O que você faria se soubesse que um baile de seu bairro é cenário de fachada para aliciamento sexual de menores, consumo de drogas e tráfico de armas? Chamar a polícia seria a resposta óbvia? Não necessariamente. Desiludidos com a insistente inércia do poder público, moradores da Penha, zona norte do Rio de Janeiro, pediram ajuda à TV Globo há três semanas. A apuração sobre o que acontecia no baile funk promovido pelos traficantes da favela Vila Cruzeiro começou a ser feita pelo jornalista Tim Lopes, 51 anos, autor da premiada reportagem Feira de drogas, exibida no Jornal Nacional no ano passado. No domingo 2, o repórter entrou pela quarta vez na favela com uma câmera oculta para documentar a falta de limites do tráfico. Nunca mais apareceu. Segundo informantes da polícia, Tim Lopes foi torturado e morto pelos traficantes. No dia seguinte, um corpo carbonizado foi encontrado no local. Mais do que o crime, numa cidade já acostumada à truculência dos bandos armados, a morte expôs a dupla tragédia carioca: a descrença na ação do Estado e a ousadia sem limites do poder paralelo erguido pelo narcotráfico.

Quando a população recorre à mídia em busca de justiça, sobrepõe o trabalho jornalístico às esferas oficiais, um grave indício de falência institucional. Bandidos ditam as leis em alguns bairros: determinam se o comércio pode funcionar e se crianças podem ter aulas, provocam apagões, proíbem o uso de determinada cor e fecham o trânsito, como aconteceu em 29 de maio nos acessos ao túnel Santa Bárbara, uma das principais ligações entre as zonas norte e sul. De um lado fica o Palácio Guanabara, sede do governo estadual. Do outro, o Sambódromo, cercado por favelas que entraram em confronto. Para evitar que as balas trocadas por traficantes rivais atingissem os carros, a polícia fechou as vias de acesso ao túnel. Em dez minutos de intenso tiroteio, cinco bairros ficaram engarrafados e pelo menos quatro pessoas, feridas.

Foi uma cena típica de enlatado americano, com um infeliz detalhe: não era cinema. Enquanto a violência consome cidades como o Rio, autoridades federais mantêm uma postura blasé, anunciando planos esporádicos sem priorizar a questão. O quadro não surpreende o juiz Walter Maierovitch, ex-secretário Nacional Antidrogas: “Há uma nova modalidade de crime visível no Rio, que é a Associação Criminosa Especial, caracterizada pelo controle de território social, como ruas, colégios, bairros.” Ele explica que o termo foi criado na legislação italiana em 1992 e defende que se torne lei também no Brasil. Outra característica do crime organizado é a formação de tribunais próprios para julgar, condenar e executar. Tim Lopes, tudo indica, foi réu nesse tribunal. Se o corpo carbonizado encontrado na Vila Cruzeiro for mesmo dele – segundo disse a ISTOÉ uma fonte do governo estadual na quinta-feira 6, as informações iniciais da perícia confirmavam a identidade do repórter – o assassinato teria até a “assinatura” da organização criminosa: a “técnica microondas”, em que a vítima é incinerada em pneus.

Embora o quadro sugira um repeteco do que acontece na Colômbia, país sob as ordens do tráfico e em permanente guerrilha, o antropólogo e cientista político Luis Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança do Rio, diz que a expressão “colombização” não é adequada. Para ele, aqui acontece uma “dinâmica autofágica”, em que negros e pobres matam negros e pobres, maciçamente. No comércio atacadista das drogas, estariam os “empresários que falam inglês, lavam dinheiro e nunca vão para a cadeia”, diz Soares. No varejista é que estão os confrontos, as mortes, prisões e o domínio territorial que Tim Lopes ousou investigar. Mas não é preciso estar num desses territórios dominados para se ver no meio de um tiroteio.
Segundo a Polícia Civil, as balas perdidas matam uma pessoa
a cada seis dias no Rio.

Dominação – Assim vive o carioca agora: a qualquer barulho de bombinha de festa junina, se joga ao chão. Quem está em casa e ouve estampidos se refugia nos corredores. Toda criança conhece a regra número 1 do tiroteio: abaixar-se para fugir da linha de tiro. Mulheres sozinhas evitam dirigir à noite. Carteiros e entregadores de pizza conhecem e obedecem às leis de lugares como a rua Itapiru, no Rio Comprido, zona norte, onde taxista não leva nem busca passageiros à noite por ser “área dominada”. Pior: os colégios são comunicados pelo “poder paralelo” se podem ou não ter aulas. Para o Secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo federal, Paulo Sérgio Pinheiro, essas barbaridades só acontecem porque há a conivência das autoridades. “Não existe poder paralelo no Brasil, mas poder associado”, acredita.

