A história da saída do economista Roberto Giannetti da Fonseca da Câmara de Comércio Exterior (Camex), depois de nove meses no cargo de secretário executivo, pode ter pelo menos duas versões. A primeira: ele sai por vontade pessoal, para novos desafios. Pode voltar à iniciativa privada, onde é assediado, inclusive pela Votorantim, como anunciam os boatos. A segunda, mais verossímel, embora negada: ele sai porque bateu de frente com o ministro do Desenvolvimento, Sérgio Amaral, com quem teve uma convivência complicada. O desfecho dos desentendimentos foi britânico. Giannetti, na véspera de sua saída, dizia que seu relacionamento com o ministro Sérgio Amaral estava “no melhor nível possível”. O ministro, por sua vez, foi menos sutil, mas manteve uma certa compostura: “Apesar da tristeza da saída, temos a alegria da chegada (para o cargo de Giannetti) de Robério Silva.” Explica-se a alegria: Silva já trabalhou no Ministério do Desenvolvimento e atuou com Amaral na Associação dos Países Produtores de Café, em Londres. Nesta entrevista a ISTOÉ, a última que concedeu como representante da Camex, Giannetti certamente vai contrariar ainda mais o seu ex-chefe. Economista mineiro de 52 anos, ele ataca o protecionismo americano, diz que o discurso de defesa do livre comércio feito pelos Estados Unidos e Europa representa hipocrisia e cinismo (porque as barreiras aos produtos brasileiros são mantidas e até intensificadas) e faz um alerta sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelos Estados Unidos: “O Brasil tem de negociar à exaustão, mesmo que não haja um entendimento nem em 2005, como pretendem os Estados Unidos, nem nunca.” O economista acaba de lançar o livro Memórias de um trader (editora IOB-Thomson, 320 págs., R$ 40), em que analisa o comércio exterior brasileiro nas décadas de 70 e 80. Mas ele não vive apenas no mundo árido e conflituoso da economia. Chico Buarque, Edu Lobo e Egberto Gismonti são os compositores preferidos deste compositor de música popular (pretende lançar um CD com as 30 músicas de sua autoria), violonista amador e produtor de cinema. “A música brasileira para mim é uma paixão, deixo para o Walter Salles Jr. meu projeto de colocar o cinema brasileiro no mercado internacional.”

ISTOÉ – A estrutura do Brasil para a exportação é a
mais adequada?
Giannetti –
O Brasil adotou um modelo de atividade de comércio exterior dispersa e todos os ministérios da área econômica têm uma interface com a política de comércio exterior do País. A Camex foi criada em 1995, quando o governo sentiu que faltava uma coordenação do setor. Ela procura cumprir esse papel de coordenar o comércio exterior, mas ainda encontra dificuldade porque a formação de consenso nem sempre é possível, e quando ele não ocorre pode haver uma inércia. As decisões necessárias para a melhoria do comércio exterior não são tomadas. Ficam aguardando uma evolução às vezes longa e exaustiva e surge uma frustração do setor privado pela sensação de que a Camex não é tão eficaz. Há que se refletir se essa estrutura é adequada ou deve ser alterada com a criação de um ministério do comércio exterior. A nossa participação no comércio mundial é pífia. Temos deficiências competitivas graves. Precisamos de um trabalho abrangente para levar o Brasil a uma posição mais relevante no mercado mundial.

ISTOÉ – Os discursos sobre livre comércio são mera retórica?
Giannetti –
Na realidade, o que há hoje é uma grande hipocrisia que tem de ser desmascarada, especialmente nas atitudes dos países desenvolvidos, que ficam querendo criar situações de perdão de dívida, falam em reescalonamento, mas procuram sempre endividar cada vez mais os países em desenvolvimento. Agem sempre como se o perdão de dívida fosse uma benevolência. E não é isso o que nós queremos. O que queremos é acesso ao mercado. Se tivéssemos isso, não precisaríamos nos endividar e depois ficar em situação humilhante de inadimplente, vendo o perdão de dívida como se fosse uma caridade do
mundo desenvolvido.

