O que vem depois do fiasco do neoliberalismo ainda não tem nome, mas seu principal instrumento, o chamado Consenso de Washington, de 1989, uma espada nas mãos dos técnicos de instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional, está caindo em desgraça. A Argentina, uma espécie de laboratório avançado do livre merca do no Terceiro Mundo, ruiu clamorosamente. Agora é o Brasil que, ao trocar de presidente, pode também optar pela troca de modelo econômico. O movimento enterra a era do mercado (o financeiro) como redentor de uma nação. E abre uma outra, teoricamente mais voltada aos mercados que interessam na vida real (aqueles onde se adquire a cesta básica que, aliás, vem batendo recorde atrás de recorde de preços altos), e que economistas como Joseph Stiglitz, Nobel de Economia em 2001, e Dani Rodrik, professor de economia política da John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard, chamam de “Além do Consenso de Washington”.

Na verdade, o chamado Consenso não teve nada de consenso: foi um documento adotado a partir de uma reunião realizada em Washington em 1989 entre acadêmicos e economistas americanos, funcionários do governo, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Seus mandamentos para salvar países são os mesmos, seja para a África ou a Rússia, seja para o México ou a Ásia: disciplina fiscal, reforma tributária, taxas de juros positivas, determinadas pelo mercado, câmbio competitivo, desenvolvimento de políticas comerciais liberais, maior abertura ao investimento estrangeiro, privatização, profunda desregulamentação, proteção à propriedade privada. A prescrição desse receituário único deu no que deu. O Brasil foi três vezes ao FMI em apenas quatro anos e a Argentina deixou pobre cerca de 50% de sua população, só para ficar entre vizinhos. Quem escapou dos mandamentos, como a China, também escapou dos revezes. O país cresceu 7,3% em 2001. Em matéria de privatização, menina dos olhos do neoliberalismo, as empresas transnacionais transformaram, na América Latina, os monopólios estatais em monopólios privados, aumentaram o desemprego, mantiveram as exportações centradas em setores de uso intensivo de recursos naturais e mão-de-obra barata e aumentaram a insegurança econômica dos pobres e da classe média em relação ao emprego.

O discurso político que prevalece nestas eleições parece conectado com o pensamento da corrente intelectual que, em favor de uma nova ordem econômica, propõe o abandono do neoliberalismo e do receituário do Consenso de Washington. Luiz Inácio Lula da Silva introduz prioridades como a redução da pobreza, distribuição de renda e melhora das condições sociais que ajudam a América Latina a se manter como a zona do planeta com maior espaço entre pobres e ricos. O grande desafio desse rompimento com os dogmas de Washington – apontado por Dani Rodrik em artigo publicado no jornal Valor – está em oferecer um conjunto alternativo de diretrizes políticas para promover o desenvolvimento sem cair na armadilha de promulgar um outro plano impraticável, supostamente correto para todos os países em todos os tempos. Em seu artigo, Rodrik – um economista muito elogiado por José Serra – disse que os poucos exemplos de sucesso ocorreram com países que seguiram seu próprio caminho (e que dificilmente seriam modelos de neoliberalismo), citando a China, o Vietnã e a Índia. “Todos violaram virtualmente cada regra do manual neoliberal, mesmo quando avançavam para uma direção mais orientada pelo mercado.”

Joseph Stiglitz diz o seguinte: “O Consenso de Washington defendeu o uso de pequeno
repertório de instrumentos para atingir o crescimento econômico; o pós-Washington diz que o repertório tem que ser maior, assim como são bem maiores os objetivos.” A busca, diz Stiglitz, é pela elevação do nível de vida, incluindo saúde e educação, e não somente avanços no PIB; por desenvolvimento sustentável, o que inclui preservação dos recursos naturais e de um meio ambiente saudável; por um desenvolvimento equilibrado, não reservado apenas às elites. Tudo isso num clima de amplo desenvolvimento democrático, em que as pessoas participem de várias maneiras das decisões que afetam suas vidas. “Fazer o mercado funcionar exige mais do que baixa inflação”, diz Stiglitz. “Requer uma regulamentação financeira idônea, política de competitividade, de facilidades para transferência de tecnologia e de estímulo à transparência, algumas das questões fundamentais negligenciadas pelo Consenso de Washington.”

Pressão – Os países da América Latina, torpedeados (e pressionados) pelas teorias de globalização e neoliberalismo, entraram com tudo. Ou melhor, com todo o ímpeto e sem o básico do jogo: uma economia competitiva. Toda a ênfase foi dada ao combate à inflação, à privatização, a minimizar ou evitar qualquer movimento da economia, inclusive “o excesso de emprego”, o que representou custos sociais e econômicos devastadores: famílias destruídas, aumento da pobreza, queda no padrão de moradia, conflitos políticos e sociais (como na Argentina). O Brasil pode ser a primeira tentativa séria de a América Latina dar um passo adiante e enterrar de uma vez por todas o que o economista americano John Williamson criou em 1989: o Consenso de Washington, que fez da América Latina seu grande laboratório. Faltou consenso. Ou melhor, o novo consenso está além do Consenso de Washington.

Não se trata de dar as costas à globalização. “A globalização chegou para ficar. A questão é: como fazê-la dar certo”, diz Stiglitz. “A mudança mais fundamental e necessária para fazer a globalização funcionar diz respeito ao seu gerenciamento. Isso exige do FMI, do Banco Mundial e de todas as instituições econômicas internacionais uma alteração nos direitos de voto. Não estou confiante de que as reformas chegarão logo, mas estou esperançoso. Se a globalização continuar a ser conduzida da maneira pela qual tem sido até aqui, ela não só fracassará em promover o desenvolvimento, como continuará a criar pobreza e instabilidade. Segundo esse pensamento, as nações em desenvolvimento devem elas mesmas assumir a responsabilidade por seu próprio bem-estar. O que devem pedir à comunidade internacional – escreveu Stiglitz – é apenas isto: a aceitação de sua necessidade e o direito de fazer suas próprias escolhas.