Mostrar às crianças e aos adolescentes como lidar com as diferenças não é tarefa fácil. Quase todos cobiçam os mesmos brinquedos ou o último lançamento da moda. A maioria anda praticamente uniformizada – as garotas com suas calças de cintura baixa e os garotos com bermudas de skatista. Mas cada um é sempre diferente do outro. Na adolescência, a aparência física vira dilema existencial. O corpo desengonçado, ainda em transformação, torna-se motivo de queixa recorrente. Uns crescem demais, outros não tanto quanto queriam. Este é meio gordinho, aquele tem espinhas no rosto. Tudo é motivo de piada e funciona como fonte de inspiração para a escolha dos inevitáveis apelidos. Nem mesmo as crenças religiosas e as convicções futebolísticas escapam à crítica zombeteira da molecada. A uma semana da eleição, as preferências políticas dos pequenos se transformaram na bola da vez. A garotada não perde a oportunidade de tirar sarro do candidato escolhido pelo colega, normalmente influenciado pela família. Além do bate-boca usual dos programas eleitorais, a disputa pela Presidência da República provoca na moçada um outro tipo de rivalidade: a guerra de ideologias e opiniões.
Um time de vermelho e outro de azul e amarelo. É assim que as torcidas uniformizadas em favor de Lula e Serra fazem a festa da democracia. Em muitas escolas, a maioria dos alunos se delicia com o desempenho do petista nas pesquisas. Em outras, a molecada corre atrás dos 20 milhões de votos que faltam ao tucano. Os argumentos são os mais divertidos.

Tenho nove anos. Fernando Henrique governa há oito. Ele foi presidente minha vida inteira e eu não tenho o que reclamar”, explica Felipe Augusto Aragão, aluno da terceira série da Escola da Vila, em São Paulo. Ele é um dos poucos alunos serristas da classe. Três quartos dos alunos querem Lula. “Apostei com cinco amigos que o Serra ganha a eleição. Cada um vai me pagar R$ 1”, diz o menino. As amigas Mariana Mariano e Marcela Camargo, também com nove anos, engrossam a resistência peessedebista. “Serra é melhor preparado. O Lula fala muito, mas nunca fez nada”, diz Mariana. A petista Laura Ueta Bellesa, dez, acredita que, se o governo de Fernando Henrique fosse tão bom quanto os colegas dizem, Lula não seria líder nas pesquisas. Para ela – aliada de Pedro Rodrigues dos Santos, Cauê de Souza e Bruno Araújo –, conviver com amigos tucanos torna o processo eleitoral mais divertido. “Ia ser muito chato se a classe toda fosse a favor do mesmo candidato. Para discutir
o assunto, a gente presta mais atenção na campanha”, conta ela, fã
dos programas eleitorais. Cauê concorda: “Analisei os programas de
tevê e acho o Lula mais confiável.”

O pai de Laura, Mauro Bellesa, se entusiasma com a proposta pedagógica da escola, preocupada em trabalhar temas ligados à cidadania. “A escola já levou ex-presos políticos para conversar com alunos da terceira série. No primário, eles têm uma aula chamada ciências sociais”, conta. Este ano, o curso trouxe à baila um projeto de pesquisa sobre a cultura e a política nas décadas de 60 e 70. “Desenvolvemos conceitos de liberdade e democracia. Ao estudar um período em que não havia direito à opinião, os alunos aprendem a defender seu ponto de vista sem desrespeitar a opção dos outros”, explica a professora Patrícia Silva Sampaio.
“Eles acabam se empolgando quando discutem sobre os políticos. Normalmente não ligam muito para argumentos. Preferem gritar bem
alto que seu candidato é o melhor”, diz.
 

Quando a coisa pega fogo, resta aos pais e educadores a missão de jogar um balde de água fria na discussão, acalmar os ânimos e tratar dos arranhões na auto-estima dos exaltados. Todo cuidado é pouco para que os comentários sobre as características e opiniões dos outros não extrapolem os limites do bom senso. Na teoria, a coisa é simples. Seria o melhor dos mundos se todos se respeitassem, mas nem entre adultos isso acontece de modo espontâneo. Para Tatiana Belinky, tradutora e escritora premiada de livros infantis, o respeito às diferenças começa em casa. “Se os pais ensinarem que ninguém é melhor ou pior por ser diferente, as crianças pensarão do mesmo jeito.” Filha de imigrantes russos judeus, Tatiana chegou ao Brasil aos dez anos e nunca se chateou por ser diferente. Para ela, os termos utilizados nas conversas com as crianças devem ser escolhidos com cautela. A palavra tolerância, por exemplo, ela acha que não é adequada. “Quando se tolera alguém ou alguma coisa, considera-se que ela não é boa. Se alguém tolera outra pessoa é porque acha que é melhor do que ela. A palavra-chave é aceitação”, propõe.

