Cristovam Buarque defende projeto para acabar com a pobreza em uma década ao custo de R$ 40 bilhões por ano

O economista, professor e ex-reitor da Universidade de Brasília Cristovam Buarque fez cerca de 80 viagens internacionais nos últimos três anos. Visitou principalmente quem tem muito dinheiro: megaempresários como Bill Gates e grandes banqueiros como George Soros. Seu périplo é em busca de financiamento para a bolsa-escola, idéia sua implantada quando era governador do Distrito Federal, copiada pelo governo federal e aplicada em vários países da África e da América Latina. Estrela do PT, partido pelo qual é candidato ao Senado, Cristovam ganhou o apelido de Mr. Children por sua insistência em defender escola gratuita e de qualidade. Aos 57 anos, depois que perdeu a eleição para Joaquim Roriz, dedicou-se à ONG Missão Criança, que trabalha para implantar a bolsa-escola pelo mundo. Para o Brasil, ele tem um sonho: terminar com a pobreza até 2022, ao custo de R$ 40 bilhões por ano. “Seria uma nova abolição. No discurso dos presidenciáveis, falta convocar o povo brasileiro para acabar com a pobreza”, provoca.

ISTOÉ – Criança continua sendo sua principal procupação?
Cristovam

Continua. Toda criança na escola, toda escola de qualidade. Se fizermos isso, o resto se resolve. É claro que junto tem a erradicação da pobreza. Do ponto de vista conceitual, creio que estou contribuindo ao romper com a visão tradicional de que a pobreza se erradica através do crescimento econômico. Ele é um instrumento fundamental para aumentar a riqueza, não para reduzir a pobreza. Até há algumas décadas, havia lógica e evidências na idéia de que aumentando riqueza se reduziria a pobreza porque a riqueza se espalhava. A riqueza não se espalha, concentra-se. A estrutura econômica força a isso. E a maneira de erradicar a pobreza também não é desarticular a economia dos ricos como se pensava na época da proposta socialista.

ISTOÉ – O que tem que ser feito?
Cristovam

Manter a economia gerando riqueza. Com os recursos que o setor público arrecada, através da política fiscal, investir diretamente na garantia de cinco bens e serviços básicos: alimentação para todos; conclusão do 2º grau com qualidade; atendimento médico satisfatório; que todos possam pagar um eficiente sistema de transporte público; e moradia com água potável, coleta de lixo e esgoto. Se todos tiverem isso, erradicaremos a pobreza, independentemente do nível de renda.

ISTOÉ – Aumentar o salário mínimo é um bom começo?
Cristovam

Dobrar ou triplicar o salário mínimo em curto prazo é demagogia. Não pode ser feito porque não há dinheiro para isso no bolo da renda nacional, que hoje é de R$ 1,1 trilhão por ano. Retirando-se a parte de poupança e dividindo-se o restante pela população, dará menos de R$ 700 para cada um, mas, para isso, quem ganha acima desse valor terá que reduzir o salário. Aí quebra a economia brasileira, que foi montada para atender à demanda dos ricos e não às necessidades dos pobres. Estas não serão contempladas através do mercado nem da renda do trabalhador porque o salário mínimo não vai subir a ponto de o cidadão pagar a escola privada para o filho, ou seguro de saúde, muito menos colocar água e esgoto na própria casa. Mesmo mantendo o mínimo atual, pode-se garantir que todo mundo tenha escola de qualidade para os filhos, água e esgoto em casa, um satisfatório sistema de saúde e comida. FHC disse que este não é um país pobre, é um país injusto. Não. Somos um país terrivelmente injusto e razoavelmente pobre porque a renda está concentrada de maneira imoral. A solução para o problema da pobreza não está no salário e sim na garantia de que todos terão acesso a bens e serviços essenciais. É mais ou menos como na época da escravidão. A abolição não aconteceu para aumentar a renda do escravo nem para resolver um problema de crescimento econômico. Era uma questão ética.

ISTOÉ – O que o sr. propõe?
Cristovam

Um conjunto de programas que podemos chamar de projeto áureo da abolição da pobreza. Por exemplo: mobilização dos desempregados para que produzam para acabar com a pobreza. Keynes fez isso nos anos 30, nos EUA, quando o governo dava uma renda ao desempregado para a sua manutenção porque lá já tinha escola e saúde. Lá, ele era desempregado. Aqui é pobre. A diferença entre o desempregado e o pobre é que o primeiro não tem renda, mas tem água na torneira, escola para os filhos.

ISTOÉ – Miserável não seria a melhor definição?
Cristovam

Nenhuma dessas palavras é boa. A melhor é excluído. Mas não importa a palavra e sim o conceito que identifica quem não tem escola, comida, transporte, saúde e uma moradia com água, coleta de lixo e esgoto. A economia definiu uma linha da pobreza horizontal. Abaixo dela todos são pobres. Mas a linha tem que ser vertical. À esquerda dela estão os excluídos, é uma questão de posição social. Quem ganha menos de um dólar por dia, segundo definição econômica internacional, é pobre. Mas há muita gente que ganha acima desse valor por dia e continua muito pobre porque não tem escola para os filhos, sistema de saúde, água potável ou esgoto no barraco.

