Terrace Park Cemetery, área rural da cidade de El Centro, Califórnia, Estados Unidos.
Um descampado de terra dá abrigo a inúmeras covas rasas de pessoas desconhecidas da população local. É neste pedaço de chão que estão enterrados os corpos e os sonhos de cerca de 180 brasileiros, de um total de 500 pessoas sepultadas nos últimos cinco anos . Gente que buscava na América uma nova vida, mas encontrou a morte. São homens, mulheres e crianças que tiveram suas existências interrompidas pela sede, pela fome ou foram atacados por bichos selvagens do deserto. Outros tombaram brutalmente assassinados por traficantes de homens – aqueles que trazem gente para os EUA e são conhecidos como “coiotes”. Os mortos, se batizados no Brasil, neste canto de terra são reconhecidos apenas por números. Ninguém sabe os nomes, endereços ou quaisquer outras referências sobre aquelas pessoas.
Foram todas encontradas mortas pelo deserto, sem documentos. O recurso adotado para se identificar a provável nacionalidade desses infelizes é peculiar: observa-se o aspecto da fisionomia de cada um ou a etiqueta das roupas que vestiam os corpos quando foram encontrados.

A esperança de uma vida melhor imaginada por esses imigrantes mortos é lembrada apenas por uma singela homenagem, escrita em espanhol, nas simples cruzes de madeiras e tijolos que demarcam as sepulturas: “No olvidado”, indicação de que aquelas pessoas não foram esquecidas. Essa foi a fórmula que a americana Michele Bryan e o grupo de pessoas da Messengers of Love Organization (Organização Mensageiros do Amor) – uma das inúmeras entidades que defendem os direitos humanos dos imigrantes nos Estados Unidos – encontraram para homenageá-los. Se antes os mortos estavam condenados a engrossar o número de indigentes enterrados em valas comuns num país estranho, agora ganharam, naquele espaço, uma morada post mortem um pouco mais digna.

Dignidade, aliás, é moeda rara na jornada enfrentada pelos imigrantes ilegais que tentam fazer a América. Diariamente, mulheres são estupradas, milhares de pessoas são presas e torturadas e outras morrem estupidamente nos três mil quilômetros de fronteira que separam o México dos Estados Unidos. Como pano de fundo, a figura sinistra do “coiote”, o agenciador de sonhos que muitas vezes participa do martírio dos clandestinos. “A violência a que esses imigrantes são submetidos na travessia do deserto é uma realidade que nenhum atravessador ou agente de turismo, como os ‘coiotes’ se apresentam no Brasil, tem coragem de contar a seus clientes”, diz a missionária Michele. “Se assim o fizessem, poucos seriam os corajosos que enfrentariam esse desafio”, desabafa.

A paisagem desértica que se estende do oeste, no Estado da Califórnia,
até o sudeste, no Texas, tem sido palco, todos os anos, de um fluxo migratório
de três milhões de pessoas, 99% dos quais mexicanos. Neste oceano, o
número de brasileiros vivendo clandestinamente nos EUA já chega a um milhão. Esta porta de entrada ilegal deve ser dificultada, pelo menos no que depender do governo do presidente George W. Bush. No que diz respeito ao Brasil, o Departamento de Estado está pressionando o México para que volte a exigir visto de entrada de brasileiros, medida abolida no ano 2000 para incrementar o turismo. Segundo uma fonte do Itamaraty, a pressão de Washington está sendo muito grande para que o acordo seja revisto.

Temeridade – De acordo com a Border Patrol (Patrulha de Fronteira), a “migra”, como é conhecida, apenas através dos desertos do Arizona e da Califórnia, cinco mil pessoas tentam atravessar para os EUA todos os dias usando a fronteira do México. A travessia ilegal é feita de várias formas: a nado, pelo rio Grande, saltando por muros de ferros de até oito metros de altura, ou sob cercas que dividem o solo dos dois países. Formando grupos, os imigrantes se embrenham por essa região terrivelmente inóspita e caminham por três dias ou mais, às vezes sob uma temperatura de 45º C, à espera do momento ideal para se livrar dos radares, sensores, carros de patrulha e de aviões, até atingirem a terra prometida. “São caminhadas que podem chegar a 100 quilômetros, em que os indocumentados chegam a esperar até um dia escondidos no meio do nada”, calcula Michele. “Esta é a parte mais perigosa da fronteira”, afirma Andy Adame, chefe de informação da Border Patrol do Arizona, 39 anos e há 16 trabalhando na fronteira do México com o Arizona e a Califórnia. “Um número incalculável de pessoas perdeu suas vidas por aqui”, diz.

Alguns escapam da morte apenas para serem apanhados pelo longo braço da lei. “Com um ferimento na perna esquerda e depois de ter sofrido com o frio e a sede no deserto durante um dia e uma noite, fui apanhado pela polícia”, conta o mexicano Aldo Juarez García, 23 anos, que acabou deportado de volta para seu país. Apesar de tudo, ele diz que não desiste. “Assim que melhorar vou tentar novamente. Aqui no México não tem emprego”, diz o rapaz, que está na sua terceira tentativa de entrar nos EUA. García faz parte daquela minoria que é detida na fronteira: um para cada quatro clandestinos que consegue entrar. Mesmo estes não estão livres de infortúrnios. “Na hora em que saltei o muro, caí dentro de uma vala do outro lado, me machuquei, mas mesmo assim consegui rastejar até chegar a um lugar onde aguardei por uma noite. Depois, mais um dia sofrido de caminhada, mas consegui atravessar”, conta W. S., 40 anos, mineiro de Poços de Caldas.

