No dia 16 de junho de 1976, o estudante Hector Petersen, 13 anos, foi baleado pela polícia sul-africana numa manifestação contra o regime racista do apartheid em Soweto, bairro negro de Johannesburgo. Naquela rebelião, cerca de 700 manifestantes negros, a maioria crianças e adolescentes, foram assassinados e a foto do corpo de Hector sendo levado por um homem correu o mundo, tornando-se símbolo da luta contra o apartheid. O regime de minoria branca teve início em 1948 e só foi terminar com as eleições multirraciais, em 1994, que levaram à Presidência da África do Sul o líder da resistência Nelson Mandela. O dia 16 de junho tornou-se a data comemorativa da juventude negra, que lembra as crianças assassinadas nos anos do apartheid. Um museu foi erguido em homenagem a Hector Petersen e agora novamente seu nome está em evidência. Sua irmã, Lulu Petersen, e sua mãe, Dorothy Molefi, entraram na Justiça dos EUA para processar grandes bancos suíços e americanos, acusados de financiar um regime que estava sob embargo econômico da ONU.

“Foram 26 longos anos desde a morte de Hector. Queremos reparações das multinacionais e bancos que lucraram com a miséria e o sangue de nossos pais, mães, irmãos e irmãs”, disse Lulu Petersen. A família Petersen está entre as quatro que abriram processo contra a maior instituição financeira americana, o Citigroup, do qual o Citibank faz parte, e os maiores bancos suíços, o Credit Suisse e o UBS. O advogado do caso é o americano Edward Fagan, o mesmo que auxiliou os sobreviventes do Holocausto a ganhar US$ 1,25 bilhão num acordo de indenização dos bancos suíços. Fagan alega que essas instituições financeiras não respeitaram as sanções econômicas e políticas impostas em 1968 pela ONU contra o governo racista sul-africano. Em 1986, o Congresso americano ainda aprovou um boicote econômico, no que foi seguido por vários países. O advogado alega que os bancos ignoraram as leis, ajudando a financiar o governo de minoria branca, principalmente no período entre 1985 e 1993. Fagan não diz a quantia exata da indenização coletiva, mas calcula-se que a bolada possa chegar a US$ 50 bilhões.

Além da família Petersen, entraram com a ação indenizatória outras três vítimas do apartheid: Siggibo Mpendulo, cujos dois filhos gêmeos de 12 anos foram massacrados por um esquadrão da morte branco; Lungisile Ntsebeza, que foi torturado, espancado e banido; e Themba Makubela, que também foi banido. Até agora, apenas essas quatro famílias tiveram acesso ao processo, mas uma linha telefônica foi aberta na África do Sul para que outras vítimas do apartheid possam também reivindicar indenizações. “Cada indivíduo que teve prejuízos por conta do regime do apartheid merece ser restituído com um cheque”, afirmou Fargan. A idéia não é entrar com ações individuais, mas coletivas, criando um fundo às vítimas do regime racista. O advogado entrou com a ação na quarta-feira 19 em uma corte federal de Nova York. Ele se baseou em uma lei americana que permite a cidadãos estrangeiros processar empresas americanas que tenham violado os direitos humanos em operações fora dos Estados Unidos. O deputado sul-africano Mallet Pumelele Giyose, presidente do Jubileu 2000 África do Sul, entidade criada em 1998 para lutar pelo cancelamento da dívida externa do país e promover as restituições às vítimas do apartheid, afirmou que a ação legal é a “última esperança”. Um relatório da comissão concluiu que a África do Sul tomou dos cofres internacionais US$ 11,3 bilhões para manter o regime de segregação.

Os danos econômicos são visíveis na África do Sul. A população negra ainda sofre com o desmantelamento de suas casas, o sistema educacional excludente e o mercado de trabalho discriminatório. Durante décadas, os filhos do apartheid frequentaram escolas inferiores, transformando-se em mão-de-obra desqualificada. O apartheid foi oficialmente instituído em 1948, mas a segregação racial vem de muito antes. Uma lei de 1913 já limitava o acesso dos negros à propriedade da terra. Em 1949 foram proibidos os casamentos mistos e um ano depois os grupos tribais foram confinados aos bantustões (regiões exclusivas para negros). Em 1953, os negros não podiam mais frequentar lugares de recreação dos brancos, como praias, parques e bibliotecas.

Em 1994, o Congresso Nacional Africano (CNA) de Nelson Mandela ganhou as eleições prometendo a reconciliação; três anos depois foi criada a Comissão de Reconciliação da Verdade para apurar as violações contra os direitos humanos durante o apartheid. A CRV, presidida pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1984, foi uma maneira que Mandela encontrou para chegar à união nacional. O então presidente defendeu a anistia para os que haviam cometido crimes por motivos políticos. A CRV também concluiu que a classe empresarial branca beneficiou-se da segregação racial e, portanto, deveria se comprometer com o combate à pobreza concentrada na população negra da África do Sul.

Fora da África do Sul, as indenizações por atrocidades históricas causaram grande polêmica. Os bancos suíços imediatamente protestaram contra a idéia de pagar indenizações às vítimas do apartheid. Em Zurique, Fagan tentou fazer um pronunciamento em frente ao banco UBS, mas teve que fugir dos manifestantes em um táxi. “Fagan, vá para casa!”, gritavam eles. Mas o advogado não deve desistir facilmente. Ele pretende ainda processar empresas da Alemanha, do Reino Unido e da França. “Este é o dia da restituição. E estamos apenas começando”, disse Fagan.