Convocados para ouvir o depoimento de uma testemunha-chave na Justiça Federal do Rio de Janeiro, os quatro fiscais de renda e três auditores da Receita Federal acusados de criar o propinoduto que desviou para um banco suíço cerca de US$ 34 milhões – um quarto auditor não compareceu – já sentiam que a tarde da terça-feira 15 estava carregada de nuvens pesadas. Não imaginavam, no entanto, a extensão da tempestade que desabaria sobre suas cabeças. Depois de tomar conhecimento do depoimento prestado à Polícia Federal por Valéria Gonçalves dos Santos, ex-mulher de Carlos Eduardo Pereira Ramos – um dos fiscais presentes –, e de ouvir suas novas declarações, procuradores do Ministério Público Federal pediram a prisão preventiva dos acusados. O pedido foi aceito pelo juiz da 3ª Vara Federal, Lafredo Lisboa, e os sete saíram do auditório presos, sob a guarda de agentes da PF, com destino ao 23º Batalhão da PM, no Leblon (zona sul). O depoimento que motivou a prisão foi devastador e confirmou as revelações feitas por ISTOÉ na edição 1737, de janeiro desde ano. Oculta por uma cortina e com voz firme, Valéria contou que foi com Carlos Eduardo e Rômulo Gonçalves à Suíça em outubro de 1997 tratar da aplicação do dinheiro; que seu ex-marido chegou a receber
US$ 1,5 milhão de propina apenas do laboratório Smithkline Beecham (atualmente Gaxo Smithkline) e que o encarregado de enviar os dólares à Suíça era Alexandre Martins, um dos empresários do jogador Ronaldo, da Seleção Brasileira e do Real Madrid. Decretada a prisão, o auditor Amaury Franklin Nogueira Filho chorou e o fiscal Rodrigo Silveirinha ligou para a mulher: “As notícias não são nada boas. Prepare umas roupas para mim.”

Além de Carlos Eduardo, Amaury Franklin, Rômulo e Silveirinha, foram presos Axel Ripoll, Sérgio de Lucena e Lúcio Picanço. O auditor Hélio Lucena se apresentou à PF no dia seguinte e se juntou aos demais no batalhão da PM. As revelações de Valéria haviam sido feitas aos delegados da PF Simone Azuaga e David Salem na noite da terça-feira 8. O depoimento foi na casa da testemunha, em Campinas. Na primeira tentativa, Valéria se recusou a falar. No dia seguinte, os delegados voltaram com um mandado de busca e apreensão. Vasculharam a casa e encontraram documentos e provas da passagem pela Suíça. Diante do achado e da confirmação de que seu nome constava como procuradora da conta número 182.132ZU do Discount Bank, em Zurique, ela resolveu falar.

Valéria contou que, a partir do final de 1996, começou a notar que Carlos Eduardo guardava altas quantias nas gavetas e armários de casa, a maior parte em dólar. Quando perguntava sobre a origem do dinheiro, o fiscal desconversava, ria e pedia que ela não se metesse. Sobre o destino do dinheiro, a testemunha afirmou no depoimento: “Certa vez deixou escapar que entregava ao motoboy, funcionário de Alexandre Martins.” Valéria afirmou que era Martins quem enviava o dinheiro para a conta na Suíça. Carlos Eduardo fora apresentado a ele pelo auditor Amaury Franklin. Alexandre Martins e Reinaldo Pitta são sócios da Gortin Promoções Ltda., que faz operações de câmbio e está sendo investigada pela PF por usar as contas de funcionários para movimentar grandes quantias.

Sobre a conta na Suíça, Valéria confirmou que foi aberta em julho de 97 em um escritório na avenida Nilo Peçanha, centro do Rio. O endereço é da Coplac, representação do Discount Bank no Brasil. Ela assinou um formulário de cadastro em inglês a mando de Carlos Eduardo. “Os fiscais federais foram introduzidos no grupo dos fiscais estaduais por Amaury Franklin”, disse Valéria. Contou ainda que as famílias de Rômulo, Silveirinha, Amaury e Carlos Eduardo se reuniam em churrascos e datas festivas. Amaury Franklin é padrinho de uma das filhas de Carlos Eduardo. Valéria e o ex-marido viajaram à Europa em outubro de 97 com Rômulo Gonçalves e a mulher dele, Andréa Gonçalves. Foram à Itália, Grécia, França e, finalmente, Suíça. Na agência do Discount Bank, em Zurique, Valéria serviu de intérprete na conversa em que Carlos Eduardo e Rômulo acertaram com o gerente a aplicação do dinheiro em fundo de ações. Na ocasião, Rômulo sacou US$ 40 mil. Os delegados da PF apreenderam notas fiscais da loja suíça Bucherer, da cidade de Lucerne, relativas à compra de dois relógios por Carlos Eduardo, tíquetes do hotel em Zurique e entradas para o teleférico de uma estação de esqui.

