Sobre uma nostálgica tessitura de violões e acordeões, vozes roucas marcadas pelo forte dialeto do sul da Itália transportam o ouvinte para uma idílica atmosfera mediterrânea. Mas basta uma lida nas letras das canções do álbum Omertà, onuri e sangu – la musica della mafia vol. II (Lei do silêncio, honra e sangue – a música da máfia vol. II) – já nas lojas brasileiras, depois de fazer barulho na Europa e Estados Unidos – para o encantamento se transformar em calafrio. Como o próprio título deixa explícito, trata-se de uma preciosa antologia de canções sobre o mundo fechado daquela entidade, mais especificamente a temida ‘Ndrangheta, máfia calabresa que floresceu nas cidadezinhas montanhosas da província limítrofe da Sicília, uma das mais pobres do país. Difícil imaginar-se saboreando um espaguete caseiro sem engasgar diante de versos sanguinários do tipo: “Aquele que esquecer seus deveres/eu abaterei como um animal” ou “Você me mandou para a prisão/dez anos na cela escura/mas agora retornou a primavera/e estou cavando sua sepultura”.

Preservadas há mais de um século e meio pela tradição oral, estas composições sobre vendetas, conhecidas como canto di malavita (canção da vida do crime) e canto di carcerato (canção da vida na cadeia) vêm sendo recolhidas há mais de 30 anos pelo calabrês Mimmo Siclari, 52 anos, líder da banda Cantori di Malavita, que antes as vendia nas feiras em compilações de fitacassete. A exemplo do álbum anterior Il canto di Malavita (2000), Omertà, onuri e sangu foi banido da Itália, cuja constituição, em seu artigo 21, proíbe o enaltecimento das atividades mafiosas. No entanto, apesar das letras violentas, calcadas num abominável código de honra e respeito, melodias de título duvidoso, como Arretu i sbarri (Atrás das grades) e Muttetta pi nu carogna (Balada para um traidor) conquistam pelo forte sentimento trágico. São músicas de uma época em que até bandidos tinham alma. Musicalmente, seguem a tradição da popular tarantela, de ritmo binário e refrão marcado. Uma das faixas, Nun c’è pirdunu (Não há perdão), traz um verso grudento. “Não há perdão, não há piedade/quando um homem esquece seus deveres com a sociedade”. Entram também lamentos de prisioneiros e cantos fúnebres. Os instrumentos usados são violão, acordeão, tamborim, harpa judaica, violino e zampogna, espécie de gaita-de-foles.

Desde a abertura, mostrando a litania de sinos do Santuário Madonna della Montagna, em Polsi – cidade montanhosa que servia de esconderijo para os foragidos da ‘Ndrangheta –, até a letra final pedindo paz, as 22 faixas do CD enredam o ouvinte pela riqueza musical e pelo seu forte potencial de fabulação. Descrevendo um universo em vias de desaparecimento e enunciando valores que hoje nem a própria máfia adota, originalmente estas músicas eram tocadas por músicos-viajantes para uma população amedrontada, dividida entre o poder usurpador e a proteção de bandidos heróicos. Com o tempo, passou a ser executada apenas em comemorações do batismo de um novo membro, da saída da cadeia de algum capo ou de uma vendeta muito aguardada. Viraram tabu.

Para se ter uma idéia, um dos poucos artistas autorizados a executá-las em público foi Francesco “Ciccio” Scarpelli, vulgo Fred Scotti, executado em 1971 por flertar com a namorada de um mafioso. Pode ser apenas marketing do selo alemão Play it Again Sam, responsável pela ousadia de lançar esta jóia histórica e antropológica. Mas talvez explique a ausência de ficha técnica no CD e a indicação dos cantores apenas pelo primeiro nome numa sucessão de pasquales, ninos, valentinos, paolos e nicolas. A única mulher atende por Saveria e entoa uma aparentemente cândida canção de ninar, Ninna nanna malandrineddu. A certa altura ela canta: “Filho querido, nascido órfão/cresça rápido/torne-se hábil em facas e pistolas/vingue a morte de seu pai!” Sangue mafioso é assim.