O brasileiro, descendente de judeus árabes, viajou para pesquisar suas origens e conta como os dois povos convivem no mundo muçulmano

Os conflitos entre judeus e palestinos no Oriente Médio rendem intermináveis debates, com defensores de ambos os lados, mas pouco se fala dos judeus árabes, os seguidores do judaísmo em território islâmico. Até a criação do Estado de Israel, em 1948, mais de 1,2 milhão de judeus viviam nos países muçulmanos hoje são apenas 25 mil. Eram pessoas que tinham cultura, hábitos e história semelhantes aos de seus compatriotas árabes, exceto pela religião, e que foram obrigados a deixar o seu país para morar em Israel. O êxodo à Terra Prometida motivou o fotógrafo brasileiro Michael Gordon, 35 anos, a investigar durante uma década as raízes do seu passado.

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"Um Estado judeu,
assim como qualquer
nação religiosa,
corre o risco de se tornar racista e estabelecer o apartheid"

Filho de uma judia marroquina, neto de um judeu da Lituânia e de uma judia da Palestina, Gordon viajou durante quase um ano por dez países árabes em busca das comunidades judaicas remanescentes. A sua experiência foi documentada no livro “Um Judeu no Islã”. O tema está em alta no Oriente Médio. No mês passado, o Knesset, o Parlamento de Israel, aprovou uma lei que garante uma compensação aos judeus refugiados pelas propriedades perdidas e equiparação de direitos com os refugiados árabes obrigados a deixar a Palestina.

 

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"Os judeus eram mais livres no Islã do que na cristandade.
Na Europa, há exemplos de perseguições,
como a Inquisição, as Cruzadas e o Holocausto"

ISTOÉ – Há uma corrente de judeus que pleiteia compensação financeira e reconhecimento da condição de refugiados. O que pensa disso?
Michael Gordon

Sou contra a indenização, mas favorável ao reconhecimento. Muitos dos judeus que foram transferidos para Israel estavam bem onde moravam. Deixaram uma vida, uma história, entes queridos, a sinagoga que frequentavam. Naquela época, o judaísmo era muito menos cosmopolita do que é hoje. Era regionalista, com liturgias específicas. Mudar de comunidade era como mudar de religião. Ir para Israel só valia pela motivação sionista vertente que defende o Estado judeu. A maioria não queria mudar, até porque os judeus sempre foram mais unidos pela religião do que pela ideia de nação. É claro que havia problemas nos países islâmicos, mas eram coisas pequenas, como crianças que jogavam pedras em nós e diziam “sai, judeu”. Nas últimas décadas, não havia tanta hostilidade.

ISTOÉ – A fundação do Estado de Israel mudou o quadro?
Michael Gordon

A situação ficou crítica. Os judeus que viviam no Egito tiveram dez dias para deixar o país. No Iraque, foram transferidos em massa. Na Síria, foram proibidos de sair. Apenas na Tunísia e no Marrocos viveram em relativa paz. Os judeus eram mais livres no Islã do que na cristandade. Na Europa, temos diversos exemplos de perseguições, como a Inquisição, as Cruzadas e o Holocausto. A convivência era mais violenta.

ISTOÉ – Mas no Islã os judeus eram considerados uma classe inferior e tinham de conviver com uma série de restrições e pagar impostos extras.
Michael Gordon

As restrições não eram tão agressivas. Os judeus não podiam construir sinagogas mais altas do que as mesquitas. Não podiam comprar um cavalo. Quando um mulçumano passava pela rua, tinham que andar pelo lado esquerdo. Tinham que usar uma estrela e um sapato vermelho para se identificar. De fato, tinham o imposto. Mas o mais importante é que tinham a liberdade de culto. Com os cristãos, era mais complicado. Os judeus foram acusados de ter matado Jesus. Entre eles, não havia culpa em matar os judeus ou forçá-los à conversão. Os judeus chegaram a participar de rituais de suicídio para não se converterem. O problema com o Islã hoje não tem nada a ver com religião. É uma questão territorial.

ISTOÉ – Se não houvesse o Estado de Israel, a convivência entre árabes e judeus seria pacífica?
Michael Gordon

A criação do Estado de Israel destruiu as comunidades judaicas nos países islâmicos. Não precisa ser historiador para afirmar isso. É uma questão de matemática. Havia mais de um milhão de judeus no mundo árabe. Hoje, são 25 mil.

