13/06/2002 - 10:00
O economista, professor e ex-reitor da Universidade de Brasília Cristovam Buarque fez cerca de 80 viagens internacionais nos últimos três anos. Visitou principalmente quem tem muito dinheiro: megaempresários como Bill Gates e grandes banqueiros como George Soros. Seu périplo é em busca de financiamento para a bolsa-escola, idéia sua implantada quando era governador do Distrito Federal, copiada pelo governo federal e aplicada em vários países da África e da América Latina. Estrela do PT, partido pelo qual é candidato ao Senado, Cristovam ganhou o apelido de Mr. Children por sua insistência em defender escola gratuita e de qualidade. Aos 57 anos, depois que perdeu a eleição para Joaquim Roriz, dedicou-se à ONG Missão Criança, que trabalha para implantar a bolsa-escola pelo mundo. Para o Brasil, ele tem um sonho: terminar com a pobreza até 2022, ao custo de R$ 40 bilhões por ano. “Seria uma nova abolição. No discurso dos presidenciáveis, falta convocar o povo brasileiro para acabar com a pobreza”, provoca.
Continua. Toda criança na escola, toda escola de qualidade. Se fizermos isso, o resto se resolve. É claro que junto tem a erradicação da pobreza. Do ponto de vista conceitual, creio que estou contribuindo ao romper com a visão tradicional de que a pobreza se erradica através do crescimento econômico. Ele é um instrumento fundamental para aumentar a riqueza, não para reduzir a pobreza. Até há algumas décadas, havia lógica e evidências na idéia de que aumentando riqueza se reduziria a pobreza porque a riqueza se espalhava. A riqueza não se espalha, concentra-se. A estrutura econômica força a isso. E a maneira de erradicar a pobreza também não é desarticular a economia dos ricos como se pensava na época da proposta socialista.
Manter a economia gerando riqueza. Com os recursos que o setor público arrecada, através da política fiscal, investir diretamente na garantia de cinco bens e serviços básicos: alimentação para todos; conclusão do 2º grau com qualidade; atendimento médico satisfatório; que todos possam pagar um eficiente sistema de transporte público; e moradia com água potável, coleta de lixo e esgoto. Se todos tiverem isso, erradicaremos a pobreza, independentemente do nível de renda.
Dobrar ou triplicar o salário mínimo em curto prazo é demagogia. Não pode ser feito porque não há dinheiro para isso no bolo da renda nacional, que hoje é de R$ 1,1 trilhão por ano. Retirando-se a parte de poupança e dividindo-se o restante pela população, dará menos de R$ 700 para cada um, mas, para isso, quem ganha acima desse valor terá que reduzir o salário. Aí quebra a economia brasileira, que foi montada para atender à demanda dos ricos e não às necessidades dos pobres. Estas não serão contempladas através do mercado nem da renda do trabalhador porque o salário mínimo não vai subir a ponto de o cidadão pagar a escola privada para o filho, ou seguro de saúde, muito menos colocar água e esgoto na própria casa. Mesmo mantendo o mínimo atual, pode-se garantir que todo mundo tenha escola de qualidade para os filhos, água e esgoto em casa, um satisfatório sistema de saúde e comida. FHC disse que este não é um país pobre, é um país injusto. Não. Somos um país terrivelmente injusto e razoavelmente pobre porque a renda está concentrada de maneira imoral. A solução para o problema da pobreza não está no salário e sim na garantia de que todos terão acesso a bens e serviços essenciais. É mais ou menos como na época da escravidão. A abolição não aconteceu para aumentar a renda do escravo nem para resolver um problema de crescimento econômico. Era uma questão ética.
Um conjunto de programas que podemos chamar de projeto áureo da abolição da pobreza. Por exemplo: mobilização dos desempregados para que produzam para acabar com a pobreza. Keynes fez isso nos anos 30, nos EUA, quando o governo dava uma renda ao desempregado para a sua manutenção porque lá já tinha escola e saúde. Lá, ele era desempregado. Aqui é pobre. A diferença entre o desempregado e o pobre é que o primeiro não tem renda, mas tem água na torneira, escola para os filhos.