Na quarta-feira 5, quatro escolas próximas ao Morro do Barbante, na Ilha do Governador, zona Norte, fecharam mais cedo por determinação do suposto traficante Wagner da Conceição. Uma aluna, que não quis se identificar, disse que isso é “normal”. Os professores, segundo ela, mandaram “vazar geral” por causa do tiroteio. Na capela do Educandário Nossa Senhora de Nazaré, no Catumbi (zona norte), Ana Luíza do Carmo de Souza, nove anos, foi atingida nas costas por uma dos milhares de balas trocadas pelos traficantes em confronto no Morro da Coroa, perto do colégio. Ela sabe como deve agir nessa situação, mas estava rezando ajoelhada e não teve tempo de se abaixar. Em segundos, a menina amadureceu anos: “Está muito difícil ser criança no Rio.”

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Ser adulto, também. A casa de Olívia Byington, na Gávea, zona sul, registrou uma típica cena carioca. A cantora recebia amigos para um jantar quando começou um tiroteio na rua. Instintivamente, todos se jogaram ao chão, imaginando mais uma batalha na favela da Rocinha, vizinha do luxuoso condomínio de Olívia. “Nosso reflexo de ir para o chão é normal”, diz Olívia. Carioca de Copacabana, a cantora já foi assaltada várias vezes, vive aterrorizada, mas, como todo conterrâneo, sabe que não pode se deixar imobilizar pelo medo. “Vou a São Paulo uma vez por semana e acho que lá está pior. A violência é nacional e é consequência da desigualdade”, conclui. Para se proteger, ela carrega medalhas de Nossa Senhora do Carmo e do Sagrado Coração de Jesus. “E rezo muito mesmo.”

Sobrevivência – É o que tem feito Vanessa Bueno para tentar se livrar de um trauma recente. A atriz passou três dias em poder de sequestradores no fim de maio. Aos 23 anos, ela está modificando os hábitos. Trocou seu Cherokee Sport por um carro simples e não dirige mais à noite. “Estou seguindo os conselhos dos sequestradores”, conta. Vanessa sabe que a pior perda foi a tranquilidade. “Percebi que coisas ruins podem acontecer de repente. Vivo assustada.” Paulistana que mora no Rio, ela também atribui o aumento da violência nessas cidades à miséria: “É desespero mesmo.”

Pessoas que passaram por dramas como Vanessa são candidatas fortes ao stress pós-traumático, segundo o professor de pós-graduação em psicologia da UFRJ Bernard Rangé, especialista em doença do pânico. E mesmo as que não foram protagonistas de situações de risco podem apresentar outras patologias apenas por tomarem conhecimento da realidade e se sentirem sobreviventes. “A reincidência das situações de risco favorece o desenvolvimento de quadro crônico de ansiedade generalizada, que se caracteriza pelo preocupação exagerada consigo e com pessoas queridas”, explica o médico. Quem não consegue conviver bem com essa sensação e acaba distorcendo o quadro a um grau extremo de ameaça e medo passa a vivenciar o fenômeno da catastrofização, como explica o especialista. Rangé diz que a ansiedade generalizada é crescente e a Organização Mundial de Saúde calcula que entre 6% a 8% das pessoas sofrem do mal moderno.

Talvez o cineasta Nei Sroulevich se encaixe no perfil. Embora nunca tenha passado por situação traumatizante, ele radicalizou. “Só saio à noite se for imprescindível, depois das 21h não paro em sinal de trânsito
e meu carro é propositadamente velho”, diz. Nei usa um Monza de 1989 com lataria amassada, pintura desgastada e porta-mala torto. “Mas o motor é de carro zero-quilômetro para arrancar com velocidade. Quando passo, ficam com pena de mim. Não vou engrossar as estatísticas
da violência.”

O cineasta pode escapar, mas os indicadores de criminalidade continuam crescendo. Empresários da noite calculam que a frequência caiu 40% nos últimos meses. Na mesma proporção, delitos comuns assolam a cidade. O primeiro quadrimestre deste ano, em comparação ao do ano passado, registra aumentos assustadores. Roubo de veículos foi o que mais cresceu, 36%. Roubo a transeuntes cresceu 31%; a estabelecimentos comerciais, 27%; e a residências, 9%. A apuração é da Secretaria de Segurança, numa nova medida de levantamento adotada pela governadora Benedita da Silva (PT), que assumiu seu curto mandato de nove meses acusando o antecessor, Anthony Garotinho, de ter “maquiado” os números da violência carioca.

Improviso – A governadora está no cargo há menos de dois meses, pouco tempo para inibir a ação criminosa. Mas dá os primeiros passos, como a implantação de um sistema de vigilância com câmeras de vídeo ou o aumento do contingente policial nas ruas. Benedita está reencaminhando 1.300 policiais desviados de suas funções, e seu secretário de Segurança, Roberto Aguiar, está treinando mais 20 mil para a guarda urbana. Aguiar disse que em dois meses poderá ser visto o resultado da força-tarefa de combate ao crime, uma proposta de união das forças estadual, municipal e federal, cuja eficiência é questionada por especialistas como o coronel José Vicente, coordenador do Instituto Fernand Braudel em São Paulo. “Soluções de improviso não adiantam e a prova está no fracasso de ações como forças-tarefas pós-tragédias.”
Para a juíza Denise Frossard, especialista em crime organizado, o Rio não é mais violento do que outros grandes centros brasileiros, mas a corrupção e a impunidade criam, na cidade, o ambiente ideal para o incentivo à criminalidade. “A vida está mais tranquila para quem vende drogas e trafica armas do que para quem trabalha”, diz. Dentro do espírito carioca, o deputado petista Chico Alencar, morador de Santa Teresa, no Centro, um bairro antes romântico e hoje coalhado de favelas em conflito, resume: “Queremos voltar a contar carneirinhos para
dormir e não tiros.”

