Em meio à correria da 11ª Unctad, o secretário
de Estado francês para as Relações Exteriores, o médico Renaud Muselier, concedeu esta entre vista a ISTOÉ no lobby de um hotel em São Paulo, depois de reunir-se com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem elogiou pela iniciativa de enviar tropas ao Haiti. O enviado do presidente Jacques Chirac ao Brasil ainda encontrou-se com o secretário-geral
da Presidência da República, Luiz Dulci, e o mi-
nistro brasileiro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan. Muselier reforçou a aproximação entre os dois países ressaltando a importância de se criar um fundo para o combate à fome e enumerou as propostas a serem levadas à ONU em setembro próximo pelos presidentes Lula e Chirac.

ISTOÉ – O presidente Lula voltou a falar em medidas práticas para o combate à fome. Como vão as negociações?
Renaud Muselier –
A iniciativa do presidente Lula, do presidente Jacques Chirac e do presidente Ricardo Lagos (Chile) de um fundo contra a fome é de extrema importância na luta contra a pobreza. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, os governos da França e do Brasil fizeram algumas propostas que serão levadas
em 20 de setembro a um encontro das Nações Unidas. Precisamos de pouco
mais de US$ 50 bilhões ao ano, uma quantia que não é muito alta. Apenas US$ 3 bilhões são suficientes para a educação da África subsaariana, US$ 2 bilhões para pesquisas para o combate à Aids. Com US$ 1 bilhão, podemos lidar com situações pós-conflitos ou pós-guerras. Mas o importante não é a quantia de dinheiro, mas o envolvimento dos 189 países neste projeto. Há compromissos que foram assumidos para o ano de 2015 e, apesar desta quantia de dinheiro não ser tão grande, corremos o risco de nossos objetivos não serem atingidos.

ISTOÉ – O sr. acredita que os países ricos vão se sujeitar a novos impostos,
como, por exemplo, os que taxam o comércio de armas?
Muselier –
É necessário que a comunidade internacional respeite a sua própria palavra. O primeiro objetivo da França é aumentar as quantias destinadas ao desenvolvimento dos países. A França passou a destinar de 0,4% a 0,7% de seu PIB às nações em desenvolvimento, apesar de todas as dificuldades orçamentárias que enfrenta. Mas precisamos buscar recursos complementares. O presidente Chirac formalizou um grupo de estudos para analisar a taxação do comércio mundial de armas. Fizemos também uma parceria franco-sueca para estudar o gerenciamento de bens públicos mundiais, como a água. A taxação internacional, antes vista como inalcançável, hoje é amplamente reconhecida. Não se trata de mera especulação intelectual, mas de opções necessárias e concebíveis. Os franceses têm também uma gama de proposições, como a taxação sobre o comércio de armamentos. A atenção que se dá à pobreza não é a mesma que se dá na África, na Ásia ou na América do Sul. Isso já diz muito sobre a ineficácia dos sistemas adotados. Tanto Lula como Chirac e Annan estão bastante mobilizados. É difícil tomar certas decisões no plano político e no técnico. Mas não podemos mais dizer que desconhecemos esse assunto. Nossa ação deve ser guiada pelo compromisso e pela obrigatoriedade de oferecer proteção a esses países.

ISTOÉ – A França é um país de tradição bélica e grande produtor de armamentos, como já declarou o próprio presidente Chirac. Como então estaria a favor de uma medida que taxa a venda de armas?
Muselier –
Eu não me lembro de ouvir isso de Chirac. A França é um país importante no cenário mundial, faz parte do G-8 (grupo dos países mais ricos) e é membro do Conselho de Segurança da ONU. É verdade que temos um Exército poderoso, que se impõe por si só. Mas é preciso lembrar que também estamos em segundo lugar na rede diplomática mundial. Seja lá o que foi dito pelo governo francês, a nossa posição é pela manutenção da paz.

ISTOÉ – O governo francês estaria disposto a rever sua política econômica protecionista – cujo principal vetor são os subsídios agrícolas – para favorecer países em desenvolvimento?
Muselier –
O Parlamento Europeu foi eleito no último domingo e a nova comissão terá que estudar novas propostas. A política européia certamente terá que ser adaptada por causa da inserção de novos países. Mas eu deixo essa questão a esses parlamentares. Tudo é possível. Mas isso terá que ser decidido dentro da União Européia (UE).

ISTOÉ – Existem claras dificuldades em um avanço nas negociações do Mercosul com a UE. Como o sr. vê isso?
Muselier –
A discussão entre a UE e o Mercosul é fundamental para sairmos do impasse. Para mim, o que está claro é que, enquanto a UE avançou no sentido de promover o diálogo, não houve um retorno do Mercosul. Vamos ter que recomeçar. O Brasil é um país importante nas negociações com a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a França reconhece sua liderança. O governo francês também reconhece a posição internacional do Brasil perante o Conselho de Segurança. A França, inclusive, é favorável a que o Brasil obtenha uma cadeira permanente no CS.

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ISTOÉ – O fato de o presidente Lula ter sido um declarado opositor à guerra do Iraque fez com que ele se aproximasse do presidente francês Jacques Chirac. Em que instância se dá hoje essa aproximação?
Muselier –
No Iraque, hoje trabalhamos na base da resolução 1546, que foi adotada por unanimidade. O coro de reivindicações levantado pelos chineses, chilenos, alemães, franceses e espanhóis foi mantido e se refere ao entendimento pleno do que é um governo interino no Iraque e à menção explícita às diferentes etapas do processo político em curso. E do resultado desse processo, porque esse governo iraquiano interino que está aí será desfeito. Portanto, necessitamos de uma delimitação mais clara e concreta de quais seriam as responsabilidades do nascente governo iraquiano e da comunidade internacional no Iraque. Necessitamos evidenciar um papel preciso e realista para a ONU. No âmbito pessoal, o presidente Jacques Chirac e o presidente Lula têm um excelente relacionamento, com projetos em comum na política internacional e nas relações bilaterais. Gostaria de lembrar que o governo francês está completamente comprometido com o ano Brasil-França 2005, evento sem precedentes nas relações culturais entre os dois países. Chirac também pretende cortar em 2006 a fita vermelha sobre a ponte que está sendo construída no rio Oiapoque.


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