Modelo para a maioria dos partidos de esquerda em todo o mundo, a social-democracia alemã sempre foi considerada a mãe de todas as moderações. Há pouco mais de 100 anos, por exemplo, um de seus maiores teóricos, Eduard Bernstein, ousou desafiar a ideologia marxista oficial do partido, afirmando, entre outras heresias, que o colapso do capitalismo não era inevitável e as reformas dentro do sistema eram mais importantes do que o objetivo final, o socialismo. Tachadas de “revisionistas”, essas teses foram duramente atacadas pelos cardeais do partido, mas acabaram sendo adotadas na prática política cotidiana. Em 1959, no Congresso de Bad Godsberg, o Partido Social-Democrata Alemão (SPD) enterrou de vez o marxismo e, mais importante, abandonou sua identificação com a classe operária para se tornar um “partido de todo o povo”. Essa abertura permitiu aos social-democratas, dez anos depois, chegar pela primeira vez ao poder, no qual permaneceriam por mais de uma década. Em 1998, depois de amargar 16 anos na oposição, o SPD venceu as eleições com a plataforma centrista de seu candidato, Gerhard Schröder, que defendia o livre mercado e a unificação monetária européia, além de tecer loas às virtudes da globalização. Schröder, na verdade, fazia eco às idéias da “terceira via” do Partido Trabalhista britânico do premiê Tony Blair, que pretendia ser um caminho alternativo ao neoliberalismo puro e à social-democracia tradicional. Com sua ênfase no mercado e na competitividade econômica, a terceira via fez as políticas dos governos de centro-esquerda ficarem cada vez mais parecidas com a de seus adversários de direita.

No Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT), que sempre teve o SPD como uma de suas referências históricas, relutou muito, mas acabou finalmente atravessando o Rubicão do reformismo. Líder nas pesquisas para a Presidência até agora, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva adotou na atual campanha eleitoral um discurso muito mais ameno do que o do passado. Ele agora defende a manutenção da estabilidade econômica e até busca aliados no centro do espectro político, como o Partido Liberal (PL) do bispo Edir Macedo e o PMDB de Orestes Quércia – antes anátemas para o purismo petista. “A esquerda venceu seu preconceito em relação ao povo, que prefere a inovação à mudança e a reforma e à revolução”, garante o deputado Paulo Delgado (PT-MG). Mas, quando até o PT aderia à aparentemente irresistível lógica da moderação, uma inesperada mudança de ventos ocorreu na semana passada na Europa – e veio justamente da velha social-democracia alemã. Ameaçado de perder o poder nas eleições de setembro, o SPD realizou uma virada surpreendente: em discurso no Congresso do partido em Berlim no domingo 2, o chanceler (premiê), Schröder, abandonou o pragmatismo e inflamou o auditório levantando velhas bandeiras de esquerda. “Conosco não haverá um desmantelamento dos direitos dos trabalhadores. Quem acha que todos os problemas se resolvem quando se privatiza tudo o que pertence à esfera pública não é moderno, quer regressar ao reacionário Estado estamental”, disse ele.

Mas ao contrário do pragmatismo histórico do SPD, que sempre teve componentes estratégicos, além dos conjunturais, a guinada atual de Schröder é meramente eleitoral. O chanceler alemão ficou impressionado com a sucessão de derrotas recentes dos partidos de esquerda europeus, particularmente a do ex-primeiro-ministro francês Lionel Jospin. Apesar da proeza de ter feito um governo ao mesmo tempo eficiente do ponto de vista econômico e mais à esquerda do que o próprio Schröder, Jospin não se diferenciou dos conservadores na campanha e acabou perdendo para o ultradireitista Jean-Marie Le Pen e para as abstenções. Agora, Schröder busca, num primeiro momento, atrair os eleitores tradicionais do SPD e, depois, conquistar outras fatias do eleitorado.

Políticos de esquerda no Brasil em geral vêem a corrida em direção ao centro como uma necessidade política inescapável, sem considerar a crise desta opção atualmente entre os partidos socialistas e social-democratas na Europa. Para o senador Roberto Freire (PPS-PE), o “PT não está indo para o centro, está se modernizando. Se continuasse com a antiga política, não chegaria ao poder nunca”. Marco Aurélio Garcia, secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo, opina que “não adianta propor renovações radicais, porque as condições não permitem”. Outros acreditam que, de reformismo em reformismo, a esquerda européia simplesmente deixou de existir. “Parte dessa esquerda entrou em período de absoluta rendição, por falta de referência depois da queda do muro de Berlim e da derrocada da União Soviética”, diz o deputado Milton Temer (PT-RJ), da ala radical do partido.