O número de eleitores que vão às urnas para escolher o sucessor de Fernando Henrique Cardoso é enorme: 115 milhões. Mas a briga de foice em que se transformou a campanha presidencial concentra-se em torno de um pequeno contingente que pode fazer a diferença: os eleitores migrantes. Os quatro principais candidatos a presidente travam uma verdadeira cruzada em busca dos chamados infiéis – os que optaram por um nome, mas podem ser seduzidos pelo canto da sereia. A poucos dias do primeiro turno, e diante da possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganhar seu presente de aniversário no dia 6 de outubro, a campanha pegou fogo. Uns tentam tirar eleitores de outros, e, ao mesmo tempo, os três que estão abaixo de Lula – José Serra (PSDB), Anthony Garotinho (PSB) e Ciro Gomes (PPS) – procuram evitar que a eleição acabe no primeiro turno. É uma corrida contra o relógio. Segundo o Instituto Datafolha, a maioria esmagadora do eleitorado, cerca de 90%, já tem candidato desde maio. No entanto, isso não significa que essa manada seja fiel aos nomes escolhidos.O que tem se verificado nas pesquisas é uma migração de eleitores de um candidato para outro. Essa oscilação – influenciada pelo mais alto índice de exposição dos candidatos e suas propostas na tevê – funciona como pólvora.

“Primeiro, teve a onda Roseana. Depois, foi a vez de Ciro. Em seguida, Serra cresceu. Este contingente migra por causa da dinâmica da eleição na televisão”, analisou o cientista político Rubens Figueiredo, do Centro de Pesquisas Análises e Comunicação (Cepac). Ele lembra que Roseana Sarney, antes de renunciar a sua candidatura, atingiu o ápice nas pesquisas, com 25% das intenções de voto. Ciro Gomes chegou a 27%. “É difícil calcular o contigente de eleitores migrantes, mas podemos estimá-los entre 10% e 12%”, observou. Além do mais, existem os indecisos. Segundo o Datafolha, são 10%. A última pesquisa Ibope demonstrou a migração de eleitores de Ciro para Lula nas regiões Nordeste, Norte, Centro-Oeste, nas capitais, entre os homens. Os eleitores com instrução superior que abandonaram o barco de Ciro se dividiram entre seus concorrentes e eleitores indecisos. Essa pesquisa, divulgada na terça-feira 17, mostrou que o petista subiu de 39% para 41%, e está a dois pontos de vencer no primeiro turno. Serra ficou estagnado com 19%, Garotinho foi de 12% para 13% e Ciro caiu de 15% para 12%. No dia seguinte, quarta-feira 18, outra pesquisa confirmou o crescimento de Lula. O instituto Vox Populi registrou a subida do candidato do PT, de 39% para 42%. Serra caiu de 19% para 17%. Ciro caiu de 17% para 15%, e Garotinho se manteve estável em 12%.

Na manhã da terça-feira 17, o líder do PMDB, Geddel Vieira Lima (BA), procurou FHC, inquieto com os números que indicavam o crescimento de Lula e a estagnação de Serra. “O que o senhor está achando?”, indagou Vieira. “Pode dar primeiro turno. Possível tudo é, mas eu não acredito, não há condições e eles não têm estrutura para isso. Esse eleitorado todo não é do PT. O Lula, até agora, nadava de braçada porque ninguém mostrava as contradições dele. Além de atacar é preciso mobilizar nos Estados”, avaliou FHC, que será mais acionado na reta final da campanha – reaparecendo no programa do horário político. A serenidade no diagnóstico de FHC, entretanto, não dissipou o fantasma de a eleição ser decidida logo no primeiro turno. No mesmo dia, o QG da campanha tucana acendeu a luz amarela e partiu para o tudo ou nada contra Lula, disparando os mais pesados ataques vistos até agora no horário gratuito.

O publicitário Nelson Biondi explica que a estratégia do tucano é conquistar eleitores que dizem votar em Lula, mas não são petistas fiéis. Nesse universo, estariam os votos que Lula herdou de Ciro Gomes. “Estamos em busca dos votos não cristalizados de Lula, que são 12% dos 40% que ele tem”, arrisca, lembrando que são pessoas de baixa renda e menor escolaridade. O importante para o tucanato agora
é que Lula não vá para o segundo turno, no dia 27 de outubro, com grande vantagem em relação a Serra, já que a campanha será curta.
Tem apenas 19 dias e os dois candidatos terão o mesmo tempo no horário eleitoral. Para Biondi, a questão é impedir o crescimento de
Lula. “Desde que Garotinho e Ciro não ultrapassem Serra, eles podem receber os votos que Lula perder. A estratégia é desconstruir a
imagem do Lula do bem. Vamos mostrar que, ainda que Lula tenha mudado, o PT continua sendo o mesmo”, conta Biondi.

