Secretário nacional de direitos humanos pede punição aos governadores que não punam a arbitrariedade policial com rigor

Secretário nacional de direitos humanos, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro está fechando as malas para sair de Brasília e dar início a um novo desafio. Na quarta-feira 4, ele foi nomeado pelo secretário geral da ONU para coordenar um amplo estudo sobre a violência contra as crianças em todo o planeta. Para isso, ele terá o auxílio de uma equipe sediada em Genebra, na Suíça. Como trabalho não assusta esse professor, que fez da luta pela defesa dos direitos humanos uma razão de vida, no próximo ano Paulo Sérgio Pinheiro também irá se dedicar ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – organismo que fundou em parceria com Sérgio Adorno em 1987 – e dará aulas na Brown University, em Providence, nos Estados Unidos. Secretário de direitos humanos desde 16 de novembro do ano passado, Pinheiro deixa o governo convencido de que nos últimos oito anos o Brasil avançou significativamente em diversos índices sociais, mas diz que muito há ainda a ser feito no que se refere aos direitos civis. “É preciso dar competência federal para os crimes que violem os direitos humanos”, receita o professor. “Não vejo governadores clamando contra a tortura, por exemplo.” Segundo ele, o presidente Fernando Henrique Cardoso mostrou vontade e sensibilidade política para a causa dos direitos humanos, mas o Congresso Nacional e muitos governadores não agiram da mesma maneira.

Aos 58 anos, Paulo Sérgio Pinheiro deixa o governo otimista.
“Acredito que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem tudo para alcançar resultados bastante significativos na área dos direitos
humanos. Ele é sensível e está cercado de pessoas bastante
qualificadas para produzir avanços. Mas tem de agir logo no primeiro
ano de mandato. Certas coisas nenhum presidente consegue
mudar depois”, recomenda. A seguir, a entrevista que Paulo
Sérgio Pinheiro concedeu a ISTOÉ na segunda-feira 16.

ISTOÉ – Nos últimos oito anos, o governo federal trabalhou para dar visibilidade à questão dos direitos humanos. No entanto, o Brasil continua sendo citado em condições bastante desfavoráveis nos relatórios produzidos por entidades internacionais. Por quê?
Paulo Sérgio Pinheiro

Veja bem, o Brasil aceita o monitoramento externo e interno. Não impomos nenhuma dificuldade. Não ficamos negando críticas nem nos escondemos. Somos um dos 30 países que fizemos convite aberto para os observadores da ONU. Em outros países é preciso pedir licença para isso. Ratificamos praticamente tudo o que de fundamental existe em termos de tratados e convenções de direitos humanos. E nesses oito anos poucos países conseguiram inserir tanto a gramática dos direitos humanos no ordenamento jurídico. Não há país com mais de 100 milhões de habitantes que tenha feito isso.

ISTOÉ – Tudo isso mostra uma vontade política, mas só a vontade política não basta…
Paulo Sérgio Pinheiro

O presidente Fernando Henrique toda vez nos diz: “Bom, vontade política não basta.”

ISTOÉ – Pois é. Então, por que ainda existe tanta violação aos direitos humanos em nosso país?
Paulo Sérgio Pinheiro

Veja bem. Para analisar isso é preciso separar vários conjuntos. Primeiro, direitos políticos nós não temos problema. Não quero comparar com outros países, mas isso nos coloca lá em cima e as organizações internacionais reconhecem isso. Não temos déficit nos direitos políticos, embora o controle do poder econômico ainda seja meio frouxo. Nos direitos econômicos e sociais, nós avançamos. Claro que ainda podemos avançar muito. Temos o problema da concentração de renda e da desigualdade racial de renda que se mantém estável. Entra governo, sai governo, abre, fecha, ditadura, democracia e esse gap entre a renda dos brancos e a renda dos afro-descendentes continua a mesma. Agora, subimos no índice de desenvolvimento humano, é inquestionável que melhoramos escolarização, mortalidade infantil, alfabetização, acesso à saúde. Enfim, houve melhorias. O problema continua no que se refere aos direitos civis.

