Na mira de um crime por encomenda, Denise Frossard diz que tem medo de morrer e lança estudo que mostra o aumento de mulheres no tráfico

Exatamente em 21 de maio, dia em que completou nove anos da histórica sentença na qual a juíza Denise Frossard condenou toda a cúpula do jogo do bicho à prisão máxima por formação de quadrilha (seis anos), o ex-PM Jadir Simeone Duarte prestou depoimento no IV Tribunal do Júri, no Rio de Janeiro, e contou que receberia R$ 1 milhão para executar a juíza. A “encomenda”, feita por Rogério Andrade, deveria ser “entregue” após o assassinato, ocorrido em outubro de 1998, do primo Paulinho de Andrade, filho do capo do bicho carioca Castor de Andrade, um dos condenados por Frossard. A juíza escapou porque Jadir foi preso logo após assassinar Paulinho, comprometendo a execução da segunda parte do plano. Até quando? “Não sei. Mas acho que me tornei defunto caro”, diz ela.

Aposentada há cinco anos, Denise está voltada para trabalhos da filial brasileira da Transparência Internacional – ONG sediada em Berlim, dedicada ao combate à corrupção – e também para sua campanha para deputada federal pelo PSDB e para as pesquisas sobre criminalidade. Ela acaba de concluir o primeiro estudo sobre a participação da mulher no crime organizado no Brasil, revelado a ISTOÉ nesta entrevista. Em cada 100 presidiárias condenadas, 60 estão incursas na Lei dos Tóxicos; entre os homens, a proporção cai para 15 em cada 100 condenados, “o que permite afirmar que o tráfico de drogas é feminino”. A mulher também se destaca, para o mal, nas fraudes contra o INSS, chefiando praticamente todas as quadrilhas. O trabalho será publicado no livro Donne di mafia, pela Universidade de Palermo, na Itália, com autores de vários países.

Aos 50 anos, Denise é hoje uma das mais habilitadas especialistas do Brasil em corrupção e crime organizado, com cursos no FBI e participação em eventos como o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). Candidata a deputada federal, ela explica por que escolheu se filiar ao PSDB: “Me considero uma conservadora esclarecida.” Sua primeira experiência nas urnas foi em 1998, quando concorreu ao Senado pelo PPS. Não ganhou, mas não deixou de sair vitoriosa. Foram 700 mil votos, nada mal para uma estreante cujos gastos de campanha, segundo seus cálculos, não passaram de R$ 35 mil. Uma de suas bandeiras é combater a arrecadação obscura para campanha.

ISTOÉ – Já foram divulgados alguns planos de pessoas interessadas em matá-la. A sra. tem medo?
Denise

É lógico que tenho, sou humana.

ISTOÉ – O ex-PM Jadir Simeone Duarte acaba de confessar em depoimento que foi contratado para matá-la, mas não cumpriu a tarefa porque foi preso antes. A sra. tinha conhecimento desse plano?
Denise

Soube por uma carta escrita por ele mesmo há dois meses. É necessário investigar essa história. Essas coisas assustam qualquer pessoa, mas acho que hoje em dia me matar não é um bom negócio porque a relação custo-benefício não compensa. Sou um cadáver caro.

ISTOÉ – A mulher brasileira está presente no crime organizado?
Denise

Organização criminosa do tipo mafioso, no Brasil, é identificada em dois setores: jogo do bicho e fraudes contra a Previdência. No primeiro caso, a mulher ocupa papel coadjuvante. No segundo, é chefe da maioria das quadrilhas. Na criminalidade de modo geral, ela também se destaca. Entre a população carcerária feminina já condenada, 60% estão incursas na Lei de Tóxicos, por uso ou tráfico. Entre os homens, a proporção cai para 15%, segundo o Ministério da Justiça. Isso permite afirmar que o tráfico de drogas é feminino. A mulher ocupa papel de ponta no mercado varejista, vendendo entorpecentes pelas ruas ou então transportando-as até em viagens internacionais.

ISTOÉ – E no bicho, elas têm poder?
Denise

Confirma-se a regra: onde há crime violento, as mulheres não são protagonistas. Temos poucos casos. Um é o da Arlete, filha do “banqueiro” José Baptista da Costa, o China da Saúde, que disputava poder com o irmão após a morte do pai. Ela desapareceu. Outra presença pode ser constatada na dinastia de Raul Capitão, através de Suely Correia de Mello, julgada e condenada por homicídio. Também integrante da cúpula, José Caruzzo Escafura, o Piruinha, teve 12 filhos e, ao que consta, todos trabalhavam com o pai, inclusive as filhas. As mulheres dos banqueiros não sucederam seus maridos quando eles foram presos. Até porque a cúpula jamais deixou de comandar os negócios, mudando apenas o endereço do bunker, que passou a ser a própria prisão.