Nenhuma dessas palavras é boa. A melhor é excluído. Mas não importa a palavra e sim o conceito que identifica quem não tem escola, comida, transporte, saúde e uma moradia com água, coleta de lixo e esgoto. A economia definiu uma linha da pobreza horizontal. Abaixo dela todos são pobres. Mas a linha tem que ser vertical. À esquerda dela estão os excluídos, é uma questão de posição social. Quem ganha menos de um dólar por dia, segundo definição econômica internacional, é pobre. Mas há muita gente que ganha acima desse valor por dia e continua muito pobre porque não tem escola para os filhos, sistema de saúde, água potável ou esgoto no barraco.
Proponho os incentivos sociais. Nos incentivos fiscais, o Estado deixa de arrecadar para que o empresário invista, crie emprego, crie renda ao pagar salário. Isso é mentira. Mesmo os incentivos fiscais aplicados corretamente e não desviados para ranários não conseguem erradicar a pobreza porque não haverá emprego para todos. Os incentivos sociais seriam diretos e indiretos: diretos são os pagos ao pobre para que ele produza. Não é como no programa dos EUA, que dava renda em troca de nada, nem vale-alimentação ou vale-gás. Paga-se em troca de produção. A bolsa-escola não é uma ajuda nem uma política compensatória. É incentivo social que provoca um produtivismo social. A mãe ganha para que o filho estude. Faltou à aula, não recebe. O melhor exemplo de incentivo social que eu tive no meu governo foi a bolsa-alfa. Pagava-se ao analfabeto adulto para que ele aprendesse a ler e escrever. O governo comprava a primeira carta que ele escrevesse em sala de aula. Hoje, os 20 milhões de adultos analfabetos podem aprender a ler com universitários, que teriam esta função como currículo obrigatório. Outro exemplo foi a poupança-escola, que era o pagamento de R$ 100 por ano para cada aluno do setor público que fosse aprovado e se matriculasse para estudar no ano seguinte. Era uma poupança que o aluno só sacava quando concluísse o 2º grau. Cerca de 50 mil crianças receberam essa poupança durante três anos, mas o atual governador acabou o programa e ninguém sabe onde está o dinheiro.
A direita propõe o crescimento econômico para aumentar a renda e possibilitar o pagamento das creches particulares. A esquerda quer garantir creches para todas as crianças até cinco anos. As duas são fantasiosas. Para essas crianças seriam necessárias entre 30 mil e 50 mil creches. O Estado não tem dinheiro para fazer nem competência para gerenciar isso. Imagine contratarmos gente para trabalhar em 50 mil creches. A minha proposta é mais simples e dentro do mercado: garantir licença remunerada para toda mulher, trabalhadora ou desempregada, para que ela crie os filhos até cinco anos.
São os que vão para o bolso dos que não são pobres, mas que vão produzir para os pobres. Por exemplo: contratar 500 mil professores para o ensino básico e dobrar seus salários. Este é o único item caro deste programa. Crianças na escola implica construção de novas escolas e compra de computadores, o que significa aquecer o setor de construção civil e de informática. Ao pôr água e esgoto em todas as casas haveria incentivo direto e indireto.
Isso é distribuir renda, mas o que vai tirar da pobreza não é a distribuição de renda e sim o aumento da oferta dos bens e serviços essenciais. Quando, se paga uma bolsa-escola a uma mãe, distribui-se renda, mas o que vai tirá-la da pobreza é o filho dela terminar o 2º grau. A distribuição da renda é meio. Nós temos que sair da armadilha da economia. Precisamos distribuir renda, mas antes temos que erradicar a pobreza. A distribuição de renda é difícil de fazer politicamente, provoca desequilíbrios no aparelho produtivo, que é feito para um modelo concentrador e ao mesmo tempo não será suficiente para tirar todos da pobreza. A bolsa-escola quase nada resolve pelo que paga, mas resolve quase tudo pela escola. Isso é ruptura no pensamento tradicional da esquerda e da direita.
Seria. Ela faz parte do que chamo de projeto áureo e está dentro da mesma lógica: mobilizar uma quantidade de terras sem homens e de homens sem terra para que juntos produzam comida. Isso resolve o primeiro problema da pobreza, além de gerar renda para aqueles que vão trabalhar no campo. Esse é um dos itens mais caros do meu projeto, R$ 5 bilhões por ano. O programa completo de incentivos sociais que erradicaria a pobreza, incluindo crianças antes dos cinco anos, bolsa-escola, poupança-escola, jovens, adultos, habitação, contratação de professores e aumento de salário, habitação, hospitais, saneamento, tudo isso custaria R$ 40 bilhões ao ano em dez anos.
