Diz a lenda que a terrível esfinge, criatura alada que misturava o corpo de mulher ao de leão, se postava na entrada da cidade de Tebas e propunha um enigma aos moradores. Decifra-me ou te devoro. Quem não soubesse a resposta era aniquilado. O monstro se apresentou com essa mesma ordem a Édipo, o mitológico herói grego, que acertou a adivinhação e despachou o bicho para sempre. Possivelmente, estudiosos de diversas eras também se sentiram devorados pelo enigma formado por uma série de símbolos que compõem os hieróglifos, a escrita sagrada egípcia estabelecida 3.200 anos antes de Cristo. Tinham ânsia de saber o que a civilização que floresceu no vale do rio Nilo queria dizer com aqueles desenhos curiosos de animais, plantas, objetos e seres humanos presentes principalmente em
tumbas e monumentos.

Na história real, quem se transformou no Édipo dos hieróglifos foi o linguista francês Jean-François Champollion, que dominava os mais variados idiomas. Em 1822, ele decifrou o enigma estampado numa peça de basalto, a famosa Pedra de Roseta, que continha três versões de um mesmo texto, sendo que uma delas era em grego, língua que conhecia. A partir desse feito, os especialistas compreenderam a complexa estrutura da escrita egípcia. Com o fim do mistério nascia uma ciência dedicada ao estudo do Egito Antigo, a egiptologia. No mundo científico, a busca por esse passado até hoje rende novidades. No início de maio foi descoberta a 110ª pirâmide, num sítio arqueológico localizado na capital Cairo. Em abril, anunciou-se o encontro de um suposto registro figurativo, o qual sugere que a escrita pode ter nascido no Egito antigo, e não na Mesopotâmia, como se acredita. Os ideogramas egípcios são um conjunto de desenhos estilizados com mais de cinco mil anos de idade. Suspeita-se que as figuras estejam ligadas ao rei Escorpião, personagem que teria existido antes da formação das dinastias egípcias e que ganhou versão “anabolizada” no filme homônimo atualmente em cartaz.

Da pirâmide aos desenhos estilizados, estas notícias percorrem como rastilho de pólvora os círculos internacionais de egiptologia, entre eles o Brasil. Há quem diga que dom Pedro II foi o primeiro egiptólogo do País. Em 1871, o imperador visitou o Egito, para onde voltou em 1876. Registros históricos mostram que o imperador entendia um pouco dos significados da escrita. Há por aqui representantes especializados em hieróglifos. São pessoas capazes de traduzir estelas (espécie de coluna com inscrições) e textos em papiros, uma tarefa nada fácil. Afinal, para dominar a escrita hieroglífica não basta decorar os 700 sinais que compõem a estrutura clássica do idioma – há tantas variações dos símbolos que, se forem somadas, chegam a cinco mil ideogramas. “Muitas palavras mudaram com o tempo. Na egiptologia existem estudiosos para diversas áreas e há quem estude a língua do antigo reino”, diz o arqueólogo carioca Cláudio Prado de Mello, especializado em egiptologia.

Gramática – Como se as evoluções linguísticas já não fossem desafio suficiente para os historiadores, ainda é preciso estar atento às normas gramaticais. Sabe-se que existiam regras para a escrita, que pode ser lida da direita para a esquerda, da esquerda para a direita e de cima para baixo, o que nos soa como um verdadeiro samba do escriba doido. E os textos contêm estruturas como preposição e artigo, e os gêneros masculino ou feminino. “Existe a teoria de um especialista americano que aborda a forma como se usavam os tempos verbais”, conta o historiador curitibano Maurício Schneider, cujo trabalho de doutorado na Universidade de São Paulo trata de tumbas do período saita, iniciado cerca de 600 anos antes de Cristo. Schneider, que coordena um museu itinerante com relíquias egípcias, recorreu à ajuda internacional para trilhar seu caminho na egiptologia. Um de seus dois orientadores é o americano Ray Johnson, da Universidade de Chicago, que acompanha a distância o aprimoramento de suas traduções.