Valéria teve informações sobre a origem do dinheiro depositado na Suíça. “Certa vez, notei que Rômulo e Carlos Eduardo estavam muito nervosos. Então, perguntei a Andréa – mulher de Rômulo – o que estava acontecendo. Ela me disse que eles estavam fazendo um acerto de US$ 1,5 milhão para cada um no laboratório Smithkline. Por isso, a agitação.” A testemunha diz que ficou estarrecida com os valores, mas resolveu não denunciar Carlos Eduardo por temer seu temperamento agressivo. “Ele me agrediu duas vezes”, afirmou. Numa delas, em 1999, Valéria registrou a agressão na 16ª Delegacia Policial, da Barra da Tijuca. Ao fim do depoimento, a testemunha disse que se sente ameaçada. A afirmação motivou um comentário irônico do juiz Lisboa. “A partir de agora, os requeridos devem ser os maiores interessados na segurança dessa senhora. Se acontecer com ela algum incidente, se ela tropeçar na rua, vou considerá-los suspeitos”, advertiu. “Estou tranquila, a PF me deu toda a cobertura. Não acho que minha vida vá mudar muito a partir de agora. A vida deles é que mudou”, afirmou Valéria a ISTOÉ depois do depoimento. Após pedir a prisão preventiva, o procurador da República Gino Liccione deve, em 30 dias, denunciar os acusados por lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, crime contra a ordem financeira e concussão. Os advogados dos oito fiscais e auditores que tiveram prisão decretada anunciaram que vão pedir habeas-corpus para seus clientes.

As revelações feitas por Valéria foram recebidas com alívio pelos deputados governistas que integram a CPI do Propinoduto na Assembléia Legislativa do Rio. “Não resta mais dúvidas de que as ações criminosas vinham se desenvolvendo há muito tempo. Antes de 1997, período em que Anthony Garotinho não tinha assumido o governo do Estado”, comentou a deputada estadual Graça Matos (PSB). O presidente da CPI, deputado Paulo Melo (PMDB), disse que o depoimento confirma a informação levantada pelos parlamentares de que Rômulo fez fiscalização em 29 de abril de 1997 no laboratório Smithkline. “Ficou claro o intercâmbio permanente entre fiscais e auditores. Eles não se tornaram amigos porque eram fiscais, mas o contrário.”

 A primeira vez

 

A prisão dos fiscais e auditores logo depois do depoimento de Valéria dos Santos, em pleno auditório da Justiça Federal no Rio de Janeiro, lembrou a atitude tomada em 1993 pela juíza Denise Frossard. Na ocasião, ela convocou os 14 chefões do jogo do bicho carioca para uma audiência na 10ª Vara Criminal do Rio e, durante a sessão, deu voz de prisão a todos. O gesto teve um grande significado simbólico, já que por muito tempo os bicheiros foram vistos pela comunidade como benfeitores, por suas ações de caridade e pelo patrocínio das escolas de samba. Costumavam circular nas altas rodas sociais e políticas. Favorecidos por indultos e por outros dispositivos legais, todos foram libertados algum tempo depois. Mas a sentença da juíza, hoje deputada federal pelo PSDB, marcou no inconsciente coletivo que os bicheiros formaram quadrilhas armadas com o objetivo de praticar homicídios.

Novos peixes na rede

A investigação das autoridades da Suíça sobre brasileiros que mantêm contas bancárias com saldos incompatíveis com seus ganhos não se limita aos oito fiscais e auditores inicialmente citados no documento do Ministério Público daquele país. A Inspetoria de Lavagem de Dinheiro da Polícia Federal suíça investiga mais oito pessoas. Entre elas estão os fiscais da Secretaria de Fazenda do Rio Albertino da Silva, Genilson Bonfim Machado, Renato Marcelo Elias José, Lilian Nigri – que já foi superintendente de Fiscalização – e o auditor da Receita Benjamin Grynapel. Esses nomes e os outros oito que já vinham sendo investigados desde o ano passado pela Polícia Federal brasileira passarão a ser alvo do trabalho dos delegados federais David
Salem e Simone Azuaga.

O nome mais conhecido da nova lista é o de Lilian Nigri, que ocupou cargo de importância na hierarquia da Secretaria de Fazenda – ela era uma das mais poderosas funcionárias do órgão. Ela depôs na Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Rio que investiga o propinoduto, no dia 13 de março, para dar informações sobre a atuação dos primeiros colegas citados no documento do Ministério Público suíço. “Minha relação com Silveirinha era apenas profissional, nem sei onde ele mora”, afirmou então. Mas a relação dos dois não parecia ser tão distante assim, já que Lilian foi sondada por Silveirinha para trabalhar como sua chefe de gabinete na Companhia de Desenvolvimento Industrial (Codin), órgão para o qual o fiscal chegou a ser nomeado antes do escândalo vir à tona. Na CPI, ela disse que não ouviu falar de fatos na Inspetoria de Grande Porte que justificassem o suposto enriquecimento ilícito dos fiscais.

O fiscal de primeira categoria Renato Elias afirmou estar surpreso com a investigação da Polícia Federal. “Não tenho conta nenhuma na Suíça. Em 1999, trabalhava em Niterói e só fui transferido para a Barra da Tijuca no início do ano passado. Nunca trabalhei com Silveirinha”, disse ele a ISTOÉ, na noite de quarta-feira 16. “Atual-mente, só por ser fiscal a pessoa já é considerada suspeita”, reclamou. O superintendente da Polícia Federal do Rio, Marcelo Itagiba, disse que a PF acredita que existam outras contas ilegais no Exterior e informou que os novos nomes vão ser investigados. “Eles podem fazer parte do mesmo esquema.” Nesta quarta-feira, a Polícia Federal fez um balanço das investigações. Os delegados David Salem e Simone Azuaga têm 30 dias para concluir o inquérito e enviá-lo ao Ministério Público Federal.

Francisco Alves Filho