Essa aceitação deve começar na valorização de si mesmo. “A tiração de sarro é também uma forma de auto-afirmação, é combater a própria insegurança diminuindo o outro”, alerta o educador Juan Uribe, que trabalha com ensino afetivo há dez anos e representa o Conselho
Mundial de Auto-Estima no Brasil. Ele lembra que ser aceito pela sociedade é uma necessidade humana e, para a criança, brincadeiras e apelidos podem funcionar como fatores de exclusão. “Ser visto, ouvido
e amado é o que todo mundo precisa para ter auto-estima. Se a criança não recebe essa atenção em casa, provavelmente terá dificuldades
para se relacionar”, aponta. Um dos pilares da auto-estima é a identidade. “A criança tem que ter uma idéia clara de quem é e por que defende certas coisas. Essa certeza é a família quem dá”, diz Uribe. Para ele, o respeito às diferenças está intimamente ligado à ética, à capacidade de se relacionar com o outro sem realizar julgamentos. “Ética se aprende no convívio social. É transmitida nas pequenas ações, nas palavras, na entonação, no olhar”, resume.

Antes de matricular as quatro filhas no Colégio São Paulo, no Rio de Janeiro, o iraniano Jamshid Naderi quis conversar com as freiras educadoras. A escola é de orientação católica e Jamshied se preocupava com o tratamento que seria dado às filhas muçulmanas. A mais nova, Sheida Naderi Guilanian, 12 anos, só faz elogios. “Quando meus colegas rezam o pai-nosso, eu oro em voz baixa. Se me convidam para ir à capela, vou com prazer. Deus é o mesmo para todos”, conta. Sheida não é obrigada a usar véu, mas adora as peças coloridas trazidas do Irã. Seu entusiasmo foi às nuvens quando a Rede Globo a convidou para fazer figuração em festas na casa do Tio Ali (Stênio Garcia) da novela O Clone. Na escola, o que era preocupação terminou em alegria. “As meninas convivem bem. Freiras, professores e alunos são gentis e a relação é normal em ambas as direções”, diz o pai, no Brasil há 22 anos.

Também muçulmano, o paranaense Jihad Kohdr, 18 anos, sétima posição no ranking brasileiro de surfe profissional, tira de letra a convivência
entre dois mundos tão diferentes. “Estou no meio de surfistas desde os nove anos. Aos 14, fui para o Havaí e aos 16 ganhei US$ 2 mil numa competição. É fácil se deslumbrar com a liberdade, o dinheiro, as
viagens, mas não misturo as coisas”, conta Kohdr. Os apelidos não o incomodam. “Sou libanês, mas a turma me chama de Turquinho. Fico numa boa. No Brasil é comum chamarem libaneses ou árabes de turco”, conta. Esteja onde estiver, sempre que o relógio aponta 17 horas,
Jihad se afasta da muvuca para fazer suas orações a Alá. “Quando coincide com a competição, combino com Ele de orar mais tarde.
Meu pai sempre me estimulou a ter muitos amigos desde que eu não
me deixe levar por eles”, diz o rapaz.

Exclusão – Na adolescência, os jovens lutam para conquistar o carisma dos amigos. Fazer parte da “turma” é essencial. “O pior castigo é ser banido do grupo. Qualquer diferença pode significar exclusão. Quando percebe que ser diferente nem sempre é uma boa, o jovem se sente desconfortável”, explica o psicoterapeuta Ari Rehfeld, supervisor da Clínica Psicológica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Vivemos sob a ditadura do ‘a gente’. Todos têm que agir como ‘as pessoas’ agem. Algo que seja singular é sempre mal compreendido”, afirma. Para Rehfeld, a pior atitude que os pais e educadores podem ter é tentar tolher essa singularidade. “Quando os pais colocam muito claro como eles gostariam que o filho fosse, a criança acaba treinada a repetir esse modelo. Ela sempre buscará ser como os outros querem que ela seja”, diz.

