Cientista política garante que o presidente do desenvolvimento com democracia ainda não tem herdeiros políticos e critica FHC

Nascido há exatos 100 anos em Diamantina (MG), Juscelino Kubitschek de Oliveira assumiu em 1956 o Palácio do Catete, antiga sede do governo federal, com o Brasil em estado de sítio, ainda abalado pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas, dois anos antes. Seu sucessor, Jânio Quadros, não se manteve mais do que sete meses no poder. Entre um caos e outro, durante cinco anos, JK também enfrentou crises, mas imprimiu ao Brasil um clima de otimismo e um ritmo de desenvolvimento que ficaram na saudade.
 

Autora do livro O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política, a cientista política Maria Victoria Benevides contou com a presença de JK no lançamento da obra, em julho de 1976, no Rio de Janeiro. Foi a última aparição pública do político cassado pelo regime militar. Um mês depois, ele morreria num acidente e seria enterrado por uma multidão que cantava sua música preferida, Peixe vivo, uma peça do folclore nacional.

De lá para cá, o trabalho de Maria Victoria virou referência. Aos 60 anos, professora da Faculdade de Educação e diretora da Escola de Governo, ambas da USP, Maria Victoria se define como uma pessoa de esquerda, com princípios socialistas. “Não me identifico politicamente com Juscelino, que era, no máximo, de centro”, diz. Apesar do distanciamento ideológico, a cientista política sai do sério ao ser lembrada que, a exemplo de muitos homens públicos, o presidente Fernando Henrique Cardoso também já se apresentou como herdeiro político de JK. “Acho um desaforo ele, Fernando Henrique, e seus amigos e bajuladores quererem associar a figura de Juscelino à do atual governo”, diz. “Juscelino investiu profundamente numa proposta de metas, no desenvolvimento da indústria nacional. Fernando Henrique fez justamente o contrário. Prometeu uma mão espalmada com cinco dedinhos e termina o governo cotó.” A seguir, os principais trechos da entrevista de Maria Victoria a ISTOÉ.

ISTOÉ – Como foi o seu primeiro encontro com JK?
Maria Victoria Benevides

Foi ótimo e péssimo ao mesmo tempo, no começo de abril de 1974. Ótimo porque eu estava conhecendo o objeto de minha pesquisa de mestrado, um presidente que tinha deixado uma marca fortíssima na política brasileira. Mas, quando eu cheguei, ele estava transtornado. Tinha acabado de saber que os militares haviam devolvido pela metade seus direitos políticos, cassados dez anos antes. Juscelino poderia votar, mas continuava inelegível. Foi um momento muito delicado, mas, como ele era um gentleman, me deu a maior atenção. Ficou fascinado com o fato de que, pela primeira vez, alguém se preocupava em estudar seu governo.

ISTOÉ – Qual era o eixo do trabalho?
Maria Victoria Benevides

O desenvolvimento econômico com democracia, com estabilidade política, com as instituições funcionando. Ele mesmo dizia que o maior sinal de benemerência – ele gostava de usar essa palavra – era ter sido o único presidente civil depois do Estado Novo que completou seu mandato. E numa conjuntura que era a pior possível. Ele ficou espremido entre um presidente que se suicidou, Getúlio Vargas, e outro que renunciou com sete meses de mandato, que foi Jânio Quadros. Espremido em duas crises tremendas, que quase levaram o País a uma guerra civil. No seu próprio governo, ele superou diversas crises, inclusive militares.

ISTOÉ – JK planejava voltar ao poder?
Maria Victoria Benevides

Ele estava absolutamente convencido de que voltaria à política, que, afinal de contas, era o mais importante em sua vida. Juscelino era aquilo que Aristóteles chamava de um animal político, em um excelente sentido da expressão.

ISTOÉ – Qual foi a principal contribuição de JK para o Brasil?
Maria Victoria Benevides

A arrancada do desenvolvimento, a industrialização através da substituição de importações, com entrada de capital estrangeiro. Capital de investimento e não capital especulativo, como nós tivemos depois, que, infelizmente, é a marca deste governo tucano. O sonho de Juscelino motivou a criação de Brasília, numa perspectiva de integração nacional. Tudo num contexto democrático, com os partidos funcionando, a imprensa livre. E ele foi extremamente criticado.

ISTOÉ – Ele era chamado inclusive de “presidente voador”, por causa de suas constantes viagens pelo País …
Maria Victoria Benevides

Presidente voador não era tão ruim. O ruim era falar de corrupção. Mas, comparado com o que nós tivemos depois, foram respingos. O famoso mar de lama que levou Getúlio Vargas ao suicídio foi um respingo se comparado com o lamaçal todo que tivemos depois, inclusive no atual governo.

