Como um demônio insepulto, o fantasma do anti-semitismo volta a assombrar o mundo. Uma pesquisa da Liga Anti-Difamação (LAD) divulgada na terça-feira 11 em Nova York revela que nada menos do que 17% dos americanos, algo como 48 milhões de pessoas, admitem ter “fortes” sentimentos anti-semitas. Este índice era de 12% há quatro anos nos Estados Unidos, país com a maior e a mais influente comunidade judaica do mundo, com cerca de seis milhões, cujos sucessivos governos historicamente mantêm estreitos laços com o Estado de Israel. A pesquisa foi realizada entre abril e maio deste ano, período em que também aumentaram de maneira considerável os ataques contra os judeus na Europa ocidental, principalmente na França e na Bélgica. Somente em abril, foram registrados 400 ataques anti-semitas na Europa, o dobro no mesmo mês do ano passado. Na França, cemitérios de judeus foram pichados com suásticas e sinagogas foram incendiadas. A União Européia chegou a discutir os casos de profanação e vários governos europeus reforçaram a segurança de locais frequentados por judeus. “Estamos aconselhando os judeus que viajam, principalmente para países como a França e a Bélgica, para que tenham mais cuidado”, afirmou a ISTOÉ Kenneth Jacobson, vice-presidente da LAD. Vivemos uma onda anti-semita só comparável aos tempos da Segunda Guerra Mundial”, comparou Avi Beker, presidente do Congresso Mundial Judaico.

Mas, ao contrário do que ocorria durante as décadas de 30 e 40, esta não é uma onda antijudaica apoiada por Estados. O ressurgimento do anti-semitismo agora tem relação com os atentados do dia 11 de setembro nos EUA e também com o recente recrudescimento do
conflito entre israelenses e palestinos no Oriente Médio. Não é à toa
que o confronto se tornou mais agudo em países como a França, que abriga as duas comunidades. Lá, os judeus estão presentes há vários séculos, ao passo que os árabes migraram, há relativamente pouco tempo, do Magreb francês (Argélia, Marrocos e Tunísia). Hoje, a França abriga a mais numerosa população árabe da Europa, cerca de cinco milhões de pessoas.

Naturalmente, esta comunidade foi a que mais protestou contra a truculência do primeiro-ministro israelense Ariel Sharon sobre os palestinos na Cisjordânia e em Gaza, mas o problema é que a condenação à ação de Israel se transformou em ataques à comunidade judaica. “Israel é um Estado democrático e Sharon foi eleito democraticamente. Uma coisa é ser contra o que ele faz, a outra é ser contra a população judaica”, afirmou Jacobson. Na França, essa tentação totalitária, diga-se de passagem, não é um privilégio da comunidade árabe. O anti-semitismo tem profundas raízes históricas em amplos setores da sociedade e jamais foi profundamente combatido. O mal-estar do anti-semitismo na França remonta ao caso Dreyfus (1894-1908), quando um capitão judeu do Exército francês, Alfred Dreyfus, foi falsamente acusado de traição e deportado para a ilha do Diabo. O caso dividiu a França em dois campos irreconciliáveis: os “dreyfusards” (republicanos, anticlericais, socialistas) e os “anti-dreyfusards” (católicos, anti-semitas e monarquistas). Estes últimos chegariam ao poder em 1940, com o regime pró-nazista de Vichy, chefiado pelo marechal Philippe Pétain, que aprovou leis raciais e deportou judeus para os campos de extermínio do III Reich sem que os nazistas o obrigassem. O debate até hoje atormenta a consciência nacional francesa.

Vício de origem – “Ao nos depararmos com um certo nível de anti-semitismo, olhamos e pensamos: como pessoas inteligentes realmente podem acreditar nisso?”, ingada John L. Esposito, professor de religiões e relações internacionais da Universidade de Georgetown, em Washington, DC. “Parte da explicação é que elas foram criadas assim, mas outra parte é que elas cresceram em uma situação de confronto. Você, então, transforma o mundo em ‘nós’ e ‘eles’, e por isso você pode ter todas as caricaturas possíveis dos outros”. Se por um lado, os árabes americanos sofreram e sofrem o preconceito de serem associados ao terrorismo e até os sikhs indianos que usam turbantes foram molestados depois do 11 de setembro, do outro lado, a população judaica também é vítima do mesmo tipo de estereótipos
preconceituosos. As entidades judaicas, inclui-se aí a Liga
Anti-Difamação, acusam a mídia internacional de propagar a imagem de Israel como o gigante Golias na luta contra o pequeno Davi, como a Autoridade Palestina. O governo israelense frequentemente indaga o porquê de a imagem de uma criança israelense morta em um atentado terrorista de homem-bomba nunca ter o mesmo impacto de uma criança palestina morta pelo Exército israelense.

Pretexto – A resposta não é fácil. O fato é que o impasse nas negociações de paz entre israelenses e palestinos no Oriente Médio alimenta o discurso racista de movimentos de extrema-direita europeus, como a Frente Nacional, do francês Jean-Marie Le Pen, e o Partido da Liberdade, do austríaco Jörg Haider. Estes elegem um inimigo em comum, que pode ser um imigrante, um judeu ou um árabe, para culpá-los pelos principais problemas da sociedade, como a falta de segurança e os altos índices de desemprego. Le Pen, por exemplo, declara que o Holocausto não passou de um “detalhe” na história, ao mesmo tempo que propõe a expulsão de imigrantes da França – que na sua maioria são árabes. Com esse falatório neonazista, Le Pen chegou a ter 18% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais na França em maio último. “Se um entre seis cidadãos franceses estiver apoiando um político que prega o racismo, já é motivo para eu estar preocupado”, afirmou a ISTOÉ o chefe do rabinato de Israel, o rabino Israel Lao. Na Alemanha, Jürgen Mölleman, o vice-presidente do pequeno mas influente Partido dos Democratas Livres (FDP), também fez declarações anti-semitas para tentar conquistar a simpatia de 2,5 milhões de árabes que vivem no país. Mas Mölleman levou tanto chumbo que teve de fazer meia volta e se desculpar. Usar toda uma comunidade como bode expiatório para os problemas do país não é um apanágio do Velho Continente. “Nas nações islâmicas, grande parte delas sob regimes ditatoriais, os governantes elevam o sentimento contra Israel em momentos em que a intenção é evitar discutir os problemas internos desses países”, afirmou Jacobson. O Iraque de Saddam Hussein é um clássico exemplo desse maquiavelismo de fundo de quintal.

Mea-culpa – Mas há sinais de mudança. A Igreja Católica, que durante séculos alimentou profundos preconceitos anti-semitas, hoje tem um papa conciliatório. João Paulo II foi um dos primeiros a pronunciar-se contra os ataques anti-semitas e a se desculpar pelos crimes e omissões dos católicos em relação aos judeus ao longo da história. O rabino Israel Lao, amigo do papa desde os tempos em que ambos eram adolescentes na Polônia, preocupa-se com a recorrência do ódio anti-semita. “Os judeus foram odiados por serem estrangeiros em todos os países. Disseram-nos que se fôssemos para a nossa terra o ódio cessaria. Seríamos, então, respeitados pelo nosso trabalho, nosso talento, enfim, seríamos respeitados por nossas conquistas. Mas, depois de termos a nossa terra, ainda continuamos sendo odiados. Nosso sangue não é o mesmo do Criador de todos? Não somos todos descendentes do mesmo Adão e Eva? Então, por que o ódio?