Tim Lopes: olhos da justiça

Pior que na guerra

A guerra que invadiu o asfalto e tira o sono da classe média aterroriza há décadas as favelas do Rio. Em qualquer desses locais é possível ouvir histórias de um matiz de violência inacreditável. É assim na comunidade Beira-Rio, na favela de Acari, zona Norte, onde os moradores perderam acesso a serviços essenciais. O posto municipal de saúde não pode ser usado por conta da guerra entre traficantes. “O Comando Vermelho tomou conta das ruas próximas ao posto de Coelho Neto e ameaça estuprar as mulheres das favelas dominadas pelo Terceiro Comando. Nós não podemos entrar”, descreve uma mulher que não quer se identificar. Também as crianças ficaram sem uma de suas raras opções de aprendizado. “Jogaram uma bomba no CIEP Nzinga de Angola e ameaçaram bater nas mulheres que forem lá”, lamenta outra moradora. Por causa disso, é uma das poucas escolas estaduais de ensino médio que tem mais vagas do que alunos. O lazer ficou prejudicado. “Meus três filhos preferem voltar dos bailes funk quando o dia amanhece a correr o risco de andar
de madrugada”, diz.

Os traficantes locais maneiraram desde dezembro, com a instalação de um posto policial. “Antes era ruim, porque eles desfilavam as pistolas e fuzis na frente de nossos filhos. Mas agora também é, porque a PM não nos respeita, bate e prende qualquer um quando dá vontade”, denuncia uma moradora. O diretor do Conselho Cultural e Desportivo de Acari, Jocelino Porto, acha que a pior violência é a falta de projetos sociais. “Dos três mil habitantes da Beira-Rio, 70% estão desempregados. Se não houver curso ou ocupação para eles, a criminalidade vira uma tentação”, explica. Situações como essa acontecem em qualquer favela. No último dia 23, os moradores do morro dos Macacos tiveram de fugir de casa, alarmados com a guerra entre o CV e o TC, para dormir na quadra da escola de samba Vila Isabel. “Foi horrível. Tiros para todos os lados. Tive de fugir”, descreve a portuguesa Hermínia Braga, 79 anos, que está há
25 anos no Brasil. Ela fugiu de Angola com medo da guerra.
Agora, quer deixar o País.


Batizado Arcanjo, ele virou Tim ainda criança e adotou o apelido para sempre. Um nome simples combina mais com o repórter brincalhão e extremamente generoso que nasceu gaúcho e virou carioca aos oito anos. Tim Lopes, 51 anos, é motivo de orgulho para qualquer jornalista por exercer a profissão com seriedade, dedicação e estilo próprio. Infiltrar-se no ambiente de uma reportagem tornou-se corriqueiro em seus 30 anos de profissão. Foi assim no extinto jornal O Repórter, em que se vestiu de operário para denunciar as sofríveis condições de trabalho, e no Jornal do Brasil, onde escreveu histórica reportagem sobre menores abandonados após passar duas noites dormindo nas ruas. Na TV Globo, onde está há seis anos, Tim segue seu estilo: se fantasiou de Papai Noel para matéria do Fantástico e internou-se dois meses em clínica para dependentes químicos para uma reportagem sobre o drama do vício. Ganhou o Prêmio Esso no ano passado usando câmera secreta para mostrar o comércio de drogas no Rio. Ele passou pelos jornais Folha de S.Paulo, O Dia e O Globo e pela revista Placar.

Em apelo emocionante, o filho único, Bruno, 19 anos, clama numa carta que emocionou o País na edição da quinta-feira 6 do Jornal Nacional: “Por favor, soltem meu pai. Deixem que ele continue seu trabalho, o de ajudar as populações carentes, lutar por suas causas. Ele é instrumento do povo junto à sociedade. Deixem que ele dê olhos à Justiça, essa Justiça que anda cega demais.” A mulher, a estilista Alessandra Wagner, se dirige à população: “Se eu pudesse, subia a favela para trazer meu marido de volta. Não posso, peço a quem puder que nos ajude.”

O desaparecimento do jornalista provocou repercussão internacional. Várias entidades divulgaram notas, como a Organização dos Estados Americanos, que pediu urgência nas investigações e punição para
os responsáveis, e a Sociedade Interamericana de Imprensa, que considerou “preocupante o fato de que no Brasil os delinquentes
e o crime organizado estejam definindo os limites da liberdade
de expressão”.


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