ISTOÉ – Então a criação de Israel foi ruim para os judeus?
Michael Gordon

Em 1945, eu seria favorável à criação de um Estado judeu, lutaria por isso até morrer e seria o mais sionista de todos. Naquela época, os judeus eram perseguidos, viviam em guetos e não tinham leis para se proteger. Sessenta anos depois, não discuto que Israel deva existir. Não como um Estado judeu, mas como uma nação soberana. Um Estado judeu, assim como qualquer nação religiosa, corre o risco de se tornar racista e estabelecer o apartheid. No futuro, é provável que haja um grande conflito no país entre os mais religiosos e os laicos, entre os que defendem o uso do ônibus no sábado e outros que o condenam. É muito difícil para um judeu dizer que é antissionista e que Israel não deveria existir, porque isso é muito confundido com antissemitismo. Os judeus deveriam separar uma crítica ao governo de Israel de uma crítica ao judaísmo. O problema é que o Estado de Israel vive sob ameaça e, enquanto houver o risco, haverá o sionismo.

ISTOÉ – Você admira a cultura islâmica?
Michael Gordon

De tanto que eu falava da cultura deles, da arquitetura, da música, do ato de ajoelhar nas orações, a minha família pensava que eu iria me converter. Gosto da velocidade deles. Levam a vida devagar. Minha mãe é marroquina, de Rabat. O meu avô falava árabe. Ele tinha jeito e cara de árabe. Minha avó era da Palestina. Meu avô tinha o costume de rasgar o pão, molhá-lo na coalhada. Essas coisas me marcaram e eu sempre me senti um pouco árabe. Há 11 anos, meu avô faleceu e eu fiquei obcecado com a ideia de pesquisar mais sobre a nossa cultura. Era uma forma de manter uma ligação com ele.

ISTOÉ – Você cumpre os rituais judaicos?
Michael Gordon

Não sou um judeu praticante. No máximo, acendo velas na sexta-feira e faço jejum. Minha identificação com os judeus é pela história. Até hoje, me pergunto: afinal sou árabe ou judeu? Ainda não encontrei esta resposta.

ISTOÉ – Enfrentou riscos nas viagens?
Michael Gordon

Em Damasco, o clima é pesado. A Síria vive uma ditadura rígida. Eu filmava a cidade do alto de uma montanha até que um soldado que estava do outro lado me chamou. Ele estava bem raivoso, achou que eu o espionava na base militar. Apontou a arma para a minha cabeça e exigiu a fita do vídeo. Abri a mochila e entreguei uma fita virgem. Ele não percebeu e me liberou. Em Damasco, até os judeus são hostis a qualquer abordagem externa. Temem aparecer em fotos, dar entrevistas e sofrer represálias. Na Tunísia, enquanto eu fotografava crianças, um policial à paisana me abordou e me obrigou a prestar depoimento na delegacia. Acharam que eu era um terrorista. Em Alepo, na Síria, eu fotografava uma antiga escola judaica, quando dois árabes me chamaram para um café. Conversávamos naturalmente, até que eu percebi que um deles digitava os meus dados numa ficha. Saí correndo e deixei a Síria no dia seguinte. Nestes países, a tensão é permanente.

ISTOÉ – Em qual desses países a comunidade judaica é mais atuante?
Michael Gordon

Em todos. Cada um tem a sua sinagoga. De uma maneira geral, os judeus nesses países não são exibicionistas. Eles transitam nas ruas como árabes comuns. Vivem uma vida normal, fecham as suas lojas às 16h das sextas-feiras e evitam conflitos com os islâmicos. Encontrei uma foto do enterro do aiatolá Khomeini no centro judaico de Teerã. Dizem que ele definia os judeus como os irmãos mais velhos dos muçulmanos. Não sei se aquilo foi sincero ou se é o medo da ditadura.

ISTOÉ – Conviveu com algumas famílias?
Michael Gordon

No Irã, durante o primeiro sabá em Teerã, fui convidado por um judeu para jantar na sua casa. Ouvíamos a rádio israelense, o que era proibido porque não se pode ter nenhum tipo de comunicação com Israel. Ele me contou que oito judeus foram acusados de espionagem por ouvirem notícias de Jerusalém. No Egito, a representante da comunidade judaica no Cairo me impediu de fotografar o interior da sinagoga e do cemitério. Fui expulso pelo capanga dela. No Líbano, conheci um sírio chamado Jamal, de 16 anos. Ele fugiu do seu país porque não queria entrar para o Exército. No Irã, é comum que os rapazes judeus fujam do país para evitar as guerras. As moças ficam sem noivos e são obrigadas a ceder ao casamento interreligioso.

ISTOÉ – Os judeus são criticados por não assumirem a identidade da nação da qual fazem parte. Antes de serem italianos, americanos ou brasileiros, se definem como judeus.
Michael Gordon

Esta crise de identidade é algo que a maioria do povo judeu vive hoje. Eu, como judeu, deveria morar em Israel? Mas nasci no Brasil e falo português. A minha vida está aqui. Esta questão da religião acima da nação, uma herança do judaísmo, não serve para mim. Pertenço ao povo judeu, mas não carrego rótulos. O que me define são os meus conceitos, as minhas ideias, os meus valores. Para mim, judeu é aquele que aceita a herança judaica, não precisa seguir os rituais da religião.