Erradicar a pobreza custa pouco e traz vantagens para o País. Em 20 anos completaremos dois séculos de independência. Quando os americanos comemoraram o bicentenário, já tinham mandado 12 homens à Lua, vencido guerras, eram a maior economia do mundo, tinham educado quase todas as crianças, não havia fome.
Não. A pobreza brasileira é culpa dos brasileiros. FMI e imperialismo podem impedir o crescimento, mas não são eles os culpados da existência da pobreza.
É, não nego. Nós não temos o direito de deixar que aconteça qualquer perturbação na economia por culpa nossa. Não somos nós que estamos perturbando hoje, mas o PT não está passando ao mercado internacional a tranquilidade necessária. Qualquer candidato, e não é só o Lula, tem responsabilidade com o País. Num momento de transição, de eleição, não é só o presidente que tem responsabilidade. O presidente não é mais culpado nem responsável sozinho. Qualquer candidato hoje é capaz de perturbar o mercado.
Em 1998 eu defendi, mas de lá pra cá as coisas pioraram. Hoje não basta mais 100 dias, mas também não dá mais para manter o Malan. Precisamos de mais tempo sem grandes mudanças nas taxas de juros. Todas as mudanças terão que ser feitas conforme o mercado permite. Hoje, para manter a tranquilidade, o ministro da Fazenda não precisa ser do nosso partido, como é melhor que não seja.
Não sei. Nunca consegui perguntar isso ao partido.
Há recursos suficientes. Para o orçamento deste ano está previsto R$ 440 bilhões. É claro que uma parte é pura jogada monetária. Mas o saldo primário fiscal previsto é de quase R$ 40 bilhões. Proponho democracia e responsabilidade fiscal, o que implica gastar somente o aprovado pelo Congresso. Somente o fundo de erradicação da pobreza já tem R$ 4 bilhões. Temos que racionalizar o orçamento social, que hoje é de R$ 120 bilhões, e priorizar gastos com os pobres. Para isso, é preciso uma coalizão ética no Congresso. Ela vai abolir a pobreza. A Sierra Maestra de hoje é a sala de orçamento do Congresso. O Lenin dizia que socialismo é igual a ferro mais energia. Hoje, socialismo é educação mais educação. As crianças educadas vão escolher o sistema delas. É preciso um presidente que queira fazer isso e seja capaz de unir parlamentares. O Lula é o melhor nome para essa missão.
Uma escola de qualidade vai beneficiar também a classe média, os trabalhadores. Primeiro, devemos ter responsabilidade fiscal e gastar apenas o arrecadado. Segundo, defendo que o orçamento comece pelos excluídos, definindo quanto precisamos para ter toda criança na escola, água e esgoto, etc. Depois dos R$ 40 bilhões, vamos discutir o que sobra. Somente aí o funcionalismo pode reivindicar o que quiser, as empreiteiras pedirem mais obras e as universidades, mais recursos. Aí democraticamente, vamos definir quem perde. Hoje, o custo de manter o País nesse status quo é maior que o dinheiro necessário para os programas sociais.
Construí minha carreira em cima da criatividade na solução de problemas, da coerência e da honestidade, e uma denúncia como esta arranha, apesar de toda a mentira e de não ter lógica. Ninguém me acusou de usar um real do dinheiro público, mas, se eu sentir que a opinião pública de Brasília desconfia de mim, saio da vida pública. Essas denúncias foram uma armação. Posso fazer muita coisa como professor, como escritor e como diretor da Missão Criança, uma entidade que hoje paga bolsa-escola a 1.137 famílias no Brasil. Com o dinheiro que eu consigo, vou pagar bolsa-escola na Tanzânia, Moçambique, Equador, Bolívia e El Salvador. Isso é fazer uma pequena revolução. Não preciso de mandato para isso. Quanto a ser vice do Lula, é difícil alguém se negar a participar de um projeto desses, mas ainda creio e tenho esperança na aliança com o PL.
Claro. Ninguém sabe o que o Bush vai fazer diante de qualquer coisa. Ele é um ideólogo, os banqueiros são ganhadores de dinheiro. E a gente precisa saber se precisamos deles ganhando dinheiro aqui ou não.