O bombardeio começou na terça-feira 17, com a exibição, no horário gratuito, de uma gravação feita em 2000, em que o presidente do PT, José Dirceu (SP), comanda uma greve de professores, o que teria incitado a agressão ao então governador Mário Covas: “Eles têm de apanhar nas ruas e nas urnas”, exorta Dirceu, na cena mostrada na tevê. “Uma semana depois o deputado foi atendido”, diz o locutor sobre as cenas em que os professores estaduais agrediam Covas. Alvo direto do ataque, José Dirceu, o homem forte da campanha de Lula, disse que se tratava de uma “falsificação grosseira do que aconteceu”. Reclamou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e conseguiu impedir novas veiculações do videoteipe, além de beliscar três minutos no programa tucano como direito de resposta. Mas a artilharia não parou por aí. Uma apresentadora mostrou ainda um edital da prefeitura paulistana exigindo diploma superior para ocupar a vaga de fiscal da prefeitura. “Mas, para presidente da República, o PT não acha necessário ter curso superior”, ironiza o locutor. A crítica, num país onde só a elite tem formação universitária, não foi aprovada nas pesquisas internas do PSDB, especialmente pelas classes A e B, e não será reexibida. Na quarta-feira, Serra tentou consertar: “Não acho fundamental (o diploma). Quero dizer isso com muita convicção.” O programa de Serra da noite de quinta-feira 19 comparou Lula ao ex-prefeito Paulo Maluf, na campanha de 1998, mostrando a semelhança da proposta de criação da farmácia popular, inspirada no governo de Miguel Arraes, em Pernambuco. As duas campanhas foram feitas pelo publicitário Duda Mendonça, que hoje está com o petista.

O bombardeio transbordou para o site oficial de Serra e para as entrevistas do tucano. Serra apelou, acusando Lula de “defender a bomba atômica” e disse que é preciso discutir as ligações do MST com as Farcs. Foi criada uma série sob o título “Ou Lula esconde o que pensa ou não sabe o que diz”, abordando contradições dos petistas sobre vários temas, entre eles a meta para a criação de dez milhões de empregos, negada por Lula. O pretexto para abrir fogo contra o PT foi a denúncia do procurador Luiz Francisco de Souza contra amigos de Serra por improbidade administrativa, entre eles Ricardo Sérgio e Gregório Marin Preciado. Os tucanos lembram que Luiz Francisco foi filiado ao PT até 1995. As pesquisas qualitativas do PSDB apontaram uma grande aceitação dos petardos iniciais e os ataques serão ampliados nos seis programas restantes, exatamente quando a audiência do horário gratuito volta a crescer.

No QG petista, Serra foi acusado de truculento. No site do candidato, o jornalista Ricardo Kotscho, assessor de imprensa de Lula, escreveu um editorial intitulado “Reagir aos ataques, sem cair na baixaria”. Diz que “os programas de tevê do candidato oficial atingiram o nível mais baixo da campanha, numa triste lembrança da grande farsa montada para apoiar Collor contra Lula em 1989. Os mesmos preconceitos, as mesmas mentiras, a mesma tentativa de espalhar o terrorismo para evitar a vitória de Lula. Só que desta vez a história será outra. Nenhum ataque ficará sem resposta”. Lula reagiu olimpicamente. “Eu não vou utilizar a tevê para baixar o nível da campanha. Quero ter o respeito da dona-de-casa, do trabalhador e das crianças. Se alguém quiser chorar ou ficar nervoso, é problema dele, não meu”, afirmou. Os petistas passaram a comparar Serra ao ex-presidente Fernando Collor, que derrotou Lula em 1989 explorando aspectos da vida pessoal do petista. “Serra está agindo como o Collor, com baixarias e estimulando o preconceito. Sabemos que há muitos tucanos constrangidos com essa tática do desespero”, disse José Genoino, candidato do PT ao governo de São Paulo, após participar, junto com Lula e sua mulher, Marisa, de um comício em Guarulhos (SP), na quarta-feira 18. Coube ao candidato a senador Aloizio Mercadante (PT-SP) cobrar do PSDB o respeito pela memória de Mário Covas. “É por isso que Covas nunca apoiou Serra para presidente”, disse Mercadante. A resposta do PT na tevê aconteceu na quinta-feira 19. Sobre a exploração da falta de diploma de Lula, a locutora do programa lembra que Collor tinha formação universitária. Com relação à polêmica sobre a geração de empregos, o revide foi mais incisivo, com a
afirmação de que, durante os dois anos em que Serra foi ministro do Planejamento, “a taxa de desemprego dobrou”.

