O economista Ricardo Paes de Barros diz que o fim do flagelo, que atinge um terço da população do País, está distante

O Rio de Janeiro vai sediar o primeiro e único Centro Internacional para Políticas de Redução da Pobreza das Organizações das Nações Unidas (ONU). A escolha do local não foi aleatória. Contou a favor da cidade o fato de o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), instalado no Rio, ser considerado um centro de excelência no tema. Mais de duas centenas de trabalhos sobre pobreza e desigualdade social já foram publicados pela área social do Ipea. Todos com a rubrica de um economista considerado uma sumidade no assunto. Seu nome: Ricardo Paes de Barros. Seu apelido: PB. “Ele é apontado como uma das maiores lideranças mundiais no tema”, diz o presidente do Ipea, Roberto Martins. O elogiado desconversa. Aos 48 anos, 22 dos quais no Ipea, PB também é famoso por exercer uma verdadeira cruzada “antimarketing pessoal”. Ele não gosta de holofotes. Prefere jogar o centro das atenções para seu assunto preferido: a pobreza. “Já passamos do limite do que é aceitável no Brasil”, diz o especialista, que não se cansa de peregrinar a Brasília na tentativa de convencer seus superiores, do Ministério do Planejamento, de que cada dia que se perde em burocracia é pior para os pobres. “O Brasil tem usado sistematicamente o crescimento econômico para combater a extrema pobreza e tem se esquecido de mexer na desigualdade social. Assim não dá para acabar com a pobreza.” Esse economista, que passou pelos bancos escolares do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), vem transformando sua sala no Ipea numa espécie de bunker contra a pobreza. Em entrevista a ISTOÉ, PB falou sobre essa cruzada que já dura 15 anos. Nos próximos meses vai dividir seu tempo entre o Ipea e o escritório da Organização das Nações Unidas (ONU), que será instalado em um prédio do Itamaraty, no Rio. É que as propostas que sairão do Centro Internacional para Políticas de Redução da Pobreza serão escritas pelos técnicos da ONU em parceria com o Ipea.
 

ISTOÉ – A ONU se comprometeu a reduzir pela metade a extrema pobreza no mundo até 2015. O Brasil vai conseguir atingir essa meta?
Ricardo Paes de Barros

Essa meta para o Brasil é pouco arrojada. O País deveria estar se impondo metas mais difíceis. Deveríamos estar preocupados não apenas com a extrema pobreza, mas sobretudo com a pobreza. São considerados indigentes no País aqueles que recebem abaixo de R$ 50 per capita/mês, o que representa 12% da população. Enquanto isso, 33% dos brasileiros são considerados pobres, ou seja, um terço do País não tem condições de atender suas necessidades básicas, além de nutrição. Acabar com a extrema pobreza é fácil, difícil é atacar a pobreza.

ISTOÉ – Por que é tão difícil acabar com a pobreza?
Ricardo Paes de Barros

Existem dois caminhos para chegarmos lá: crescimento econômico ou redução da desigualdade social. O Brasil tem conseguido reduzir a extrema pobreza fundamentalmente via expansão da economia. E aí está o problema: quando a economia vai bem, a extrema pobreza cai; quando a economia vai mal, a pobreza também vai mal. Temos mostrado insistentemente que o impacto da redução da desigualdade social para a redução da pobreza é muito maior do que o impacto do crescimento econômico. O problema no Brasil é que temos uma excelente política econômica, mas nenhuma política social. Assim não dá para acabar com a pobreza.

ISTOÉ – Mas o governo se vangloria dos investimentos na área social.
Ricardo Paes de Barros

O Brasil gasta cerca de R$ 150 bilhões por ano em políticas sociais, e a concentração de renda não mexe um milímetro. Alguma coisa está errada. O problema é que esse volume de recursos é usado em projetos voltados para ajudar a própria classe média e não atinge os pobres. O que estamos fazendo na prática é a redistribuição de renda da classe média para a própria classe média. Nossos programas sociais estão mal focalizados. São programas voltados para o setor formal da economia. Será que o bolsa-escola está realmente atingindo os mais pobres? E o seguro-desemprego? Recentemente o IBGE fez uma pesquisa e constatou que 77% das pessoas beneficiadas pelos recursos fianaceiros do seguro-desemprego não são pobres; 45% dos beneficiados estão ocupados, enquanto apenas 21% estão realmente desempregados. A conclusão a que chegamos é de que não estamos acabando com a fome do cara que realmente tem fome.

ISTOÉ – E por quê?
Ricardo Paes de Barros

Porque nossos pobres são invisíveis. Não existe uma instituição que diga “eu sei onde estão os pobres no Brasil”. Na Colômbia, por exemplo, existe o Sisbem, um cadastro completo dos pobres. O Chile tem um sistema parecido, batizado de Cais. O mesmo ocorre na Costa Rica. No Brasil, o Cadastro Único está apenas engatinhando e mesmo assim é incipiente para as necessidades brasileiras. Nossos pobres relevantes são cada vez mais pobres e invisíveis. Nossos pobres não são trabalhadores com baixo salário no setor formal: esse pessoal provavelmente é jovem e de família da classe média. Os mais pobres são trabalhadores de meia-idade no setor informal. Precisamos ter instituições com tal capilaridade que nos permita saber onde estão realmente os mais pobres, e não aquilo que aparece em algum cadastro administrativo ao qual temos acesso. Além do mais, o Brasil tem um viés pró-idoso. A Previdência Rural, por exemplo, consome R$ 15 bilhões por ano e outros R$ 2 bilhões são jogados no programa bolsa-escola. Ora, se você pega o número de crianças em idade escolar no País vai verificar que ele é quatro ou cinco vezes o número de idosos. Então por que estamos fazendo tanta transferência de recursos para os programas voltados para os idosos e tão pouca para as crianças? Tenho enorme dificuldade em compreender essa lógica.

