Ao se transformar no mais novo país independente do planeta no domingo 19, o Timor Leste finalmente pôs fim a 450 anos de domínio estrangeiro sobre o território, mas, sobretudo, a 24 anos de brutal ocupação militar indonésia, que provocou o extermínio de quase um terço da população, cerca de 200 mil pessoas. Segundo o Congresso Judaico americano, o genocídio cometido no Timor é, proporcionalmente, o pior desde o holocausto nazista. Quando o Exército indonésio finalmente se retirou, em outubro de 1999, forçado pela pressão internacional, depois de um plebiscito em que a esmagadora maioria dos timorenses optou pela independência, deixou um país arrasado, queimado, pilhado, destruído em cerca de 90%. Nenhuma escola, nenhum hospital, nem casas ficaram para contar a história. Destruído, mas livre. “Queimado, queimado, mas agora nosso”, diziam na época os timorenses, ao contemplar o país reduzido a cinzas. As Nações Unidas governam o Timor desde novembro de 1999, com um governo transitório comandado pelo diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello.

Enquanto a maioria dos países do Terceiro Mundo que saíram de processos de libertação manteve a luta armada durante anos ou acabou em ditaduras, o Timor vem dando um exemplo de democracia. Mal iniciada na vida política, a jovem nação já demonstra um pluralismo que outros países, como a França, levaram séculos para alcançar. Por exemplo: o governo do Timor e a maioria dos deputados da Assembléia Nacional pertence a um partido político, a Frente Revolucionária do Timor Leste Independente (Fretilin). Já o presidente Xanana Gusmão é de outra agremiação. Ou melhor, oficialmente de nenhuma, até agora.

Aliás, as relações entre Xanana Gusmão e a Fretilin, da qual ele já foi um dos dirigentes, estão péssimas. O presidente eleito e o futuro primeiro-ministro, Mari Alkatiri, nem se falam, a não ser o estritamente necessário. A Fretilin fez de tudo para que a vitória de Xanana fosse a menos esmagadora possível. O Timor é, provavelmente, um caso único no mundo onde um partido que conquistou a maioria das cadeiras no Parlamento não se atreveu a lançar um candidato próprio à Presidência. A final, Xanana ainda é o grande herói nacional, e lançar um candidato contra ele poderia ser politicamente perigoso para a Fretilin.

Xanana e Alkatiri têm concepções diferentes da democracia e do funcionamento das instituições. A Fretilin considera que, com a maioria dos votos, pode governar sozinha. Xanana acha que, mesmo sob a direção da Fretilin, todas as forças políticas devam estar representadas numa espécie de governo de “união nacional”. O primeiro-ministro não quer saber e já ameaçou se demitir. Já Xanana hesitou muito antes de se candidatar à Presidência, como o país inteiro clamava. Ele só registrou a candidatura meia hora antes do encerramento do prazo. Uma verdadeira tortura para vários outros políticos, que estavam com a papelada pronta, mas só entrariam na disputa se Xanana não fosse candidato. Ninguém quer concorrer contra o líder da resistência. O único que se atreveu – mais por dever cívico de evitar que Xanana fosse candidato único, o que diminuiria o brilho da vitória – foi Xavier do Amaral, ex-presidente da efêmera República Democrática do Timor Leste (RDTL), em 1975. Sem a menor ilusão de vencer, Xavier fez uma campanha digna e acabou levando 17% dos votos.

Além de questões pessoais, a relutância de Xanana em se candidatar à Presidência teve motivação política. Em primeiro lugar, ele pretende continuar acima dos partidos e das querelas pessoais. A outra razão – talvez a mais forte – é que o Timor não tem dinheiro. O orçamento do país é de US$ 80 milhões. O resto vem da ajuda internacional, que diminui à medida que a situação de emergência vai acabando. O governo da Fretilin estará diante de um povo que espera que a independência resolva a maior parte dos problemas e atenda a suas demandas, coisa que obviamente não poderá ocorrer a curto prazo. A renda do petróleo,
a grande esperança do país, só
vai entrar daqui a quatro ou
cinco anos.

Pai da pátria – Nesse período, o novo governo certamente sofrerá um grande desgaste. Por isso, em vez de se lançar na luta política, Xanana deixou a Fretilin fazer a Constituição, que dá poderes quase simbólicos ao presidente. Durante os próximos cinco anos, ele pode aparecer como o pai dos timorenses, aquele que ouve as queixas, compreende e cobra o que o povo pede. No final dos cinco anos de mandato, a Fretilin pagará o ônus de ter governado sem recursos. Assim, vencido o prazo para a primeira reforma constitucional, Xanana poderá propor a criação de um sistema presidencialista. Reeleito, terá poderes reais para governar. E, espera-se, dinheiro em caixa.

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O Timor tem hoje 462 reis tradicionais, chamados liurais, ou régulos. Manuel Tilman, advogado, jurista e professor de direito, pode ser considerado o Rei dos Reis, o primus inter pares. Tilman considera que a tradição não é incompatível com a democracia moderna e as idéias de esquerda. Tanto assim que os reis timorenses são eleitos e o “impeachment” existe há mais de mil anos. Segundo Manuel Tilman, Xanana Gusmão encarna todas as qualidades de um liurai, é um rei natural. “Veja como o povo olha para ele. É como se estivesse olhando para um monarca. Isso por causa da tradição. Ele tem em si todas as características de um rei timorense, um liurai. O povo vê nele a estabilidade, a autoridade, um pai, um conselheiro, médico, juiz, alguém que consegue consolar”, garante o liurai.

Não é simples coincidência que, no comício de encerramento da campanha, Xanana tenha subido ao palco vestido como guerreiro tradicional e liurai. O Timor está num processo de retomada das tradições, esmagadas ou deturpadas pelos indonésios, agora revistas e corrigidas pelos novos tempos e os direitos humanos. É a resposta deles à globalização, que consideram inevitável: manter a identidade cultural profunda e tentar tirar partido, descobrindo nichos onde possam concorrer. Mais do que presidente, Xanana vai ser o liurai do Timor Leste. Pelo menos nos próximos cinco anos.


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