Fazer um teste psicológico é como dar um salto no escuro. Nunca se sabe que tipo de armadilha se esconde por trás daqueles borrões que devem ser interpretados, das formas geométricas enigmáticas ou do papel em branco no qual devemos rabiscar as projeções de nosso inconsciente. Mesmo quem nunca sentiu necessidade de procurar um psicólogo dificilmente escapa de se submeter a um desses testes em algum momento decisivo da vida. Todos os 40 milhões de motoristas brasileiros passaram por isso, assim como milhares de estudantes que anualmente recebem orientação vocacional. Uma das aplicações mais comuns é no processo de seleção de candidatos a empregos públicos, no qual os testes são usados, apesar de seus parâmetros de correção serem desconhecidos dos candidatos. Pior: os testes são misteriosos até para a entidade máxima no assunto, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que admite não ter avaliado nenhum deles. “Acabamos de formar uma comissão para fazer essa análise. Os primeiros resultados deverão ser conhecidos no ano que vem”, afirma Odair Furtado, presidente do CFP. É a primeira vez em mais de três décadas que os 160 testes psicológicos existentes no Brasil – alguns criados há 40 anos – serão submetidos a um controle de qualidade. Enquanto isso, continuam a ser aplicados, sem passarem pelo crivo do Conselho ou do Ministério da Saúde. “Não podemos garantir que sejam eficazes”, diz Furtado.

Os diretores do CFP sabem que mexeram em um vespeiro. A iniciativa de criar uma comissão para avaliar os testes pode mudar os parâmetros que os 125 mil psicólogos brasileiros usam para fazer seus diagnósticos. Além disso, dá um reforço considerável aos argumentos dos candidatos eliminados nos concursos públicos por conta de mau resultado na análise psicológica. Anualmente, uma multidão deles procura a Justiça para reclamar contra essas provas. “São muito frequentes as ações que questionam a eficácia dos testes aplicados em concursos públicos”, afirma o desembargador Nagib Slaibi Filho, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O conselho vai, ainda, balançar as editoras que há anos têm exclusividade na publicação dos testes. Trata-se de um lucrativo segmento do mercado editorial. O material é vendido para os psicólogos, e os critérios do que será publicado são criados pelos próprios editores. Basta que o autor do teste – na maioria estrangeiros – repasse os direitos autorais para a editora, que se encarrega de aplicar o exame a pelo menos 500 pessoas. É o suficiente para que seja considerado válido e publicado. A partir daí, serve como referência não só para concursos ou expedição de carteiras de habilitação, mas também para ajudar a decidir questões delicadas, como adoção de crianças. “Os testes são instrumento básico para o trabalho do psicólogo”, admite o presidente do conselho.

Interesses – Diante da importância do assunto e da frequência com que esse recurso é usado, surpreende saber que somente agora o CFP tenha tomado a iniciativa de interferir. “Infelizmente, durante muito tempo a entidade preferiu tratar mais de interesses corporativos do que servir de ponte entre os psicólogos e a sociedade”, afirma Furtado. A idéia de criar uma comissão de avaliação surgiu na gestão anterior do conselho, que era presidido por Ana Bock. “Fizemos um levantamento nos processos éticos e verificamos que essa era uma das questões mais frequentes”, afirma ela, atualmente presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. “Nos últimos 20 anos, os testes vêm recebendo críticas até mesmo no próprio meio profissional. Esse recurso deve ser usado como um captador de indícios, e não como revelador do sujeito”, afirma.

Não são poucas as vezes em que os resultados mostram incoerências difíceis de ser explicadas. Por três vezes, João Batista Rodrigues, 31 anos, foi obrigado a fazer o chamado Teste de Zulliger ao participar de concursos públicos em Brasília. O teste foi criado há 40 anos e propõe que alguns borrões sejam interpretados pelo candidato, que deve associá-los a algum objeto. Em um processo de seleção para vagas de oficial da Polícia Militar e em outro, para soldado bombeiro, ele foi aprovado na avaliação psicológica. Na prova para agente da Polícia Federal foi reprovado, apesar de o tipo de teste ser o mesmo. “Tenho certeza de que dei interpretações bem parecidas para aqueles borrões.