ISTOÉ – Como fazer isso?
Cristovam

Proponho os incentivos sociais. Nos incentivos fiscais, o Estado deixa de arrecadar para que o empresário invista, crie emprego, crie renda ao pagar salário. Isso é mentira. Mesmo os incentivos fiscais aplicados corretamente e não desviados para ranários não conseguem erradicar a pobreza porque não haverá emprego para todos. Os incentivos sociais seriam diretos e indiretos: diretos são os pagos ao pobre para que ele produza. Não é como no programa dos EUA, que dava renda em troca de nada, nem vale-alimentação ou vale-gás. Paga-se em troca de produção. A bolsa-escola não é uma ajuda nem uma política compensatória. É incentivo social que provoca um produtivismo social. A mãe ganha para que o filho estude. Faltou à aula, não recebe. O melhor exemplo de incentivo social que eu tive no meu governo foi a bolsa-alfa. Pagava-se ao analfabeto adulto para que ele aprendesse a ler e escrever. O governo comprava a primeira carta que ele escrevesse em sala de aula. Hoje, os 20 milhões de adultos analfabetos podem aprender a ler com universitários, que teriam esta função como currículo obrigatório. Outro exemplo foi a poupança-escola, que era o pagamento de R$ 100 por ano para cada aluno do setor público que fosse aprovado e se matriculasse para estudar no ano seguinte. Era uma poupança que o aluno só sacava quando concluísse o 2º grau. Cerca de 50 mil crianças receberam essa poupança durante três anos, mas o atual governador acabou o programa e ninguém sabe onde está o dinheiro.

ISTOÉ – O que fazer com as famílias pobres com filhos até cinco anos?
Cristovam

A direita propõe o crescimento econômico para aumentar a renda e possibilitar o pagamento das creches particulares. A esquerda quer garantir creches para todas as crianças até cinco anos. As duas são fantasiosas. Para essas crianças seriam necessárias entre 30 mil e 50 mil creches. O Estado não tem dinheiro para fazer nem competência para gerenciar isso. Imagine contratarmos gente para trabalhar em 50 mil creches. A minha proposta é mais simples e dentro do mercado: garantir licença remunerada para toda mulher, trabalhadora ou desempregada, para que ela crie os filhos até cinco anos.

ISTOÉ – E os incentivos indiretos?
Cristovam

São os que vão para o bolso dos que não são pobres, mas que vão produzir para os pobres. Por exemplo: contratar 500 mil professores para o ensino básico e dobrar seus salários. Este é o único item caro deste programa. Crianças na escola implica construção de novas escolas e compra de computadores, o que significa aquecer o setor de construção civil e de informática. Ao pôr água e esgoto em todas as casas haveria incentivo direto e indireto.

ISTOÉ – Mas isso é distribuir renda e na sua tese o problema não está na concentração de renda?
Cristovam

Isso é distribuir renda, mas o que vai tirar da pobreza não é a distribuição de renda e sim o aumento da oferta dos bens e serviços essenciais. Quando, se paga uma bolsa-escola a uma mãe, distribui-se renda, mas o que vai tirá-la da pobreza é o filho dela terminar o 2º grau. A distribuição da renda é meio. Nós temos que sair da armadilha da economia. Precisamos distribuir renda, mas antes temos que erradicar a pobreza. A distribuição de renda é difícil de fazer politicamente, provoca desequilíbrios no aparelho produtivo, que é feito para um modelo concentrador e ao mesmo tempo não será suficiente para tirar todos da pobreza. A bolsa-escola quase nada resolve pelo que paga, mas resolve quase tudo pela escola. Isso é ruptura no pensamento tradicional da esquerda e da direita.

ISTOÉ – A reforma agrária não seria a base de todos esses programas sociais?
Cristovam

Seria. Ela faz parte do que chamo de projeto áureo e está dentro da mesma lógica: mobilizar uma quantidade de terras sem homens e de homens sem terra para que juntos produzam comida. Isso resolve o primeiro problema da pobreza, além de gerar renda para aqueles que vão trabalhar no campo. Esse é um dos itens mais caros do meu projeto, R$ 5 bilhões por ano. O programa completo de incentivos sociais que erradicaria a pobreza, incluindo crianças antes dos cinco anos, bolsa-escola, poupança-escola, jovens, adultos, habitação, contratação de professores e aumento de salário, habitação, hospitais, saneamento, tudo isso custaria R$ 40 bilhões ao ano em dez anos.

ISTOÉ – No Brasil só se aboliu a escravidão porque já não era viável economicamente para o fazendeiro manter escravos. Hoje, analfabeto também se tornou um custo a mais para as empresas. É por isso que, para viabilizar suas idéias, o sr. vem tentando convencer os banqueiros internacionais de que elas também são boas para as empresas?
Cristovam

Erradicar a pobreza custa pouco e traz vantagens para o País. Em 20 anos completaremos dois séculos de independência. Quando os americanos comemoraram o bicentenário, já tinham mandado 12 homens à Lua, vencido guerras, eram a maior economia do mundo, tinham educado quase todas as crianças, não havia fome.

