante. Antes, políticos de vários níveis escolhiam comandantes de batalhões da PM, tinham os oficiais como “subordinados”. Desde janeiro, isso mudou. “Um prefeito do interior reclamou comigo: ‘O senhor tirou o meu comandante.’ Respondi: ‘Tirei o seu comandante e coloquei o meu’”, conta Beltrame.

A integração com o governo federal é outro ponto fundamental. De acordo com Beltrame, sem a ajuda da FNS o resultado da ofensiva no Alemão não teria sido o mesmo. Mas a parceria entre Lula e Cabral vai bem mais longe. Na segundafeira 2, o presidente esteve no Rio para anunciar a liberação de R$ 1,6 bilhão para a reurbanização do Alemão e mais R$ 2,2 bilhões em outros investimentos sociais no Estado. “Tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem jogando pétalas de rosas”, discursou Lula. “A gente tem que enfrentar sabendo que eles muitas vezes estão mais preparados que a polícia, com armas mais sofisticadas.” Ao final do pronunciamento, o presidente deixou claro que a parceria vai continuar.

A ajuda não poderia ser mais oportuna, já que os cofres estaduais estão combalidos. Os royalties do petróleo, uma importante fonte de renda para o governo, estão aquém do esperado, por dois motivos: o preço internacional do petróleo está em baixa e o dólar também. Nessa situação, o dinheiro do governo federal representa uma tábua de salvação. Os recursos servirão para Cabral provar que sua estratégia de combate ao tráfico prevê também intervenções sociais nas comunidades, e não apenas ação policial. Além de Lula, o governador fluminense mantém contato freqüente com os governadores de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. “Essa integração é bastante útil, entre outras coisas, para controlar as fronteiras.”

Com seus próprios recursos, o governo fluminense está empreendendo algumas mudanças importantes. O antigo Instituto Médico Legal foi fechado e um novo vai ser inaugurado em três meses com equipamentos modernizados e funcionamento ininterrupto. A perícia técnica também está sendo reformada e passará a contar com máquinas de ponta, como banco de DNA e laboratório de fonética, recurso até hoje só disponível na Universidade de Campinas. As 3.600 viaturas policiais – a maioria em estado precário – serão vendidas e 1.500 novos automóveis serão comprados. “A manutenção será terceirizada, como acontece em Minas”, anuncia Cabral. “Isso livrará o comandante do batalhão de se preocupar com pneu ou lanternagem.”

METAS
Serão criadas patrulhas de dois PMs em motocicletas, um guiando a moto e outro armado de fuzil. Para melhorar a taxa de elucidação de homicídios da polícia do Rio, que é uma das mais baixas do mundo (algo em torno de 3%), Beltrame introduziu novos métodos de gestão. “Estabelecemos metas, um número mínimo de inquéritos que devem ser relatados com autoria”, explica o secretário. A medida está surtindo efeito: “O Judiciário mandou email dizendo que o Ministério Público aumentou em 48% suas denúncias em função de inquéritos relatados na Polícia Civil”, comemora ele. A maior inovação, porém, será um legado do Pan: os equipamentos de inteligência, que formarão o principal centro de investigação da América Latina.

Apesar do bom índice de aprovação, a guerra declarada pelo governo fluminense está longe de ser unanimidade. As principais críticas vêm de entidades de defesa dos direitos humanos, preocupadas com as conseqüências para os moradores e com os excessos dos policiais. O coordenador da ONG Central de Movimentos Populares, Marcelo Braga, diz que não há nenhuma novidade nessa política de confronto. “Isso já aconteceu várias vezes. Em outros tempos a polícia ocupou morros, matou várias pessoas e não resolveu nada”, protesta ele. Braga espera a conclusão da perícia nos 19 mortos, mas vê indícios de execução. Três pessoas foram mortas à queima-roupa pelas costas, com tiros na nuca. “A polícia foi lá, partiu para o confronto e saiu. O morro continua sem escola suficiente, postos de saúde e outros serviços indispensáveis à cidadania.”

O secretário Beltrame diz que diante de situações extremas como a do Alemão, o confronto é inevitável. “A sociedade precisa definir: ou apóia o Estado que quer recuperar território ou fica à mercê do tráfico. Prefiro que meus filhos fiquem seis meses sem aulas, mas que tenham a escola protegida pelo Estado e não por traficantes armados de fuzis”, diz ele. O secretário lembra que a tirania dos bandidos oprime os moradores pobres. “Quantas mães perderam seus filhos para o tráfico lá dentro, com seus corpos consumidos lá dentro, e não podem fazer um registro na polícia por medo de morrer? Os estudiosos têm que parar de discutir o periférico para discutir o mérito: o que a sociedade quer?”

INSATISFAÇÃO NA POLÍCIA
O governo também tem que superar a insatisfação dos próprios policiais. Numa iniciativa inédita, nove coronéis da PM encaminharam ao governador e ao secretário um manifesto cobrando melhores condições para a corporação. Entre outras coisas, o texto reivindica nova política salarial, retorno de PMs que estão em serviço burocrático e quitação da dívida com o Fundo de Saúde da PM. “Os homens da FNS ganham R$ 4 mil, enquanto nossos soldados não recebem mais que R$ 800 para correr o mesmo risco”, critica o coronel Dario Cony, um dos signatários. “Isso é uma herança de governos anteriores, mas, como o atual governador elegeu a segurança como prioridade, acreditamos que será sensível ao nosso apelo.” Cabral não respondeu ao manifesto, mas já disse que a melhoria salarial dos policiais está nos seus planos. Contratempos como esse dão idéia de como é difícil fazer a criminalidade no Rio voltar a patamares toleráveis. Tão complicado quanto vencer criminosos armados até os dentes e retomar o território das favelas é cavar recursos para reaparelhar as forças de segurança e recuperar a dignidade dos policiais. De todos os itens, porém, aquele apontado pelo secretário Beltrame parece ser prioritário: a sociedade deve decidir imediatamente se enfrenta o tráfico com rigor ou se assiste passivamente ao avanço do banditismo que vitima a todos, mas principalmente os mais pobres.