Em dez mil anos de evolução e convivência com os humanos, os gatos aprenderam a usar o miado para manipular e chantagear seus donos. Disposto a provar que esses animais também falam, durante três anos o psicólogo Nicholas Nicastro, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, gravou 100 vocalizações de 12 felinos, dez vira-latas e dois da raça siamesa. Constatou que os sons variam conforme a necessidade ou o desejo e podem ser interpretados. Nicastro separou as vozes em dois grupos, aquelas que revelam prazer e as que apelam por
urgência. O vocabulário “miaulês” é vasto: miados longos e altos são para pedir comida; se forem compridos e chorosos, representam uma súplica para alguém lhe abrir a porta; quando curtos, servem para assustar a presa; se mais suaves, valem para seduzir; já os apelativos são para pleitear a poltrona mais confortável; e o ronronar charmoso é um pedido de carinho. Ao analisar a gradação das vozes dos felinos domésticos, Nicastro percebeu ser possível compilar um verdadeiro dicionário fonético. “O registro sonoro é função primordial na relação entre homens e gatos. É uma via de mão dupla. Convivendo com seres humanos, eles intuíram os sons que devem fazer para influenciar nossas emoções e conseguir aquilo que desejam de nós”, explicou Nicastro em entrevista a ISTOÉ.

O primeiro registro da convivência entre seres humanos e felinos vem do Egito antigo. Por volta do ano 4000 a.C., eles eram selecionados para ser ratoeiras vivas nos celeiros. “Os gatos de vocalização mais agradável aos ouvidos humanos eram os preferidos dos egípcios”, supõe Nicastro. Uma prática comum entre os faraós era mumificar e enterrar seus animais de estimação para com eles entrar no reino das almas. Graças à sua habilidade para miar, de caçadores os gatos passaram a bichos sagrados e havia até pena de morte para quem os sacrificasse. Dona de seis bichanos, a veterinária paulista Mitika Hagiwara, professora da Universidade de São Paulo, garante que todos atendem pelo nome. “O gato tem uma relação de propriedade com o seu dono. Meu quarto é o território da minha siamesa Miki. Ela me segue sempre e só sossega quando está no quarto. Se não pode entrar, mia resignada”, conta a veterinária.

No estudo americano as amostras das vozes animais foram gravadas quando os gatos enfrentavam situações variadas de relaxamento, prazer, stress, disputa e medo. As gravações foram apresentadas a dois grupos de voluntários. Nicastro comparou esses sons com amostras de miados dos gatos selvagens da África, os ancestrais dos felinos domésticos. “Nesses animais, o miado é agressivo e expressa o desejo de repelir os homens e mantê-los a distância”, diz o psicólogo, que entende essa diferença como mais um sinal de que o idioma dos gatos domésticos evoluiu para sons mais agradáveis
ao ouvido humano visando a objetivos práticos, como conquistar a sardinha de todo dia, a almofada e o cafuné.

Gatinha Manhosa – O temperamento manhoso e levemente irônico da gata de um amigo chamada Pretinha foi a inspiração do cartunista paulista Laerte para criar a Gata, uma de suas personagens mais cativantes. Laerte também é dono da vira-lata Maria Rita, chegada a manhas e dramas. “De manhã ela começa com uns miadinhos curtos e secos, como se dissesse: ‘Ei!, Ei!.’ Quando eu me encho daquilo e pergunto o que acontece, ela solta frases mais longas. É como se berrasse: ‘Eu quero comer. Faz uma semana que você não me alimenta!’ Ela é dramática e eu tenho de servi-la logo”, conta o cartunista. “Outros miados vêm acompanhados de movimentos de corpo e olhares e aí sei que ela está querendo puxar assunto”, interpreta Laerte. Entre todas as raças, os mais “falantes” são os gatos siameses e os mais caladões são os persas. “Uma siamesa no cio coloca abaixo um apartamento com seu miado pungente e inconfundível”, diz Hannelore Fuchs, veterinária e psicóloga especializada em comportamento animal.

Hannelore tem três gatos. O mais velho, Felipe, é um mestiço de siamês com vira-lata que mia para ser seguido, como no conto O gato de botas, escrito em 1697 pelo francês Charles Perrault. “Ele dá quatro passos para a frente, mia e olha para trás como se dissesse: ‘Aí vem o meu amo.’ É assim todo dia, logo cedo, para que eu o leve para passear”, analisa Hannelore. Os 12 gatos da artesã paulista Sônia Regina Simplício vivem soltos pela casa e são presos à noite, na hora de dormir. Às seis da manhã, um miado seco e repetitivo é o alarme de Chuko de que está na hora de abrir o gatil. Sônia reconhece a fala de todos os seus felinos. “Eles têm vozes diferentes, umas são mais suaves, outras são mais agudas. E alguns miam com mais frequência do que outros”, diz.

Quem prefere os cachorros aos gatos costuma dizer que os felinos são pouco afetivos, ao contrário dos amorosos e comunicativos melhores amigos do homem. Uma das explicações estaria nos primórdios da luta pela sobrevivência. “Os cães sempre caçaram em grupos e foram socializados mais cedo. Os gatos agiam sozinhos e precisavam ser pacientes para caçar os ratos, que são muito ágeis e pequenos. Isso explica essa independência que os gatos mantêm até hoje”, afirma a veterinária Mitika. A eficiência e a habilidade que tornaram os gatos predadores históricos dos ratos viram sutileza vocal e pura lábia quando o objetivo é seduzir os humanos.