ISTOÉ – As barreiras comerciais tornam ainda mais tenso o relacionamento entre países ricos e pobres?
Giannetti –
O fosso entre nações pobres e ricas está cada vez maior e se tornando explosivo. Os atentados de 11 de setembro começaram a mostrar que há uma intolerância nesta relação tão desigual, tão assimétrica entre pobres e ricos.

ISTOÉ – A globalização aumentou as barreiras comerciais?
Giannetti –
Os países desenvolvidos estão na contramão da globalização, porque as barreiras comerciais se intensificaram. Isso acontece quando nós não queremos mais falar em perdão de dívida e endividamento excessivo. Se nós tivéssemos acesso ao mercado, estaríamos gerando renda, emprego, aumentando o progresso da nossa economia e com um relacionamento mais equilibrado com os países desenvolvidos.

ISTOÉ – É difícil reverter essa ordem?
Giannetti –
É porque as relações entre ricos e pobres são injustas, discriminatórias e ilegítimas, porque é falso o discurso dos países desenvolvidos de cooperação e livre comércio. Na prática, não há nada disso. Há uma injustiça atroz.

ISTOÉ – Mas americanos acusam o Brasil de inimigo do
livre comércio…
Gianneti –
É uma terrível ironia porque na realidade somos vítimas da retórica falsa dos que se protegem e nos colocam em uma situação de desigualdade no comércio mundial. O Brasil não tem acesso ao mercado dos itens em que é competitivo, como suco de laranja, agricultura e siderurgia. Nosso aço é o mais barato do mundo e está submetido a cotas, impedido de crescer. Tem ainda o mercado de matérias-primas básicas e mesmo algumas indústrias sofrendo restrições ilegítimas. Quando temos sucesso em determinado produto e passamos a incomodar as indústrias do Primeiro Mundo, eles barram nossos produtos com obstáculos tarifários e não tarifários e subsídios ilegais. Estamos no limite da tolerância. Chega de retórica falsa.

ISTOÉ – O governo Bush é mais protecionista do que o
governo Clinton?
Giannetti –
Não há a menor dúvida. É só olhar os últimos atos do governo Bush, absolutamente temerários, como a elevação dos subsídios agrícolas, a salvaguarda do aço, tentativa de dar sobrevivência a uma indústria moribunda. É um protecionismo geriátrico a um setor sem horizonte, mas que eles protegem para estressar os países mais competitivos. Os Estados Unidos e a Europa são de uma hipocrisia fantástica. A Europa não fica atrás porque adota uma proteção agrícola também inaceitável. É uma injustiça econômica e social.

ISTOÉ – A globalização fracassou?
Giannetti –
O fracasso não é da globalização. A atitude dos países ricos é que está contrariando a globalização, que pressupõe maior cooperação entre as nações, abertura dos mercados, e não mais arame farpado para os produtos de países emergentes. Globalização é permitir melhor distribuição de renda, através de uma atitude para um livre comércio. Mas os países ricos querem usufruir a prosperidade e contemplar o empobrecimento e a miséria dos outros.

ISTOÉ – Qual a estratégia para a reunião da Alca no Panamá,
em junho?
Giannetti –
Temos de negociar à exaustão, até por dever de ofício. Não negociar seria uma burrice porque significaria ignorar possibilidades de convencimento e se considerar incapaz de convencer seu interlocutor. Se não houver entendimento, não faz mal. Pelo menos defendemos a nossa posição com rigor. O Brasil tem de negociar mesmo que não haja um entendimento nem em 2005, como pretendem os Estados Unidos, nem nunca. O risco seria o de assinar um acordo em que concederíamos uma série de acessos aos produtores americanos, até em setores como serviços, propriedade intelectual, compras governamentais, e, de outro lado, não teríamos nenhuma concessão.