Num tempo em que a televisão ainda não tinha revelado o quanto poderia ser voraz e veloz na arte de construir sucessos e transformá-los em sucata, dezenas de adolescentes da década de 50 sonhavam com a fama enquanto aguardavam o resultado de seus testes para o primeiro teleteatro da extinta TV Tupi, O tribunal do coração. Entre as concorrentes, ganhou um dos papéis a jovem Laurinda de Jesus Cardoso, que não era a mais bonita, mas, depois de contratada, fazia o chão tremer quando dramatizava textos com nomes devastadores, como O castelo do homem sem alma. A atriz vinha de uma experiência na paulistana Rádio Cosmos, onde fazia teatro infantil. Na era radiofônica, valia a força da voz e a capacidade de convencer o ouvinte com uma história que ele só ouvia enquanto imaginava as cenas. Com a passagem para a televisão, Laurinda decidiu livrar-se do nome que não a agradava. Até por ser uma homenagem de seu pai a uma ex-namorada. Assim nasceu a hoje fabulosa Laura Cardoso, 74 anos recém-completados, uma das maiores potências artísticas do País, que consegue convencer tanto em papéis de pobretona quanto nos de madame.

No momento, Laura é a Madalena da novela global das oito, Esperança, um dos poucos destaques artísticos da trama assinada por Benedito Ruy Barbosa, que também tem premiado as ótimas atuações de Eliana Guttman e do cantor e ator sazonal Gilbert como o casal judeu do folhetim. Interpretando uma mulher simples, moradora de um cortiço, a atriz supera a lamúria básica da personagem dando-lhe vida com ótimos lampejos de humor, até mesmo quando o texto não exige. O resultado é uma composição forte, que sem querer abafa os vários rostos jovens e bonitos que a cercam. Madalena é a boa mãe, empenhada em arranjar um bom casamento para a filha, Nina, papel da belíssima Maria Fernanda Cândido. Debruçada sobre o tanque coletivo do cortiço, enquanto conversa com as roupas que esfrega freneticamente, ela traça planos para tentar evitar que a filha repita seus erros, raciocinando com toda a sabedoria de mulher do povo. “Eu vivi no bairro do Bixiga, em São Paulo, onde havia muitos cortiços, e me baseei nas lembranças daquelas mulheres”, conta ela.

Atriz de circo, rádio, teatro, televisão e cinema, Laura não sabe exatamente quantos espetáculos ou personagens já interpretou. “Todos são difíceis de criar e exigem muitas horas de estudo, laboratório, dedicação”, diz ela, já acostumada a trabalhar com jovens artistas e a repassar suas experiências. Atualmente, junto a um elenco de ex-alunos do carioca Centro de Artes Laranjeira (CAL), ela ensaia a peça Laranja mecânica, baseada no livro escrito em 1962 pelo inglês Anthony Burgess, cuja história foi imortalizada em 1971 no filme homônimo de Stanley Kubrick. Até a estréia, prevista para 11 de outubro no Rio de Janeiro, ela espera aproveitar ao máximo a descontração dos ensaios: “É sempre uma troca. Não é só a gente que é mais velha que passa coisas para eles. Também aprendo muito com os jovens.” Em Esperança, ela se tornou boa amiga de Maria Fernanda Cândido. “É um relacionamento muito gostoso, de companheirismo e amizade. Quando podemos, saímos para jantar. Ela é um aprendizado”, afirma a jovem atriz. Reynaldo Giannechini, o sobrinho Toni da mesma novela, também se desdobra. “A gente se contamina pela força e pelo talento dela. É uma amigona”, conta ele, que, junto com Maria Fernanda, não cansa de empilhar elogios e palavras como “delícia”, “maravilha”, “prazer enorme”, “chance incrível” quando se refere à veterana. Afinal, não são poucos os trabalhos reiteradamente louvados pela crítica e pelo público.

No teatro, vale ressaltar a camponesa Dolor, de Veredas da salvação, com direção de Antunes Filho, sob a batuta de quem ela estreou nas artes cênicas, em 1959, com Plantão 21. Um outro destaque é Vem buscar-me que ainda sou teu, na qual foi dirigida por Gabriel Villela. Em cinema, brilhou em Através da janela, de Tata Amaral, e Terra estrangeira, de Walter Salles. Difícil é selecionar obras televisivas. Das novelas, merecem citação desde aquelas guardadas na memória recente – A padroeira, Irmãos Coragem ou Mulheres de areia – até as mais antigas, entre elas Olhos que amei, Renúncia e Abnegação. “É uma vida dedicada à interpretação”, diz a atriz. Laura Cardoso pertence à época em que para brilhar não era condição imprescindível ser dona de um rostinho perfeito. Tanto que, para ela, fazer cirurgias plásticas, implantar silicone ou botox sob pretexto de que a carreira exige é pura bobagem. “Nunca fiz. Acho que talvez essa seja a verdadeira vaidade: não admitir alterações em si.” A saúde também não é motivo de muito investimento. “Como muita porcaria, sou chocólatra, durmo pouco, não cumpro horários”, diz a ex-fumante por imposição médica.

A vitalidade vem de outras fontes. Do trabalho, da família e do próprio ato de representar. “Amo inventar vidas, reconstruir. Nasci para essa profissão.” Viúva há 25 anos, a mãe de duas filhas e avó de duas meninas conta que, olhando para o próprio umbigo, sente orgulho da trajetória. Mas reconhece não ter ganho dinheiro equivalente à labuta. “Nós, atores antigos, não tivemos agentes, empresários. Sempre negociei meus contratos e negocio até hoje. Muito mal, por sinal, mas sou eu mesma quem faz”, diz, às gargalhadas, para arrematar: “Quer saber? Sou feliz.”