Se dependesse da opinião da maioria dos amigos, Rudah Luccas, 13 anos, teria trocado de time há muito tempo. Ele é fanático pela Portuguesa, paixão que herdou do pai, Flávio. Mas sua convicção tem argumentos próprios. “Torcer para a Lusa tem muitas vantagens. Nunca pego estádio lotado nem brigas entre torcidas”, diz o garoto, dono de uma coleção de camisetas do time. Nem por isso ele deixa de sofrer na mão dos colegas. “Em todo o meu colégio, são apenas três os torcedores da Lusa. A galera me pergunta por que eu não troco de time. Digo que ninguém escolhe o time pelo número de títulos”, conta o aluno da sétima série do Colégio Salesiano Santa Terezinha, em São Paulo. Quando vem zombaria para cima do filho, o pai é solidário. “Temos uma responsabilidade ecológica, já que torcedor da Portuguesa é uma espécie em extinção. Sempre me coloco como um entusiasta da exclusividade. Quando perguntarem na classe quem torce para a Lusa, só ele vai levantar a mão. Isso mostra que ele tem personalidade”, conta Flávio.

Convencer um adolescente da vantagem de ser único não é tão simples. Segundo a psiquiatra Maria Cristina Lombardo Ferrari, do Departamento de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo, até os dez anos a convivência entre crianças diferentes é pacífica. A encrenca começa na pré-adolescência. “A mudança no corpo faz com que o adolescente se sinta deslocado ao mesmo tempo que chama sua atenção para a estética”, complementa. Os hormônios ficam à flor da pele e cada espinha é um tormento. Por mais bobo que possa parecer, seu sofrimento não pode ser jamais desprezado. “Os adolescentes encaram a palavra dos pais como verdade absoluta, mesmo quando refutada. É preciso ficar atento ao que se fala para eles. Os problemas emocionais não resolvidos nessa fase são levados para a vida adulta”, alerta Maria Cristina.

A transexual carioca Charla Novi, 40 anos – registrada como Carlos Alberto Coutinho Novi –, e o marido, João Carlos Mendes de Menezes, fazem de tudo para evitar problemas emocionais ao filho adotivo J.J., nove anos. Certa vez, ela foi chamada à diretoria da escola depois que seu filho reagiu com violência à zombaria de um colega. Em vez de partir para a briga, Charla propôs realizar um trabalho educativo com as mães e os pais dos alunos. “Sempre procuro politizar as informações. Meu marido e eu criamos nosso filho muito bem. Ele sabe que é adotado, sabe que seus pais são diferentes”, diz. “Não acho que a sociedade está preparada para absorver todas as mudanças sem traumas. Mas vejo nas reuniões de pais que as outras mães me tratam com respeito e não admitem que seus filhos hostilizem o meu”, conta ela, certa de que a origem do preconceito está na família. A psicanalista Tânia Leão Pedrozo, professora da PUC do Rio, compartilha a idéia de Charla. “Antes de ser influenciada pelos grupos sociais, a criança recebe a influência dos pais. O mais preocupante não é a forma como ela manifesta a agressividade diante da diferença, mas o exemplo ruim de intolerância que os pais passam para ela”, explica.

Respeito – Num país mestiço como o Brasil, até a convivência com várias etnias, apesar de comum, nem sempre se dá de forma tranquila. A cor da pele muitas vezes determina o tratamento. A professora Teresa Cristina Gonçalves Ferreira conta que seus dois filhos mais velhos já passaram alguns constrangimentos por isso. Mas ela e o marido, o vendedor de cachorro-quente Edelvir Ferreira, tratam o assunto da forma mais clara possível. “Digo a eles que os negros têm o seu espaço, seus direitos, e temos de lutar por eles”, conta ela. Felipe, 13 anos, o terceiro filho, reflete bem a naturalidade com que os pais tratam do assunto. Além de ser torcedor do Santos – e nunca ter visto seu time ganhar um campeonato relevante –, Felipe faz balé clássico desde os dez. “Meus amigos me respeitam porque eu os respeito. Se alguém tira sarro, sempre converso. Só fico bravo se me chamam de neguinho ou de bicha. Se a ofensa for insistente, recorro à diretora da escola. Meus pais dizem que não devo ter medo de reclamar”, conta ele. Essa consciência de que há um fórum para resolver os conflitos é essencial para a manutenção da segurança, que no caso das crianças está focada nos adultos. Como oponentes e opositores existirão sempre aos milhares, resta descobrir o prazer do bom combate. Afinal, a diversidade é que dá o tempero à vida.