ISTOÉ – Por quê?
Paulo Sérgio Pinheiro

Porque as reformas do estado no que diz respeito aos direitos civis estão muito ligadas às relações de poder e essas transformações são mais lentas. A Constituição é ótima. O artigo quinto, que trata dos direitos individuais é ótimo e vários artigos foram regulamentados em lei, como o crime de tortura, por exemplo, o que também é bom. Mas o nosso Código Penal continua a ser um código fascista dos anos 40. Há dez anos, os legisladores não votam a reforma do Código Penal. É um código gagá em termos dos outros códigos penais de democracias. Países que tiveram fascismos, como Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, todos têm códigos reformados, centrados nos direitos humanos. O nosso é um código que não dá valor à defesa da vida. É um código centrado no patrimônio. E isso dificulta enormemente o combate à impunidade.

ISTOÉ – E a impunidade é a raiz de nossos males?
Paulo Sérgio Pinheiro

É um de nossos males. O nosso código de processo civil também é um desastre. É um código que favorece todos os artifícios daqueles que têm recursos para ter um advogado. Para se ter um
idéia, faz dez anos e ainda não conseguimos julgar o massacre do Carandiru, apesar de depois de uma campanha enorme o governo
federal ter conseguido transferir a competência para o júri civil,
onde a expectativa da impunidade não é certa. Antes, como você
sabe, no âmbito da Justiça Militar, a impunidade era garantida. O julgamento de Eldorado do Carajás (massacre de sem-terra) é um vexame para o Brasil. Todos foram condenados, mas a máfia dos assassinos está livre. Na semana passada houve outro julgamento grotesco, que absolveu os policiais que mataram quase que à luz
das câmeras aquele assaltante do ônibus no Rio de Janeiro.

ISTOÉ – Esses casos de violência policial não ilustram uma diferença entre o que pretende a cúpula política e o que pratica o Estado por ela comandado? Não parece que os governos não falam a mesma língua?
Paulo Sérgio Pinheiro

O governo federal só fala a sua língua, mas o Congresso Nacional não deu competência federal para os direitos humanos. Então,
o governo federal fica desdentado. Tanto no caso do Carandiru como no de Eldorado do Carajás, se tivessem vindo para a competência federal tenho certeza de que os assassinos já estariam todos julgados. Mas também é preciso considerar que o governo federal não foi, ao longo dos últimos 15, anos uma armada de militantes dos direitos humanos. Existe uma armada Brancaleone em volta do presidente Fernando Henrique. Os ministros, e não ouso distinguir, estão longe de ser um clone de militantes ardorosos dos direitos humanos. Nós só avançamos muito porque temos um presidente que está longe de precisar ser convencido para as questões dos direitos humanos. Isso facilita demais. Quem ocupa o cargo pode facilitar demais.

ISTOÉ – O sr. falou sobre o governo federal. E nos Estados, onde as ouvidorias de polícia não cansam de denunciar abusos e nada muda? E na Polícia Federal, onde também ocorre a tortura?
Paulo Sérgio Pinheiro

Na PF, felizmente, os casos de tortura são mais limitados. Houve esse do Rio e o cadáver precisou ser trazido para o Distrito Federal para que fosse feita uma perícia mais adequada. O IML local deu uma perícia bastante imperfeita, para usar um termo mais diplomático.

ISTOÉ – Então, o foco do problema está nos Estados?
Paulo Sérgio Pinheiro

O problema é que eu não vejo os governadores clamando contra a tortura. Enquanto os governadores não assumirem a posição
de torturou rodou vai continuar a tortura. Não quero nem saber
se isso vem de hábitos da escravidão, se o Brasil não tem cultura
contra a tortura. Estou pouco me lixando. O problema é que o Brasil ratificou a convenção contra a tortura e fim de papo. Pelo SOS Tortura você tem no país cerca de 1.500 casos bem fundamentados de tortura por ano. Não dá para as polícias militares do Rio e de São Paulo
matarem adoidado como continuam matando. O Brasil é o país que
mais comete execuções sumárias por parte de polícias estatais.
Falo das democracias. Não está em moda a polícia matar. Pelo menos
nas democracias, a polícia não mata. Matar como matam as polícias
do Rio e de São Paulo é sinal de incompetência. Não dá para ter democracia consolidada e tortura por parte de polícia. É um coquetel
que não existe. Como dizia o jurista Sobral Pinto, não dá para existir democracia à brasileira. O que existe é peru à brasileira.

ISTOÉ – Por que é assim?
Paulo Sérgio Pinheiro

Não adianta o discurso de que as polícias são mal
formadas, etc. Quando houve a vontade política depois do
Carandiru, diminuiu o número de execuções e a criminalidade
não aumentou. Não existe nenhuma ligação entre tortura e
execução sumária e taxa de criminalidade. Acho que as elites
políticas nos Estados não estão suficientemente sintonizadas
com o governo federal na gestão Fernando Henrique Cardoso.

