Os números são retumbantes. Foram mais de dez milhões de votos recolhidos em quatro mil cidades brasileiras durante a primeira semana de setembro. O resultado foi uma goleada antiimperialista, como se esperava: 98% das pessoas que foram às urnas disseram não à inclusão brasileira na Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Outro tanto de gente (95% do total) opinou que o País deve se retirar das negociações para a criação do bloco econômico. Organizado por entidades como o Partido Socialista dosTrabalhadores Unificado (PSTU), o Movimento dos Sem Terra (MST) e a Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB), o plebiscito não tem valor legal, apenas simbólico. “Mas a repercussão ética e política foi muito forte. É um sinal de que o povo começa a entender que aquilo é um projeto que o governo negocia desde 1994 e não se dá ao trabalho de informar o que é”, diz o presidente do PSTU e candidato à Presidência, José Maria de Almeida, o Zé Maria.

Mobilização – De fato, não é toda hora que dez milhões de pessoas se mobilizam em torno de um tema. Ainda mais sobre algo tão abstrato para a população quanto uma negociação internacional de comércio do porte da Alca, que pretende eliminar tarifas e barreiras comerciais dos 39 países que existem entre a gelada Patagônia, ao sul das Américas, e o gelado Alasca, no extremo norte (com a exceção de Cuba). O tom do discurso dos organizadores, que realizaram uma manifestação com pequena adesão popular na terça-feira 17 em Brasília, é radical. Tanto que o PT, possível comandante das negociações a partir do ano que vem (se vencer as eleições), pulou fora da organização. Na CNBB, o lema é “Soberania não se negocia”. O presidenciável Zé Maria também não alivia. “O Brasil voltará a ser colônia. Só valerão as leis que beneficiam corporações multinacionais”, diz.

O governo parece não ter dado a menor importância ao plebiscito. A cerimônia de entrega do resultado ao presidente Fernando Henrique Cardoso (que seria representado pelo secretário-geral Euclides Scalco), marcada para o Palácio do Planalto, foi cancelada. No Senado, os organizadores encontraram apenas um guichê para protocolar o manifesto – o presidente da Casa, Ramez Tebet, não quis receber a comissão. A única autoridade que se dignou a abrir a porta da frente para o grupo que incluía o líder sem-terra João Pedro Stédile foi a embaixadora americana, Donna Hrinak, na manhã da quarta-feira. “Ela demonstrou preocupação com os 81 milhões de miseráveis da América Latina. Nós dissemos a ela que a Alca só vai fazer aumentar esse número”, diz Zé Maria. A diplomata não se pronunciou sobre o encontro.

Paixões – Discursos inflamados à parte, restou a discussão, inevitável, da adesão do Brasil à área de livre comércio. A Alca suscita paixões políticas, toca em temas delicadíssimos, como a soberania das nações, e movimenta toda a diplomacia do continente (a próxima reunião está marcada para o início de novembro, em Quito, no Equador). Mas, do ponto de vista econômico, representa um dilema. “O comércio com os Estados Unidos tem grande importância. Até China e Cuba querem acesso ao mercado americano”, reconhece o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um notório opositor da criação da zona livre. “O problema da Alca é que ela vai colocar em igualdade de condições as maiores empresas do mundo, que são as americanas, com as empresas brasileiras. Vai ser um massacre”, avalia o diplomata, que considera
o tratado de comércio inconstitucional.

Roldão – A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), de certa forma, concorda com o embaixador. No final de julho, a entidade divulgou o mais extensivo estudo já feito sobre os eventuais impactos econômicos do bloco comercial no Brasil. O resultado da simulação, que levou em conta a anulação imediata de todas as tarifas de importação entre os principais países, revelou que o placar seria negativo em US$ 1 bilhão por ano no saldo comercial brasileiro. “Se não nos prepararmos, a Alca nos levará de roldão”, disse na ocasião o presidente da Fiesp, Horacio Lafer Piva. “A Alca é um projeto muito importante para o Brasil e nós devemos participar da negociação defendendo, obviamente, os interesses do País. A Alca não é obrigatória. Ela só é interessante na medida em que nós tenhamos vantagens”, afirma o industrial Luiz Fernando Furlan, presidente do Conselho de Administração da Sadia, uma das maiores exportadoras do País.

O difícil, ultimamente, tem sido levar vantagem em alguma negociação que envolva os Estados Unidos, que recentemente ergueram barreiras ao aço brasileiro. “Eles deviam ter uma atitude de sedução. Se você convida alguém para dar cacetada, o convidado não vem”, diz Furlan. Por enquanto, dez milhões de pessoas não estão querendo apanhar.