ISTOÉ – Se os programas sociais são incompatíveis com as nossas necessidades, isso significa que estamos jogando R$ 150 bilhões por ano no ralo?
Ricardo Paes de Barros

Pois é. Não temos nenhum sistema nacional de avaliação desses programas sociais. Temos uma variedade enorme de políticas sociais e nenhuma avaliação desses programas. Muitas vezes sou procurado por candidatos interessados em saber qual seria o melhor projeto de política social. Eu sempre digo: esquece política nova no Brasil. Tudo o que nós não estamos precisando é de políticas novas no País. Nosso problema é outro: precisamos avaliar os programas já existentes e saber qual deles efetivamente está dando resultados. Não faço idéia de como o Congresso Nacional vota anualmente o orçamento dos programas sociais sem saber qual o impacto deles e sua efetividade. Hoje é muito difícil fazer política social no Brasil porque simplesmente não sabemos o que é bom ou ruim, o que funciona e o que não funciona.

ISTOÉ – E qual é a dificuldade para auditar esses programas?
Ricardo Paes de Barros

Dificuldade? Nenhuma. É uma questão de querer fazer. Só que esses estudos não são baratos. As pessoas têm a impressão de que gastar 5% ou 10% do orçamento avaliando talvez não seja vantajoso. O pensamento corrente é o seguinte: não quero gastar um tostão com avaliações porque é claro que esse projeto está dando certo. Se a avaliação não for obrigatória, ninguém faz. Para quem gasta R$ 150 bilhões em programas sociais e a desigualdade social não muda, acho que está na hora de auditar essas políticas sociais. É óbvio que elas não estão funcionando. Nós, do Ipea, estamos nesse momento avaliando 400 creches públicas da cidade do Rio. É um estudo bastante detalhado bancado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID. Já no Maranhão, no município de Santa Inês, estamos diagnosticando a situação social e as políticas sociais. É um tipo de censo, só que não é anônimo. Estamos mapeando a carência com nome e endereço.

ISTOÉ – Se os programas sociais no Brasil não funcionam, então quem nasce pobre aqui morre pobre?
Ricardo Paes de Barros

Não é bem assim. No Brasil, temos um grau de mobilidade social que não é pequeno. Ao contrário do que se pensa, o País não é imóvel. Existem muitos casamentos entre pobres e ricos e muitos trabalhadores por conta própria que dão certo. Isso sem falar nos filhos da classe média que muitas vezes acabam pobres. Eu diria que muitas sociedades européias são muito mais rígidas do que a brasileira.
 

ISTOÉ – O crescimento de lares chefiados por mulheres no Brasil é um sinal de que a sociedade brasileira está mudando?
Ricardo Paes de Barros

As mulheres podem estar contentes e achando ótimo estar assumindo a liderança familiar, mas não podemos negar que essa realidade atrapalha as medidas de pobreza. Famílias chefiadas por mulheres tendem a ter menos adultos. Como as mulheres ganham menos do que os homens, essas famílias são mais pobres. Se as mulheres ganhassem tanto quanto os homens talvez o País estivesse menos pobre.

ISTOÉ – O sr. concorda que a pobreza e a extrema pobreza seriam a causa principal da deterioração moral de uma sociedade?
Ricardo Paes de Barros

De jeito nenhum. Existem sociedades extremamente pobres, mas coesas. O exemplo mais típico é o dos asiáticos. A comunidade asiática em São Paulo, por exemplo, representa 3% da população local e, ao mesmo tempo, representa 15% das matrículas nas universidades públicas. Ninguém pode dizer que eles chegaram ricos ao Brasil. Nos Estados Unidos, os imigrantes mexicanos e asiáticos têm uma estrutura familiar sólida, os filhos deles estão na escola e indo para a frente. Os de Porto Rico são pobres e continuam pobres. A pobreza tem pouco a ver com essa questão. A deterioração moral de uma sociedade tem a ver com a perspectiva de crescimento ou não dos indivíduos.

ISTOÉ – É possível passar alguma mensagem de esperança aos pobres no Brasil?
Ricardo Paes de Barros

Várias crianças de famílias ricas não sabem bem o que querem fazer. Elas são mais preguiçosas e menos motivadas. A possibilidade de elas superarem os pais é limitada. Dei aula durante sete anos nos Estados Unidos, na Universidade de Yale. A direção da escola na época estava preocupada com o grau de desmotivação dos alunos. Fizeram então uma pesquisa e concluíram que aqueles alunos não tinham a menor perspectiva de conseguir salários melhores do que os de seus pais. A perspectiva é de que teriam que dar o maior duro para, no mínimo, empatar com a renda dos pais. Numa família pobre ocorre exatamente o contrário: qualquer coisa que o pobre consegue é altamente valorizada pela família. Eu, por exemplo, vim de uma família de classe média baixa e morei quando pequeno em Vila Valqueire, um bairro humilde da zona norte do Rio. Tudo que eu consegui sempre foi supervalorizado pela minha família. Imagino que outras pessoas que tenham chegado onde eu cheguei considerem isso pouco relevante. É tudo uma questão de perspectiva.

ISTOÉ – O grau de pobreza de um país dificulta sua inserção no mundo globalizado?
Ricardo Paes de Barros

Se o país é pobre, tudo que esse país quer é se globalizar. Para um país pobre e inteligente, não tem nada melhor do que se globalizar. Ao contrário: a globalização é a saída para a pobreza. É evidente que os países ricos vão fazer todo tipo de artimanhas para continuar ricos. Isso faz parte do jogo. Tudo que um país pobre precisa é de mercado, por isso a globalização é bem-vinda. Tudo que um país pobre não pode querer é se isolar.