Outra mineira que viveu graves percalços foi a ex-estudante de jornalismo Aparecida dos Santos, 24 anos. Sua travessia, pela qual ela desembolsou US$ 10 mil, foi contratada em Belo Horizonte. A aventura começou na cidade de Matamoros, Estado mexicano de Tamaulipas. O esquema da traficante que envolveu Aparecida incluía a participação de um ex-cônsul do México no Brasil. “Fomos à casa dele. Ele nos deu um cartão de visitas. E, depois, nos levou à fronteira. Mandaram que me vestisse com roupa fina, pois garantiram que a travessia seria feita de navio”, lembra. Nada disso aconteceu. Depois de ficar um dia inteiro sem comer nada, à noite, Aparecida foi colocada em um andar de um hotel caindo aos pedaços, com mais de 100 pessoas, entre crianças e velhos, muitos brasileiros. Só então caiu a ficha da ex-estudante. “Na hora de partir, só deu tempo de rasgar minha calça de seda e trocar a sandália de salto alto por um tênis”, recorda. Os coiotes mexicanos cortaram a cerca com um alicate e passamos rastejando para atingir o rio. Em vez do barco prometido, ela recebeu uma bóia, que era uma câmara de pneu de carro e um saco plástico para proteger roupas do corpo e documentos. A travessia seria feita a nado.

“Depois de ficarmos escondidos, deitados no chão durante 12 horas, eles nos revelaram o resto do plano: um caminhão frigorífico iria nos aguardar do lado do rio onde se daria o embarque rumo a Nova York.” Um caminhão com fundo falso, do mesmo tipo do que foi encontrado há quatro anos no Arizona com 30 clandestinos mortos por asfixia. Fraca e desidratada, Aparecida acabou desmaiando. “Um senhor brasileiro me socorreu. Disse que tinha uma filha com a minha idade e não conseguiria me abandonar naquele lugar. Arrastou-me, mas infelizmente fomos apanhados pela polícia”, conta. Ela ficou dois meses presa no Texas, e foi libertada depois de pagar uma fiança de US$ 7.500. Teve sorte – hoje, os brasileiros que são detidos tentando entrar clandestinamente nos EUA arcam com uma fiança média de US$ 30 mil, contra cerca de US$ 2 mil de qualquer centro-americano.

O horror – “A maioria das pessoas desconhece como é difícil sobreviver no deserto”, explica Amado Marcelo Coelho, da Cruz Vermelha Mexicana, da unidade móvel baseada na cidade de Altar, México. “A temperatura faz com que tudo fique ainda pior entre os meses de abril e agosto, época do verão”, diz o policial Andy Adame. É o pior dos mundos: dias terrivelmente quentes e noites horrivelmente frias. “Vi mães dolorosamente agarradas a seus filhos, ambos mortos pelo frio”, conta Adame. O paramédico Coelho afirma que um dos maiores problemas dos que se aventuram à travessia é a desidratação. “É comum encontrarmos pessoas que perdem o raciocínio por completo por causa da sede. Elas escavam a terra com as mãos à procura de água ou tentam esfriar o cérebro enfiando a cabeça na terra”, diz Adame. “Quando identificamos um grupo fazendo movimentos em círculos, é certo que ele está perto da morte”, garante.

“As condições climáticas da fronteira têm transformado essa extensão de terra no maior cemitério do mundo”, define M.A., 45 anos, mineiro de Ipatinga. Ele viveu isso na própria pele. Em 18 anos, já atravessou oito vezes pelo deserto. “Como eu conhecia os esquemas, trazia uma dúzia de familiares e amigos toda vez que voltava do Brasil”, conta. “Fiquei tão experiente que tentei ser coiote”, confessa. A experiência foi um desastre: na hora da travessia, um dos brasileiros foi picado por uma cobra. “Em pouco tempo, o rapaz começou a espumar pela boca. Não durou uma hora”, conta. “A angústia era terrível. Depois de dois dias no deserto, o grupo tomou a difícil decisão de abandonar o corpo lá”, recorda. “Foi o pior momento da minha vida. Nem consegui receber o dinheiro dos outros. Era impossível receber alguma coisa de quem eu tinha feito sofrer tanto”, lamenta.

“Encontrar ossadas no meio do deserto é corriqueiro”, diz M.A. O governo
calcula que milhares de pessoas já morreram na desesperada tentativa de burlar as fronteiras. E só fazem parte das estatísticas oficiais os corpos encontrados inteiros. “A maioria dos imigrantes mortos espalhados pelo deserto tem seus corpos dilacerados. É crânio para um lado, mãos para outro, pernas e por aí vai”, garante o patrulheiro-chefe. “A dura realidade é que os bichos se alimentam desses corpos”, conta.