ISTOÉ – E nas fraudes contra o INSS, elas ocupam cargos de chefia?
Denise

É isso. Em investigações iniciadas em 1989, foi descoberta uma rede extensa de mulheres de alto nível intelectual, a maioria advogadas e altas funcionárias públicas federais, que formaram uma organização criminosa nacional com aparato operativo e econômico, próxima ao poder político. A organização era e continua sendo quase exclusivamente chefiada por mulheres. Vários esquemas já são conhecidos, como o da advogada Jorgina Maria de Freitas Fernandes, a mais famosa. O esquema Escócia era comandado pelos sócios Ilson Escóssia da Veiga e Cláudia Caetano Bouças. O esquema Jacinéia é modelo de organizações que partiam de altas funcionárias públicas dentro do INSS.

ISTOÉ – O Brasil tem visto muitas denúncias de corrupção envolvendo figuras centrais do governo. Alguns até perderam cargos políticos, mas ninguém foi condenado ou preso. Por quê?
Denise

 Porque o ambiente da investigação não funciona. Está assentado numa polícia ineficiente. Há uma desordem administrativa que parece existir exatamente para fazer a investigação não funcionar – e não funciona mesmo. Os casos de corrupção que chegam ao Judiciário são mínimos. Estamos fazendo, na Transparência Brasil, uma pesquisa nacional sobre o número de inquéritos e denúncias sobre corrupção que chegam ao Judiciário. Começamos pelo Estado do Rio de Janeiro e os números são ínfimos. Entre 1995 e 2000, houve só 250 casos registrados. Tráfico de influência só teve um. Por quê? Porque somos um país sem corrupção? Não é essa a percepção. O que a sociedade percebe é que a corrupção tem aumentado. Em 14 anos de magistratura, não me lembro de ter julgado um caso de corrupção.

ISTOÉ – A sra. diz que a pobreza favorece a corrupção. Não é um paradoxo sua filiação ao PSDB, criticado por não ter agido para alterar a má distribuição de renda no País?
Denise

Temos péssimos indicadores, que nos permitem ranquear o Brasil como um dos piores em distribuição de renda. Mas só podemos ver isso porque o IBGE foi otimizado. Só agora podemos raciocinar em cima de uma política pública porque, antes, não tínhamos nem idéia do que era isso. O governo atual não fez a mudança na distribuição de renda, mas mexeu em vários aspectos importantes para chegar lá, como na legislação, que nos permite hoje ter transparência, além de ter melhorado vários indicadores, como o da mortalidade infantil. A população já entende isso. O primeiro passo foi a consolidação democrática. Eu tinha medo de acordar diante de um golpe e hoje não tenho. Segundo, a estabilidade da moeda. A questão da economia está resolvida; somos pobres, mas está resolvida. Não temos mais pacotes econômicos mirabolantes. As leis de lavagem de dinheiro, improbidade e responsabilidade fiscal significam um avanço. Mas tem muito ainda a ser feito.

ISTOÉ – A sra. está dizendo que o governo não combatia a miséria porque não sabia de sua existência?
Denise

Não estou dizendo isso. Estou dizendo que não tínhamos muita coisa que foi construída. O governo estava focado em dois aspectos: a estabilidade e a consolidação democrática. Embora sejam tarefas importantes, acho que é pouco, poderia ter feito mais. Acredito que o Executivo enfrentou muitas dificuldades. Ninguém lida com esse Congresso com facilidade. Ele vem se depurando, mas, há pouco tempo, era um balcão de negócios.

ISTOÉ – O PT é o partido com o mais contundente discurso contra a corrupção. Não deveria ser o seu destino natural?
Denise

 Sou conferencista do Instituto de Cidadania do PT com muita honra. É um partido que se preocupa com a corrupção, mas não entendo certas atitudes, como ser contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, que moraliza a administração pública. A Marta Suplicy, que eu admiro, comemorou o fato de ter sido autorizada a contratar sem concurso. Isso é um antro de corrupção. No Brasil, tudo o que temos de bom veio do filtro dos partidos. O de tenebroso também. Mas meu perfil não é radical, me considero uma conservadora, porém esclarecida. O PT é mais radical, mas conta com pessoas da maior estatura moral. Lá dentro tenho grandes amigos, mas penso num Estado menos intervencionista e mais equalizador de oportunidades. Não comungo com o PT nesse aspecto. A política econômica do PT é complicada, embora tenha pessoas iluminadas. Certamente no Congresso vamos votar juntos várias vezes. Quero ir para o Congresso exatamente para presidir a Comissão de Constituição e Justiça.