Não entendo como, por duas vezes, fui aprovado e em outra, reprovado”, questiona Rodrigues. Por causa da disparidade, resolveu entrar na Justiça para reclamar da falta de critérios, o que, inclusive, limita as possibilidades de os candidatos pedirem revisão de prova. “Há cerceamento do direito de defesa”, reclama. Ele acabou se tornando involuntariamente um expert no assunto, já que nos três concursos foi obrigado a fazer ao todo 19 testes na bateria de avaliação psicológica. Uma das principais críticas de Rodrigues é endereçada à técnica denominada Dinâmica de Grupo, em que várias pessoas são avaliadas por um psicólogo. “A avaliação depende das impressões desse profissional. Se eu não concordar com o resultado, como outros psicólogos poderão revisar uma análise tão particular?”, indaga.

Reprovação – Há outras distorções. Sargento do Exército, o gaúcho Cleyton Bell, 28 anos, fez há três anos o concurso para escrivão da Polícia Federal. Foi reprovado pelo mau aproveitamento na avaliação psicológica, feita pelo teste Wartegg (um conjunto de seis quadrados, nos quais há uma marca colocada em posições diferentes, serve como ponto de partida para um desenho do candidato). “Fiquei preocupado e logo depois da reprovação me submeti ao mesmo teste no consultório de um psicólogo e fui aprovado”, conta. Este ano, Bell tentou novamente ingressar na PF, no mesmo cargo. Não foi aplicado o Wartegg e ele passou. O sargento suspeita que o teste foi descartado no segundo concurso porque os próprios organizadores da prova teriam concluído que não era o adequado para a seleção. “Vou processar os promotores do concurso anterior por danos morais”, avisa. Os testes aplicados nos concursos são escolhidos a partir do tipo de vaga a ser ocupada. A idéia é a de que os promotores usem os testes para tentar identificar qualidades e habilidades que sejam úteis ao desempenho da função.

Administrador do Centro Editor de Psicologia Aplicada (Cepa), uma das mais tradicionais editoras de testes psicológicos do Brasil, Waldyr de Abreu vê com bons olhos a iniciativa do CFP. “Ela está de pleno acordo com as funções da instituição”, elogia. “Alguns profissionais deixaram de considerar conceitos básicos e usam instrumentos inadequados, sem padronização ou adaptação para a população brasileira”, lamenta, referindo-se a testes trazidos do Exterior e aplicados sem as modificações necessárias. Antes de publicar um teste, o Cepa o aplica em pelo menos mil pessoas. Outro que critica o uso indiscriminado do recurso e a falta de adaptação dos testes estrangeiros à realidade do País é o psicólogo mineiro Lincoln Bustamante. Ele oferece uma preparação aos candidatos a concursos públicos para que tenham um bom desempenho. “De acordo com o teste a que o candidato vai se submeter, tento identificar seus pontos fracos e desenvolvê-los para que ele se saia bem.” Bustamante diz que existem, inclusive, vários sites em que são oferecidos os testes para quem quiser fazê-los com antecedência.

Denúncia – No início da década de 50, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (Isop), da Fundação Getúlio Vargas, começou a fazer uma análise dos testes, mas o trabalho foi interrompido há mais de 20 anos. Mesmo assim, o Isop não era ligado ao Ministério da Saúde ou à entidade representativa da categoria profissional. Do Rio de Janeiro, a advogada Lívia Figueiredo enviou, no início do mês, ao Ministério Público Federal um pedido de providências, denunciando a inexistência de registro ou fiscalização pelo Ministério da Saúde, segundo ela órgão competente para cuidar da tarefa. “É um assunto de saúde pública, interessa a todos e não pode ser fiscalizado e regulamentado por um conselho representativo de uma categoria profissional. O conselho não tem competência para tratar disso”, argumenta. Lívia entrou na briga depois de ver um amigo ser reprovado em um dos testes quando fazia concurso para um cargo na Polícia Federal. Procurada por ISTOÉ, a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde admitiu, pela assessoria de imprensa, que não faz qualquer tipo de avaliação dos testes existentes no País e atribui ao conselho a competência para tratar do tema. Mas afirma que poderá considerar o assunto caso seja acionado “pela sociedade”. A advogada discorda e reclama da omissão do governo federal. “Essa atitude é ainda mais grave porque deixa sem fiscalização um produto cuja lógica está restrita a quem os elaborou e a quem irá interpretá-los e corrigi-los”, critica Lívia. De qualquer forma, a iniciativa do conselho tem o mérito de abrir debate sobre um tema que, por muitos anos, ficou fechado entre os próprios psicólogos e que, a partir de agora, talvez passe a ser tratado com o devido cuidado – pelos profissionais e pela sociedade.