A farsa do livre comércio levou mais um golpe. Com a sobretaxa de até 30% sobre o aço importado e a aprovação de generosos subsídios aos agricultores americanos, o governo Bush enterrou seu discurso de líder mundial na defesa do livre comércio e abriu a porta da Casa Branca para uma enxurrada de retaliações e críticas, além de provocar um acirramento do sentimento anti-americano em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Fernando Henrique Cardoso não gostou. Diplomaticamente, disse que as restrições que têm surgido nas negociações para a formação da Área de Livre Comércio (Alca) partem dos Estados Unidos, e não dos latino-americanos. Não disse, porém, o que está na ponta da língua de qualquer especialista em comércio exterior: o delírio protecionista do presidente americano paralisa a Alca e empurra os países do Mercosul para a União Européia. O que, num certo sentido, é até positivo: a Alca, pelo comportamento de Bush, pode se transformar num acordo de livre comércio apenas para os Estados Unidos e o Canadá, os mais poderosos do continente americano. O próprio embaixador Clodoaldo Hugueney, negociador-chefe do Itamaraty, criticou o surto americano de protecionismo, admitindo que a negociação da Alca corre o risco de parar.

O Brasil decidirá nas próximas semanas se apresenta uma queixa contra os Estados Unidos à Organização Mundial do Comércio (OMC) por alguns aspectos de sua nova lei de orientação agrícola, a “farm bill”, promulgada no dia 13 de maio por Bush. “Estudamos a possibilidade de submeter vários aspectos desta lei ao exame da OMC, mas temos de debater isso de forma profunda no Brasil”, disse o ministro Celso Lafer à AFP, quinta-feira, no início de uma visita de cinco dias ao Japão. Mas, segundo Lafer, não junto com a Argentina, que vai perder US$ 1,4 bilhão com subsídios agrícolas dos EUA, segundo o chefe de Gabinete de Ministros, Alfredo Atanasof. A informação anterior dizia que os dois países apresentariam uma queixa conjunta.

A farm bill aumenta em cerca de 80% as subvenções diretas do Estado ao setor agrícola (US$ 190 bilhões durante dez anos), em comparação com a legislação anterior, que entrou em vigor em 1996. E o Brasil teme que esse comportamento dos Estados Unidos tenha repercussão na Europa, sobre a forma como a reforma da Política Agrícola Comum será realizada. O ministro não escondeu que o governo brasileiro, que enfrenta eleições presidenciais, está sob forte pressão para uma ação contra os Estados Unidos.

Também no Japão, o ministro Lafer criticou a manifestação nos Estados Unidos de “tendências protecionistas”, que apareceram juntamente com as medidas contra importações de aço. Lafer não está sozinho. O anúncio da assinatura dessa lei agrícola por George W. Bush provocou críticas e desconfiança no mundo inteiro que vão além dos subsídios. Por exemplo: o serviço de notícias do New York Times define a proposta que o presidente americano levou para Moscou na semana passada sob o pretexto de controlar armamentos como um cínico jogo de aparências destinado a encobrir a arriscada e agressiva nova postura nuclear de seu governo.

Desinformado – A inabilidade do presidente americano com questões externas é mais do que preocupante. Contam-se até piadas sobre essa falha no currículo de Bush. “Ele é honesto, corajoso, mas desinformado”, disse o príncipe saudita Abdullah, depois de um encontro de cinco horas com o presidente ocorrido em abril, em seu rancho no Texas. “Esse é um presidente que, dentre todos os presidentes modernos, provavelmente tem o menor currículo em questões de política externa”, disse ao jornal USA Today o senador Chuck Hagel, membro do Comitê de Relações Exteriores. “Ele nem sequer viajou muito e não conhece bem o mundo. Sua experiência internacional restringia-se quase somente às suas relações com o presidente do México, quando era governador do Texas.” Por mais insólito que seja, foram os atentados de 11 de setembro que projetaram George W. Bush no cenário internacional. Ainda assim, com menos luzes do que o prefeito de Nova York na época, Rudolph Giuliani, que soube capitalizar para sua imagem a aura de herói, enquanto Bush hesitava em pôr a mão na massa. Diante dos tantos tropeços nas próprias pernas cometidos pelo presidente americano, há quem diga até que com Clinton o mundo era feliz e não sabia.