ISTOÉ – Não é uma comparação injusta com um país de Terceiro Mundo?
Cristovam

Não. A pobreza brasileira é culpa dos brasileiros. FMI e imperialismo podem impedir o crescimento, mas não são eles os culpados da existência da pobreza.

ISTOÉ – Então esse contato é uma estratégia política?
Cristovam

É, não nego. Nós não temos o direito de deixar que aconteça qualquer perturbação na economia por culpa nossa. Não somos nós que estamos perturbando hoje, mas o PT não está passando ao mercado internacional a tranquilidade necessária. Qualquer candidato, e não é só o Lula, tem responsabilidade com o País. Num momento de transição, de eleição, não é só o presidente que tem responsabilidade. O presidente não é mais culpado nem responsável sozinho. Qualquer candidato hoje é capaz de perturbar o mercado.
 

ISTOÉ – O sr. já defendeu a permanência do ministro Malan na Fazenda. E agora?
Cristovam

Em 1998 eu defendi, mas de lá pra cá as coisas pioraram. Hoje não basta mais 100 dias, mas também não dá mais para manter o Malan. Precisamos de mais tempo sem grandes mudanças nas taxas de juros. Todas as mudanças terão que ser feitas conforme o mercado permite. Hoje, para manter a tranquilidade, o ministro da Fazenda não precisa ser do nosso partido, como é melhor que não seja.

ISTOÉ – O que o PT acha das suas propostas?
Cristovam

Não sei. Nunca consegui perguntar isso ao partido.

ISTOÉ – Há dinheiro no orçamento para acabar com a pobreza?
Cristovam

Há recursos suficientes. Para o orçamento deste ano está previsto R$ 440 bilhões. É claro que uma parte é pura jogada monetária. Mas o saldo primário fiscal previsto é de quase R$ 40 bilhões. Proponho democracia e responsabilidade fiscal, o que implica gastar somente o aprovado pelo Congresso. Somente o fundo de erradicação da pobreza já tem R$ 4 bilhões. Temos que racionalizar o orçamento social, que hoje é de R$ 120 bilhões, e priorizar gastos com os pobres. Para isso, é preciso uma coalizão ética no Congresso. Ela vai abolir a pobreza. A Sierra Maestra de hoje é a sala de orçamento do Congresso. O Lenin dizia que socialismo é igual a ferro mais energia. Hoje, socialismo é educação mais educação. As crianças educadas vão escolher o sistema delas. É preciso um presidente que queira fazer isso e seja capaz de unir parlamentares. O Lula é o melhor nome para essa missão.

ISTOÉ – Mas para o projeto andar alguém tem que perder.
Cristovam

Uma escola de qualidade vai beneficiar também a classe média, os trabalhadores. Primeiro, devemos ter responsabilidade fiscal e gastar apenas o arrecadado. Segundo, defendo que o orçamento comece pelos excluídos, definindo quanto precisamos para ter toda criança na escola, água e esgoto, etc. Depois dos R$ 40 bilhões, vamos discutir o que sobra. Somente aí o funcionalismo pode reivindicar o que quiser, as empreiteiras pedirem mais obras e as universidades, mais recursos. Aí democraticamente, vamos definir quem perde. Hoje, o custo de manter o País nesse status quo é maior que o dinheiro necessário para os programas sociais.

ISTOÉ – A idéia de ser vice de Lula lhe agrada ou as denúncias de que o sr. teria recebido dinheiro ilegal de uma entidade sindical inviabilizam sua candidatura?
Cristovam

Construí minha carreira em cima da criatividade na solução de problemas, da coerência e da honestidade, e uma denúncia como esta arranha, apesar de toda a mentira e de não ter lógica. Ninguém me acusou de usar um real do dinheiro público, mas, se eu sentir que a opinião pública de Brasília desconfia de mim, saio da vida pública. Essas denúncias foram uma armação. Posso fazer muita coisa como professor, como escritor e como diretor da Missão Criança, uma entidade que hoje paga bolsa-escola a 1.137 famílias no Brasil. Com o dinheiro que eu consigo, vou pagar bolsa-escola na Tanzânia, Moçambique, Equador, Bolívia e El Salvador. Isso é fazer uma pequena revolução. Não preciso de mandato para isso. Quanto a ser vice do Lula, é difícil alguém se negar a participar de um projeto desses, mas ainda creio e tenho esperança na aliança com o PL.

ISTOÉ – O sr. teme uma reação do governo dos EUA e dos banqueiros, caso o Lula vença as eleições?
Cristovam

Claro. Ninguém sabe o que o Bush vai fazer diante de qualquer coisa. Ele é um ideólogo, os banqueiros são ganhadores de dinheiro. E a gente precisa saber se precisamos deles ganhando dinheiro aqui ou não.