O outro movimento tucano foi uma demonstração de força política que reuniu em Brasília 60 caciques que apóiam Serra nos Estados, entre eles oito governadores. Depois da exibição do programa de Serra, os pesos pesados da política se dividiram quanto aos ataques a Lula e o temor de que a estratégia não atraía votos para os tucanos. A avaliação geral é que Lula perderá pontos, mas nada garante que Serra seja o beneficiário direto. Eles podem estar certos. Quando Roseana foi detonada, havia a previsão de que Serra herdaria naturalmente os votos da pefelista, o que não aconteceu. “O partido não tem opção. É bater, mas precisamos acertar o tiro. Não podemos errar. O segundo turno é agora”, defendeu o ex-governador Dante de Oliveira (MT). “Temos que questionar as contradições, mas não um embate igual ao que tivemos com o Ciro”, desaprovou o líder tucano, Jutahy Júnior (BA).

Tiro no pé – A cúpula da campanha de Ciro Gomes só vê vantagens nos ataques de Serra a Lula. Por três motivos: primeiro, porque acredita que os votos perdidos por Lula podem migrar, em sua maioria, para o próprio Ciro; segundo, porque avalia que Serra, atacando o petista com tanta veemência, pode estar dando um tiro no pé; e terceiro, porque a polarização entre Serra e Lula tira Ciro da berlinda. A grande esperança da Frente Trabalhista agora é que tucano e petista caiam nas pesquisas. “O candidato do governo está identificado na opinião pública como ‘um sujeito sanguinário que usa qualquer artifício para chegar ao poder’.” Com a queda nas pesquisas, a campanha de Ciro ficou desorientada. Uma mostra disso aconteceu na quarta-feira 18, quando o site do candidato exibiu a mensagem: “Se você quer um candidato de oposição sério, trabalhador e bem-intencionado, você tem duas opções: Ciro e Lula.” Algumas horas depois, o comando da Frente Trabalhista trocou o texto por outro oposto, que dizia: “Se você quer um candidato que representa um salto no escuro e uma aventura, a opção é Lula.” Ao fazer coro com Serra nas críticas ao petista, o candidato do PPS tem apenas uma intenção: assim como o tucano, ele quer garantir o segundo turno. O tom subiu e Ciro chegou a dizer: “Quem acha que deve tocar fogo vote no Lula.”

Outro sinal de trapalhada foram as contradições entre Ciro e o presidente do PPS, senador Roberto Freire (PE). Na quarta-feira 18, quando o candidato criticou a exibição da cena de José Dirceu no programa tucano, dizendo que “foi uma prática fascista”, o senador, na contramão, declarou que Serra “prestou um serviço à democracia ao trazer Lula para o debate.” Causou furor. “Será que ele ainda não entendeu que nosso inimigo agora é o Serra, e não o Lula?”, disse um aliado, resumindo a indignação geral da Frente. Na tevê e na internet, a campanha de Ciro continua criticando Serra. Na quinta-feira 19, o programa abordou o tema da segurança e voltou a bater na tecla da ineficiência do governo FHC. No site, Ciro elegeu como seu padroeiro São Cristóvão, o santo dos motoristas. Foi uma provocação a Serra, motivado pelos boatos de que um ex-motorista do tucano vai criticar Serra no horário eleitoral. A iniciativa funcionou também como uma ironia à escolha, por parte de Serra, de Santo André como padroeiro de sua campanha online, numa referência à cidade administrada pelo PT e que está sendo alvo de denúncias de corrupção.

Animado com recentes pesquisas que apontam um leve crescimento de sua candidatura, Garotinho espalhou na semana passada a informação de que uma pesquisa encomendada por seu partido o situa como mais provável adversário de Lula no segundo turno. A tática de atacar
os concorrentes continua em franca ascensão. “O único que não se rendeu ao poderio dos bancos foi Garotinho”, vangloria-se o candidato. Um indício forte de seu crescimento foram os ataques feitos contra ele por Serra no programa eleitoral. “Ele está desesperado, não consegue decolar e vem sentindo que será ultrapassado por mim nos próximos dias”, anima-se o ex-governador. Ele partiu para cima de Lula: “Do que o Lula vive há oito anos, já que não trabalha?” A temperatura continua alta e a tendência é que esquente ainda mais na reta final. Os indecisos que se preparem para o assédio.