O silêncio dos inocentes – Para agravar o drama, um número cada vez maior de crianças está sendo resgatada no deserto. “Talvez isso esteja acontecendo por causa de um boato surgido no Brasil segundo o qual mães, com seus filhos, seriam vistas com maior complacência e tolerância pela patrulha da fronteira”, diz M.A.. Essa falsa percepção tem provocado situações surreais, com crianças presas e até aguardado julgamento em casas de correção infantil nos EUA. O único crime que esses meninos e meninas cometeram foi o de ter sido levados para viver com seus pais na América. Um bom exemplo dessa loucura aconteceu com o menino A.B.M., de seis anos, também mineiro. No final do ano passado, ele amargou 17 dias numa prisão na cidade de Phoenix, Arizona, sem a companhia dos pais ou de qualquer outra pessoa conhecida. Na “Febem” americana – bem mais civilizada que as brasileiras, é verdade –, no meio de tantas outras crianças vítimas dessa ilusão migratória, o pequeno só ouvia a língua pátria na voz de Ana Paula, uma conterrânea de apenas 12 anos, que está detida até hoje. Os pais de A.B.M. acreditavam que atravessariam a fronteira por um novo e infalível esquema. O plano foi traçado, pago e definido no Brasil por coiotes de Inhapim, interior de Minas Gerais. Eles atravessariam por Tijuana, México, a bordo de carros dirigidos por cidadãos americanos.

Em tese, o esquema não tinha falha (o repórter de ISTOÉ passou duas vezes pela fronteira a bordo de um carro americano sem ser revistado). Os pais do garoto seguiram num carro que não foi parado. Num segundo carro, mais tarde, viria o pequeno com uma mulher americana e seus filhos. O menino brasileiro tinha a pele tão branquinha quanto a do motorista e seus dois filhos. Combinaram que ele deveria se fingir de surdo-mudo. Parados na barreira, os policiais acordaram os meninos que dormiam no banco traseiro do veículo. Quando o policial se dirigiu ao pequeno A.B.M., ouviu um resmungo em português. Começaram a interrogar a criança, que resistia a tudo e permanecia calada. A insistência dos policiais e a pressão surtiram efeito. Diante do portunhol dos homens da lei, o menino acabou desabafando: “Eu não sou americano, eu sou brasileiro.” Essa foi a senha que os policiais precisavam para deter a criança de seis anos. Seus pais só vieram a saber que o plano tinha falhado no final do dia. A.B.M. foi libertado da prisão mediante fiança e graças aos esforços da missionária Michele Bryan. A criança vive hoje com seus pais numa cidade do Estado de Connecticut.
   

Paramilitares – A partir deste ano, o cenário pode se tornar ainda mais dramático para quem se aventurar a entrar nos EUA clandestinamente. Os fazendeiros antiimigrantes dos Estados da Califórnia e do Arizona resolveram enfrentar os indocumentados à bala. Um grupo paramilitar denominado “Minuteman Project”, nome baseado numa milícia civil que existia no século XVIII, no início da guerra da independência dos EUA, vai organizar uma grande ofensiva contra as pessoas que ousarem atravessar o deserto. Voluntários estão se inscrevendo pela internet para formar a milícia. Os treinamentos começam dia 1º de abril. Eles acamparão durante um mês em partes estratégicas das montanhas e pelas reservas. Até agora, cerca de 1.500 pessoas, vários ex-militares, já se inscreveram para a “guerra” que se anuncia. Entre eles, os proprietários de 16 pequenas aeronaves prontas para atacar. O exército antiimigrante é capitaneado por James Gilchrist, 55 anos, um ex-marine veterano do Vietnã. Ele diz que o povo americano não pode mais arcar com os custos de saúde e educação dos imigrantes ilegais. “Eles não pagam impostos. E o que ganham aqui é enviado para seus países. Não investem nada. Por isso, temos que expulsá-los”, diz em sua página na web (www.minutemanproject.com). “Estamos muito preocupados com essa organização”, diz o policial Adame. “Essa iniciativa é muito perigosa. Os dois lados, coiotes e fazendeiros, possuem armas. Esse conflito pode resultar em muito mais mortes na região”, conclui.

Contra esse pano de fundo de ódio, o trabalho da missionária Michele viceja como um oásis no deserto. E sua preocupação humanitária estende-se aos mortos. É dela a iniciativa de viabilizar uma ala para os imigrantes desconhecidos no Terrace Cemetery. Michele preocupa-se com detalhes. Para cada morto “identificado” é realizada uma cerimônia simples, na qual são proferidos um culto evangélico e uma oração católica. “Não sabemos qual era a religião daquela pessoa. Então, optamos por fazer a homenagem desta forma”, conta a religiosa. Mesmo podendo enterrar os corpos dos clandestinos com um pouco mais de dignidade em território americano, quem participou dessas sessões é unânime em afirmar que o momento é terrível. “Não dá para imaginar aquelas pessoas ali veladas por duas pessoas desconhecidas, e longe de todos os seus entes queridos”, lamenta M.A.