ISTOÉ – Falando em atual governo, o presidente Fernando Henrique já se apresentou como herdeiro político de JK. O que existe de comum entre o projeto dos dois?
Maria Victoria Benevides

Eu acho um desaforo ele, Fernando Henrique, e seus amigos e bajuladores quererem associar a figura de Juscelino à do atual governo. Claro que, quando a gente pensa na galeria dos antigos presidentes, é o que todo mundo escolheria. Alguém vai querer se comparar com o João Figueiredo? Ou mesmo com o Jango, que tinha verdadeira vocação para uma mudança social, mas não deu certo? Com os generais-presidentes do regime militar? Com Collor? Ou mesmo com o breve interregno do Itamar, que não conseguiu entusiasmar? Ou ainda com Sarney, que saiu escorraçado pelo povo, embora tenha feito um governo que eu considero melhor do que o atual? Então, não vejo como comparar Juscelino e Fernando Henrique a não ser pelo fato de que ambos são pessoas afáveis, simpáticas, sedutoras. Ponto. Mais nada.

ISTOÉ – JK tinha um plano de metas…
Maria Victoria Benevides

Juscelino investiu profundamente numa proposta de metas, de planejamento, de desenvolvimento da indústria nacional. E Fernando Henrique fez justamente o contrário. Ele prometeu uma mão espalmada com cinco dedinhos e termina o governo cotó. E ele teve oito anos, o dobro dos outros presidentes. Não conseguiu desenvolver nenhum dos cinco pontos que prometeu. Pelo contrário, levou a indústria nacional à ruína. A desnacionalização da indústria é o pior legado do governo Fernando Henrique, junto com o brutal desemprego. Volto a insistir que a marca do governo Juscelino foi o projeto de industrialização do País, junto com democracia.

ISTOÉ – No período militar também houve desenvolvimento…
Maria Victoria Benevides

É verdade que o governo militar também teve um projeto de desenvolvimento. É uma verdade histórica. Mas isso foi feito através de uma ditadura brutal. Juscelino fez o mesmo com democracia. Não tivemos presos políticos no período – os poucos, como os militares que se rebelaram, foram logo anistiados. Mas o principal, o que faz uma nação, é que Juscelino fomentou o otimismo no povo. Ele levantou a auto-estima do brasileiro. Esse sentimento é importantíssimo para a construção de uma nação. Sem auto-estima nós podemos ter um Estado, podemos ter um território, podemos ter uma Constituição, mas não teremos uma nação.

ISTOÉ – Como a sra. mesmo comentou, JK também era conhecido por ser um gentleman. E com os adversários, ele era duro?
Maria Victoria Benevides

Juscelino seria uma espécie de homem cordial, no melhor sentido da palavra, no sentido que tinha seus ataques de raiva, como toda pessoa sob pressões tremendas. Imagine o que foi fazer uma capital futurista no meio do Planalto Central, onde não existia nada. Ele sofreu muitas pressões, tinha muitos inimigos, assumiu o governo em estado de sítio. Mas era extremamente habilidoso. Tinha o chamado talento das autoridades. Era um grande conciliador. E é bom que fique claro o seguinte: eu sou uma pessoa de esquerda, tenho princípios socialistas. Então, não me identifico politicamente com Juscelino, que era uma pessoa, no máximo, de centro.

ISTOÉ – Se ele estivesse vivo, vocês estariam em pólos opostos?
Maria Victoria Benevides

Estaríamos em pólos opostos, mas tenho certeza de que teria com ele um entendimento muito melhor do que com muita gente que veio até da esquerda, e hoje está aboletada no poder.
 

ISTOÉ – Muitos analistas creditam a JK a responsabilidade pela inflação. É uma crítica justa?
Maria Victoria Benevides

Evidentemente houve inflação no período de Juscelino. Porque é impossível tocar um programa de desenvolvimento acelerado sem inflação. Mas esta inflação é ridícula comparada com o que nós tivemos depois, por exemplo, sob a batuta de Mailson da Nóbrega, que hoje continua ganhando muito dinheiro como consultor, e foi uma catástrofe com relação à inflação.
 

ISTOÉ – Mas não se pode dizer que a meta dos “50 anos em 5” era demagógica?
Maria Victoria Benevides

É força de expressão. É impossível fazer 50 anos em cinco. Mas foi um salto formidável. Um salto que tinha começado com Getúlio Vargas, ou seja, com o abandono da idéia de que a vocação do Brasil era de ser um país agrícola. O que se poderia criticar é o fato de que se criou uma cultura inflacionária. Passou a se considerar normal viver com inflação. Mas foi uma opção política. Ao contrário de Fernando Henrique, Juscelino chegou a ponto de romper com o FMI.
 

