O melhor reality show da temporada você não vai ver na televisão. Os personagens principais são dez mulheres das classes C e D, que representam 40% do consumo em diversas cidades brasileiras, segundo dados do IBGE. Elas moram na periferia de São Paulo, lavam, passam, cozinham, arrumam dinheiro para criar os filhos, em geral prestam serviços (especialmente domésticos), são religiosas, feministas por necessidade, guerreiras, “lutadeiras”, como diz uma delas, e, quase sempre, vêem os maridos como uma entidade “incômoda”. “Marido não é família, qualquer coisa eles somem.”

Essas personagens extraordinárias estão na pesquisa “Opção: vida – retrato da mulher de baixa renda”, desenvolvida com uma técnica inédita no Brasil, intitulada Discovery, trazida pela agência de propaganda Ogilvy, que faz parte do grupo Ogilvy & Mather Worldwide, potência com
474 escritórios em 106 países e faturamento anual da ordem de US$ 14 bilhões. O método faz sucesso nos Estados Unidos e na Europa porque, entre outras coisas, mostra à comunicação e ao marketing o verdadeiro comportamento que motiva decisões e escolhas dos consumidores. O trabalho foi coordenado por Marcelo Novazzi, gerente de pesquisa de mercado da Ogilvy.

Por meio de imersões nas casas desse grupo de mulheres com idade entre 25 e 40 anos e renda mensal entre R$ 700 e R$ 1.200, o estudo apresenta os hábitos de consumo e a visão da mulher de baixa renda sobre religião, beleza, política, família. Cada uma dessas mulheres recebeu um pesquisador que permaneceu sete horas em sua casa, registrando com uma câmera digital a reação da entrevistada a cada assunto abordado. Foram mais de 60 horas de gravação, que resultaram num filme de 30 minutos e numa constatação: tudo na vida delas é voltado para os filhos, de proporcionar a eles o que não tiveram, o que significa educação e, eventualmente, alguma celebração da vida. “Preferi fazer a festa de 15 anos da minha filha a dar entrada num apartamento”, diz uma das mães-pais da pesquisa.

O estudo destaca que muitas dessas mulheres são os pilares emocionais e financeiros de seus lares. Os maridos são vistos, na grande maioria, como displicentes, alheios aos problemas do dia-a-dia. “Maridos são piores que homens” é uma das frases reveladoras do filme. Homem, no caso, é o namorado; marido é aquele chato que joga roupa no
t
anque e exige mais um prato na mesa.

Sonham, como diz uma delas, com uma geladeira cheinha, “com refrigerante, linguiça, danone (a denominação que usam para iogurte), frango”. E são especialistas em fazer milagres: transformam a mistura de dois ovos, água, margarina e pó Royal (essa é a marca do fermento) num bolo gostoso. Os hipermercados, para elas, representam o que é o shopping center para a classe média. Um paraíso. Compram picadinho, um pouco por vez, e são fissuradas por promoções. Na escolha, primeiro vem o preço, depois a marca, ou seja, elas são fiéis ao orçamento, depois ao produto que levam para casa. Mas sabem, como disse uma delas, que “o arroz Camil, mais caro do que aquele que ela compra, é melhor e, podendo, não hesitam em comprá-lo, assim como a Coca-Cola, quase um presente de fim de semana (durante a semana, o refrigerante é da marca Dolly). “De tudo eu compro um pouco”, diz uma das entrevistadas, sempre com um olho no gasto. Esse “de tudo”, porém, é o básico do básico: arroz, óleo, feijão, açúcar, farinha, eventualmente extras – maionese, miojo e caldo Maggi, como mostra uma das despensas filmadas. Qualquer luxo pode ser fatal para a renda, que sempre é mais curta do que o mês.

Outra tendência de comportamento aponta para a dificuldade de manter aceso o lado feminino. “No papel de mãe e pai, fiquei mais machona.” Elas são religiosas, em sua maioria evangélicas, e a entidade Deus funciona como terapeuta. “Conto tudo pra Ele e entrego tudo nas mãos d’Ele” é frase recorrente entre as entrevistadas. Quando mudam de casa, mudam de igreja e até de religião, “para ficar mais fácil”. Dependentes de um serviço público falido, elas criticam sem piedade o governo, apontado como culpado pela corrupção, violência, miséria e falta de emprego.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

São marias de vários Estados, que vieram tentar a vida em São Paulo, mulheres que entre comprar uma televisão e uma geladeira não hesitam em se endividar pela primeira opção e são consideradas excelentes pagadoras. “O crédito é uma honra para a família”, diz Sérgio Amado, presidente da Ogilvy Brasil e da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap). Amado, primo em segundo grau do escritor Jorge Amado, integrante do board mundial do grupo, não tem dúvidas de que esse consumidor praticamente excluído merece atenção, muita atenção. “É preciso criar produtos para essa faixa de consumidores.” O amaciante Comfort para diluir, por exemplo. É preciso fazer bem à sua auto-estima, como fazem C&A com a democratização do design e da moda (Gisele Bündchen para todos) e Havaianas, as sandálias que estão nos pés de ricos e pobres. É preciso ainda cultivar a idéia de que a família feliz pode ser só elas com seus filhos. Quem toca nesse assunto, por exemplo, é a loja Kolumbus, na campanha em que a atriz Solange Couto (a dona Jura da novela O clone) recomenda: “Quando você for comprar móveis, fica de olho na qualidade, porque de tranqueira em casa, me desculpe minha amiga, mas já basta esses maridos da gente.”

Algumas delas já se livraram deles e todas, vítimas da fratura social, em vez de se verem como vítimas, vão à luta. “Sou uma nordestina porreta”, diz uma entrevistada, enquanto limpa o chão da casa.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias