Os burocratas do Fundo Monetário Internacional (FMI) estão acostumados a enfrentar manifestações de protesto. Nem ligam. Apertam o passo e, quase correndo, entram nos gabinetes sem olhar para trás. Acusados de conduzir o sistema financeiro do mundo de acordo com os interesses de Wall Street, eles pareciam impermeáveis ao recorrente apedrejamento dos movimentos antiglobalização. Mas eis que a fleuma desses burocratas foi para o brejo ao tropeçar num dos mais brilhantes economistas da atualidade: Joseph Stiglitz, americano da cidade de Gary, no Estado de Indiana, 59 anos, pai de quatro filhos, barba grisalha, sorriso espontâneo, língua afiada, Prêmio Nobel de Economia na mão e uma cabeça reconhecidamente privilegiada. Stiglitz passou sete anos em Washington como chefe do Conselho de Consultores Econômicos de Bill Clinton e como economista-chefe e vice-presidente sênior do Banco Mundial. Viu tudo de perto. Conheceu os bastidores e renunciou a postos teoricamente importantes porque suas críticas não foram ouvidas. Tornou-se um tormento para o FMI, o intelectual preferido dos que combatem a globalização selvagem, um aliado dos países em desenvolvimento, um guru. A principal estrela da Universidade de Colúmbia passou pelo Brasil na última semana para promover seu primeiro livro lançado no País, A globalização e seus malefícios/A promessa não-cumprida de benefícios globais, e fazer palestras, uma na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e outra na comemoração dos 50 anos do BNDES. Ele critica a forma como a globalização evoluiu – expondo vários países à crescente pobreza –, e não a sua essência. “Na minha opinião, o sofrimento sentido pelos países em desenvolvimento no processo de globalização e desenvolvimento, na maneira como tem sido conduzido pelo FMI e pelas organizações internacionas, é muito maior do que o necessário”, escreveu Stiglitz no prefácio do novo livro. “O desumano ataque terrorista ocorrido em 11 de setembro de 2001 em Nova York serviu para abrir os olhos de maneira veemente para o fato de que todos compartilhamos um mesmo planeta. Somos uma comunidade global e, como todas as comunidades, temos que seguir algumas regras para que possamos viver juntos. Essas regras devem ser imparciais e justas – e devem ser vistas como tal –, devem dar a devida atenção tanto aos pobres quanto aos poderosos, além de refletir um sentido básico de decência e justiça social. No mundo de hoje, tais regras devem ser criadas por meio de processos democráticos; regras seguidas por órgãos e autoridades do governo precisam garantir que serão criteriosas e atenderão aos desejos e às necessidades de todos aqueles afetados por políticas e decisões tomadas em lugares distantes.” O economista derruba com inteligência a crítica de seus poderosos inimigos de que é “uma torre de marfim acadêmica”. Pura dor-de-cotovelo. Até o especulador George Soros aplaude as farpas que o economista lança nos burocratas de Washington. No fundo, todo mundo gosta, menos, é claro, os próprios burocratas.

Stiglitz previa ficar no Rio três dias. É uma cidade de que ele gosta e onde já esteve quatro ou cinco vezes. Veio sozinho, ficou hospedado no Caesar Park, hotel cinco estrelas de Ipanema, e recebeu uma enxurrada de convites para almoçar e jantar. Um deles seria para tomar um café da manhã com Armínio Fraga, o presidente do Banco Central. Stiglitz também conhece – e adora – a Bahia, que já visitou duas vezes, uma delas em férias. Foi no Rio, depois de uma palestra na UFRJ, que ele deu a seguinte entrevista a ISTOÉ:

ISTOÉ – Em seu último livro, o sr. faz uma crítica feroz à globalização. Ela é intrinsecamente ruim?
Stiglitz –
Não. Há muita coisa boa acontecendo por causa da globalização. Ela tem o poder de fazer um enorme bem. Para o Leste Asiático, que aderiu à globalização dentro de seu próprio ritmo, ela tem representado um grande benefício. Os asiáticos cresceram de uma maneira incrível e ainda reduziram a pobreza. Só que em muitas partes do mundo, sobretudo para aqueles que abriram seus mercados sem instituições financeiramente fortes, a globalização não trouxe benefícios comparáveis. A distância cada vez maior entre os que têm e os que não têm vem deixando um número grande de pessoas do Terceiro Mundo num estado lamentável de miséria, sobrevivendo com menos de um dólar por dia. Apesar de todas as promessas, o número dos que vivem na miséria aumentou, enquanto a renda total do mundo elevou-se, em média, 2,5% ao ano.

ISTOÉ – Se as promessas não foram cumpridas, o que deu errado?
Stiglitz –
O FMI não está particularmente interessado em ouvir o que pensam seus “países clientes”. A postura que costuma adotar com os países em desenvolvimento parece mais a de um administrador colonial. As privatizações, por exemplo, deveriam fazer parte de um programa mais abrangente, que criasse empregos em lugar de apenas acabar com eles. Só que em vários países o FMI tem piorado as coisas. Seus programas de austeridade muitas vezes envolvem taxas de juros tão altas que a criação de novos empregos fica impossibilitada. Os maiores erros do FMI, além da insensibilidade social, foram forçar a liberalização antes que redes de segurança fossem instaladas e forçar políticas que conduzissem à destruição de empregos antes que novas frentes de trabalho fossem abertas. Na América Latina, o crescimento não foi acompanhado pela diminuição da desigualdade ou mesmo pela diminuição da miséria. Ao contrário. A miséria até mesmo aumentou, como mostram muitas favelas urbanas.

ISTOÉ – Sempre que a situação econômica aperta no Brasil, o FMI é apontado como uma tábua de salvação. Se o socorro não vier, é o fim. O sr. acredita ser possível sobreviver sem a ajuda do FMI?
Stiglitz –
Em países como Coréia, Indonésia, Tailândia, a ajuda não deu certo. Na Rússia, o acordo foi assinado em menos de três semanas. Muitos acreditam que o Brasil é um dos poucos exemplos em que o Fundo Monetário Internacional pode efetivamente ajudar. Além do mais, o FMI falhou no caso da Argentina e não poderia falhar de novo num curto espaço de tempo. O problema é que o FMI costuma mudar as condições que ele mesmo impôs. O que eles concordam num dia, mudam no dia seguinte. Mas não acho que o Brasil esteja à beira de um colapso. Aqui parece existir um equilíbrio consistente.

ISTOÉ – O Brasil passa por um momento de instabilidade econômica. Alguns acreditam que seja por causa da proximidade da Argentina; outros, devido ao processo eleitoral. E o sr., o que acha?
Stiglitz –
Os mercados são muito voláteis. Se o país deve muito dinheiro, acaba prisioneiro. Qualquer sinal que esteja em desacordo com as expectativas do capital, o país é castigado. É o caso do Brasil. Juntando todos os pedacinhos, não tem outra saída senão o castigo. É uma espécie de profecia auto-realizável. Depois de um tempo, não é mais possível prever exatamente qual é o real motivo.

ISTOÉ – O Brasil vem exercendo um controle monetário rígido. O sr. acha possível compatibilizar controle inflacionário e desenvolvimento econômico?
Stiglitz –
Se a inflação for excessivamente controlada de maneira que impeça qualquer tipo de gasto, isso sem dúvida acaba impedindo o crescimento. Então, muita austeridade acaba, sim, inviabilizando o crescimento econômico. Infelizmente, não estudo especificamente a questão do Brasil.

ISTOÉ – É possível tomar a decisão de dar as costas à globalização?
Stiglitz –
Não podemos retroceder. A globalização chegou para ficar. A questão é: como fazê-la dar certo? A mudança mais fundamental e necessária para fazer a globalização funcionar diz respeito ao seu gerenciamento. Isso exige do FMI, do Banco Mundial e de todas as instituições econômicas internacionais uma alteração nos direitos de voto. Não estou confiante de que as reformas chegarão logo, mas estou esperançoso. Se a globalização continuar a ser conduzida da maneira pela qual tem sido até aqui, ela não só fracassará em promover o desenvolvimento como continuará a criar pobreza e instabilidade.

ISTOÉ – A América Latina está em crise e os Estados Unidos estão abarrotados de escândalos, como os da Enron e WorldCom. O sr. acredita que estamos no caminho de uma crise financeira global?
Stiglitz –
O sistema capitalista está, sim, numa encruzilhada, da mesma maneira que esteve durante a Grande Depressão. Na década de 30, o capitalismo foi salvo por Keynes (o economista britânico John Maynard), que pensava em políticas para criar empregos e salvar os que sofriam com o colapso da economia global. Agora, milhões de pessoas no mundo estão esperando para ver se a globalização pode ser reformulada de forma que seus benefícios possam ser compartilhados de uma maneira mais ampla.

ISTOÉ – O FMI já cometeu muitos erros de avaliação. Não seria o caso de passar por um julgamento público internacional?
Stiglitz –
Acho que chegou a hora de “dar nota” ao desempenho das instituições econômicas internacionais e observar se alguns desses programas se saem bem ou mal no fomento do crescimento e na redução da pobreza. Afinal, muitas instituições têm escapado do tipo de responsabilidade direta que nós esperamos que as instituições públicas tenham nas democracias modernas.

ISTOÉ – O sr. concorda com a tese de que o FMI fracassou?
Stiglitz –
Acho que sim. Há muitos anos, a famosa frase do antigo presidente da General Motors e secretário de Defesa Charles E. Wilson – “O que é bom para a General Motors é bom para o país” – tornou-se símbolo de uma visão particular do capitalismo americano. Em geral, o FMI parece ter uma visão similar, ou seja, “o que a comunidade financeira vê como bom para a economia global é bom para a economia global e deve ser feito”. Em alguns casos, tal máxima é verdade, mas em muitos outros não é.