No Brasil, apenas uma instituição possui especialização na linha filológica, voltada para o estudo dos textos. Desde 1989, a Universidade Federal Fluminense, em Niterói, oferece pós-graduação nesse campo, ensinando a escrita do tempo dos faraós. À frente desse trabalho está o historiador Ciro Flamarion Cardoso, autor de Sete olhares sobre a antiguidade. Entre os amantes do Egito Antigo, ele é reverenciado como a maior autoridade no Brasil. Cardoso fez doutorado na França e domina com maestria a língua egípcia antiga. “São pouquíssimos os estudiosos brasileiros que sabem ler os hieróglifos”,
diz Cardoso.

Na seleta turma dos especialistas em escrituras sagradas está a historiadora Margaret Bakos, da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre. “A fascinação pelas criações dos antigos egípcios muitas vezes se dá a partir da escrita”, conta. O seu trabalho, entretanto, vai além dos textos. Ela pretende discutir a egiptomania no País para entender o que leva tantas pessoas a se sentirem atraídas por pirâmides, tem plos e objetos típicos. “Elementos da cultura egípcia foram reutilizados por aqui. Como o obelisco, um símbolo de perpetuidade”, explica. No Brasil atual, a egiptomania continua forte. Prova disso é o sucesso das exposições montadas no País no ano passado. O egiptólogo Antônio Brancaglion, professor do Museu de Arte de São Paulo (Masp), ajudou a montar as exposições Egito Faraônico, da Casa França-Brasil, na Faap, que teve um público de 400 mil pessoas, e da coleção do Museu do Louvre no Masp, exposição vista por 200 mil pessoas. “Os brasileiros estão entre os cinco grupos que mais visitam o Egito”, revela Brancaglion.

Para ser um egiptólogo também é possível trilhar o difícil caminho da arqueologia. Quem não gostaria de bancar o Indiana Jones? Maurício Schneider e Cláudio Prado de Mello participaram de uma escavação francesa. Ambos trabalharam para o egiptólogo francês Alain Zivie no sítio arqueológico de Saqqara, no Sul do Cairo. “Retirava escombros e fazia a reconstrução de sarcófagos”, lembra Schneider, que aproveitou a ocasião para estudar os hieróglifos in loco. Explorar o Egito tinha seus inconvenientes. No verão, o calor e as moscas não deixam ninguém trabalhar em paz, e escavar é realmente uma árdua aventura. Ainda mais porque tudo o que é descoberto passa a ser propriedade da missão, já que não existe uma equipe brasileira. Brancaglion sustenta que um sítio arqueológico nas mãos dos brasileiros colocaria o País em melhor situação. “O Uruguai e a Argentina têm grupos escavando no Egito. Possuem mais tradição em egiptologia”, justifica.

Egito para iniciantes – Uma forma de ampliar esse conhecimento é a criação de cursos para leigos. O engenheiro carioca Júlio Gralha planeja abrir este ano um programa aos que sonham estudar hieróglifos. Ele fez mestrado com Ciro Flamarion Cardoso e integra o Centro de Egiptologia do Clube Naval, no Rio. É por meio da instituição que quer ampliar o círculo de candidatos a especialistas. “Comecei a estudar egiptologia aos 20 anos. Cacei livros para entender o que era verbo, artigo, onde uma palavra se iniciava e terminava”, recorda-se. Gralha agora quer passar esse conhecimento
a outros.

Schneider também se esforça para oferecer alternativas aos que desejam saber mais sobre este intrigante universo. Ele acaba de colocar no ar o site www.egitovirtual.com, com um dicionário virtual do Egito antigo. Coordenador do Instituto de Egiptologia (www.institutodeegiptologia.hpg.com.br), com sede no Rio, Prado de Mello fará uma segunda viagem ao sítio de Saqqara. O francês Alain Zivie o convidou para dar continuidade ao trabalho de reprodução das paredes das tumbas escavadas. Além de egiptólogo, o brasileiro é artista plástico. Ele levará na bagagem pincéis, espátulas e canetas especiais. Seu trabalho deve ser incluído num livro preparado pela equipe francesa. “Talvez eu seja o primeiro brasileiro a ter o nome numa publicação de egiptologia”, afirma. Que os deuses o ajudem nessa missão.