ISTOÉ – No plenário a sra. conviverá lado a lado com alguns ativistas da corrupção. Não será desconfortável?
Denise

Não tenho o menor problema porque já enfrentei isso no Judiciário, tendo ao meu lado juízes comprometidos com o crime organizado e a corrupção, que hoje estão na cadeia.

ISTOÉ – Há como evitar a corrupção na arrecadação de financiamento eleitoral?
Denise

Não, o Brasil ainda não tem instrumentos. Nosso grande problema se chama financiamento de campanha. Hoje ele é público, mas não tem esse nome. De modo geral, os financiadores querem cargos ou favores após as eleições. Eles não dão nada, eles investem. Se a máquina pública é que acaba financiando, então vamos financiar publicamente, passando pelo Orçamento para podermos controlar. Eu prego a transparência. A democracia tem um preço, o deputado tem de ter dinheiro para a campanha, para divulgar suas propostas. O Estado tem de fazer um cálculo e pagar. O primeiro golpe na nossa estrutura política, que achei ótimo, foi a verticalização. Estava todo mundo distraído, sem fazer a reforma política, quando o Judiciário foi consultado e deu um tiro nessa estrutura. Outro golpe foi o fim da candidatura nata dos parlamentares, que acaba com os feudos. São modificações importantes. Como dizia o velho Ulysses Guimarães, a sociedade muda aos saltos, não de uma vez.

ISTOÉ – O que nos leva a pensar que o financiamento público eliminará as doações clandestinas?
Denise

O fato de o financiamento ser público não afasta o espúrio, mas oferece mais subsídios para controle e cobrança. Qualquer um pode fiscalizar, basta olhar nas ruas as campanhas muito ricas, questionar, investigar. O candidato tem direito a determinada quantia e, se fizer uma campanha milionária, terá de explicar.

ISTOÉ – O dinheiro para sua campanha partirá de onde, se não temos financiamento público?
Denise

 Em primeiro lugar, do trabalho de voluntários. Mas hoje há empresários simpáticos à minha candidatura, sérios, que parecem dispostos a colaborar. Ou investir, só que eles são colegas da Transparência Brasil, empresários jovens que querem licitações limpas para que vença o melhor, se interessam por projetos sérios, como a Lei da Responsabilidade Social. Com esse meu projeto, o administrador público terá uma quantia para gastar onde quiser, sem rubricas orçamentárias rígidas. No fim de cada ano será avaliado pelos índices de pobreza, criminalidade, educação, etc. Isso é o que falta no serviço público: avaliação. Em 14 anos como juíza, nunca fui avaliada e acho isso um grande erro. Ao fim de quatro anos, se o administrador não cumprir as metas, ficará inelegível. O que não pode é a sociedade ficar pagando para um homem que quer ser um executivo e não tem a menor condição para isso, seja por corrupção ou ineficiência. Sinto muito.

ISTOÉ – Se essa sua lei já existisse, FHC estaria inelegível?
Denise

Você não pode raciocinar de forma estanque. Esse meu projeto só é possível porque tem isso tudo que precede, inclusive a estabilidade da moeda dando transparência, a Lei da Responsabilidade Fiscal e um sistema financeiro saneado.

ISTOÉ – Por que o combate à impunidade é tão difícil no Brasil?
Denise

Porque o Brasil é anacrônico. Não se investe num ambiente de investigação, não temos planos de carreira no sistema público. Nosso sistema administrativo é muito curioso. Há funcionários que passam a maior parte do tempo defendendo seu DAS, a gratificação por cargo de confiança, em vez de trabalhar. O Brasil é o país do DAS, que é a ingerência política no órgão técnico. O funcionário público sai correndo atrás do deputado para ser indicado para um posto no qual possa ganhar um pouco mais. Quando consegue, ele tem obediência a quem? Ao deputado. Não há no Brasil uma administração pública profissional. Quando muda um governo, muda até o balconista atendente
da delegacia.

ISTOÉ – O governador não deveria então escolher os delegados de polícia?
Denise

Não deveria. A Polícia Militar, que é encarregada só de fiscalizar as ruas, está ligada ao governador, mas com plano de carreira e treinamento. Mas a outra polícia não tem nada a ver com o governador. A Polícia Civil é a que investiga, por isso é chamada de Judiciária. O Executivo não tem nada a ver com a investigação, que é matéria afeta ao Ministério Público, ao ambiente da Justiça. É um caldo enorme
para corrupção.