ISTOÉ – Em razão disso, qual o senhor acha que será o principal desafio do próximo governo?
Paulo Sérgio Pinheiro

O principal e primeiro desafio acho que é o de conseguir passar para a competência federal os crimes de violação dos direitos humanos. Sem isso, meu sucessor vai continuar fazendo o que fiz: protestar com o apoio do presidente e chamar a atenção, fazer
agitação na mídia. Sem passar as violações dos direitos humanos para a competência federal, a secretaria é apenas mais um instrumento incapaz de lidar com o problema. Em segundo lugar é preciso enfrentar para valer algumas questões já postas pela secretaria.

ISTOÉ – Quais?
Paulo Sérgio Pinheiro

Por exemplo: cidadão não pode ter arma e ponto final.
Não tem papo. Uma multinacional não pode controlar o direito
à vida do cidadão brasileiro. As armas não podem mais ser comercializadas e fim. Depois a gente vê o que faz com a questão
da caça e dos colecionadores, mas o certo é que a venda de
armas tem que ser proibida. A vida é o mais importante. Isso é
algo que o presidente precisa fazer logo, aproveitar o poder que
tem no primeiro ano, depois esse poder vai se esvaindo. No
primeiro ano o Lula tem como fazer isso. Depois é preciso colocar condicionalidades ao plano nacional de segurança pública.

ISTOÉ – Como?
Paulo Sérgio Pinheiro

Por exemplo: o Estado que permitiu tortura e morte não tem grana. O governador que permite que sua polícia torture e mate não terá recursos.

ISTOÉ – Mas isso é possível?
Paulo Sérgio Pinheiro

Isso já existe. Alguns governos não puderam receber dinheiro para a reforma de penitenciárias porque estavam  inadimplentes. É preciso usar uma lei de inadimplência: tortura, violência na Febem, falta de ouvidoria, não consegue algumas  verbas e pronto. É preciso que a política de direitos humanos tenha condicionalidade. Se não pegar no bolso, não vai dar resultado.

ISTOÉ – O sr. não acha que o Brasil precisa passar por uma reforma cultural?
Paulo Sérgio Pinheiro

Não. Reforma cultural exige tempo e a sociedade não tem tempo para esperar. O tempo faz a reforma cultural. Temos  é que cumprir os tratados e convenções e para isso não precisa  tempo. Todos são responsáveis, o presidente, os ministros, os juízes, os governadores, o Ministério Público. Há uma cadeia de responsabilidades. Então, não é preciso ter tempo nem maiorias. O Brasil assumiu compromissos e tem que cumprir.

ISTOÉ – Mas para isso não é preciso a maioria do Congresso?
Paulo Sérgio Pinheiro

No Congresso é preciso valer a vontade presidencial Para tanto, o presidente deve usar o recurso da barganha: se não aprovam isso, eu veto aquilo outro.

ISTOÉ – O Lula terá como fazer isso?
Paulo Sérgio Pinheiro

Não tenho bola de cristal, mas o Lula tem como
avançar muito. Ele tem como fazer as reformas necessárias
e sabe quais são elas. Um presidente recém-eleito tem
como fazer isso no primeiro ano de seu governo.

ISTOÉ – O sr. acredita que as entidades de direitos humanos, muitas delas próximas do PT, possam ser cooptadas pelo novo governo?
Paulo Sérgio Pinheiro

Não acredito nisso. As organizações estão muito amadurecidas e acredito que um governo do PT tenha as mesmas convicções que as nossas, pelo menos em termos de direitos  humanos. Acho que as nossas convergências são enormes e haverá uma continuidade da política de direitos humanos no Brasil. O palpite que eu insisto em dar é que as ações mais difíceis sejam  implementadas no primeiro ano de governo. Depois fica difícil.

ISTOÉ – Mas a população ainda trata direitos humanos como direito de bandido.
Paulo Sérgio Pinheiro

Isso está mudando, mas representa a vitória de um pensamento de direita depois da transição. Nós achávamos que isso iria pelo ralo, junto com a ditadura, mas não foi. Mas isso vem acabando. Os direitos humanos já alcançaram um grau excelente de legitimidade. O que continua problemático são os  direitos civis e isso também vai mudar, embora seja difícil.