ISTOÉ – Como se deu o rompimento?
Maria Victoria Benevides

O FMI queria impor condições que estrangulariam o programa de metas e, principalmente, a construção de Brasília. Juscelino não quis saber. Ele fez uma opção. Essa é a tarefa de um governante. Ele preferiu romper. E esse rompimento com o FMI foi emblemático. Juscelino teve um apoio popular muito grande, até mesmo do Partido Comunista, que estava na ilegalidade, mas vivia numa semi-legalidade, graças à tolerância política de Juscelino. No dia do rompimento com o FMI, Luís Carlos Prestes apareceu no palanque cumprimentando o presidente.
 

ISTOÉ – Como o Brasil era visto no Exterior naquela época?
Maria Victoria Benevides

O Brasil passou a ser admirado pelo desenvolvimento acelerado. Não havia essa coisa de risco Brasil. Mas é claro que, aos Estados Unidos, não interessava que o País tivesse uma indústria cada vez mais independente. A pressão americana sempre foi muito pesada. Por isso, os capitais da indústria automobilística e da industrialização não foram predominantemente americanos. Foram alemães, japoneses, italianos, holandeses.

ISTOÉ – JK não era diferente dos políticos tradicionais, no sentido de fazer conchavos e políticas do favor. Por que o governo dele é visto como se fosse diferente do convencional?
Maria Victoria Benevides

Porque esta não era a sua única característica. E, na época de Juscelino, a política era restrita a uma elite. Era mesmo uma política de conciliação, de acordos, de conchavos. Mas Juscelino valorizava muito a lealdade pessoal nos acordos. Ele era um político tradicional, à moda antiga, e com suas qualidades pessoais.

ISTOÉ – Entre as características pessoais dele estava o fato de ser um homem extrovertido, que gostava de festas, de belas mulheres, de dançar. Isso ajudou a imprimir um clima otimista ao País?
Maria Victoria Benevides

Isso era visto com simpatia por uns e com antipatia por outros. Porque a UDN (partido conservador, adversário do de JK), de maus bofes, que era puritana, aproveitava para criticar o “pé-de-valsa”, o “voador”, etc. Se com isso a economia estivesse ruim, aí sim poderiam ficar com raiva. Mas no governo Juscelino havia uma perspectiva de vida. O pecado mortal, imperdoável, de um governante é tirar a esperança do povo. O que foi pior no governo Collor? Com a história do confisco, as pessoas tiveram de renunciar à compra da casa própria, a uma cirurgia, a uma viagem, a uma série de coisas. Ele destruiu os planos de vida das famílias. Mas Juscelino, por piores que tenham sido os seus defeitos, criou uma euforia de se acreditar no Brasil. Naquela época, ninguém queria sair do País.

ISTOÉ – A sra. lembrou há pouco que JK cumpria com a palavra empenhada. Isso explica seu voto no marechal Castello Branco, na eleição indireta do Congresso, em 1964? Ele acreditava que os militares entregariam o poder?
Maria Victoria Benevides

Sim. Todo mundo que conheceu Castello Branco sabe que ele era um homem honrado e cumpriria a palavra empenhada a Juscelino. Mas a linha-dura derrotou o grupo de Castello Branco. E a prova de que este grupo perdeu é que Juscelino foi muito perseguido pelo regime militar. Ele passou por um período terrível, de depressão.

ISTOÉ – Como ele estava quando a sra. o encontrou pela última vez?
Maria Victoria Benevides

Ele estava eufórico. Foi sua última aparição pública, no lançamento do meu livro, na casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Por causa do Juscelino, virou um acontecimento político, em julho de 1976, em plena ditadura, ainda durante o AI-5. O livro, que discutia o desenvolvimento do País com democracia, era uma proposta ousada e provocante na época. Eu mesma não me dava muito conta disso. Era apenas minha dissertação de mestrado.

ISTOÉ – Existe alguma evidência de que JK possa ter sido assassinado, que não tenha sofrido um acidente?
Maria Victoria Benevides

Na época, os amigos mais próximos dele me garantiram que foi um acidente. Mas, como às vezes os verdadeiros depoimentos demoram muito para aparecer, eu não diria que tenho certeza. Acho pouco provável. Mas descartar inteiramente eu não descarto.

ISTOÉ – JK teve um final de vida muito difícil…
Maria Victoria Benevides

É verdade, mas, de certa maneira, não existe nenhum outro governante brasileiro que tenha deixado a marca que ele deixou. Ele não é superado por ninguém. Mesmo Getúlio, que eu considero o grande estadista da República, tem a mancha da ditadura do Estado Novo. Agora, Juscelino não merecia o final que teve, porque ele era, como eu disse antes, um animal político por excelência. Ele merecia ter participado de tudo, da abertura. Até penso que, se ele tivesse vivido, o candidato a presidente teria sido Juscelino, e não Tancredo Neves.