Incrustado no alto de uma serra, o Parque do Zizo é uma reserva ecológica particular que se espalha por 300 hectares da mais pura Mata Atlântica. Com trechos intocados, abriga cachoeiras e grande variedade de bromélias, o alimento preferido do monocarvoeiro, o maior macaco das Américas, uma espécie ameaçada de extinção. Um grupo deles acaba de ser avistado no parque pela bióloga Camila Pianca, que estuda o impacto da presença humana na região. “Há um ano, eu vivia encontrando caçadores e palmiteiros pelas trilhas”, conta Camila, referindo-se aos cortadores da árvore do palmito. “Com a implantação da reserva, eles se afastaram.” Destinado a preservar a vida, o Parque do Zizo foi criado com recursos da indenização do governo a famílias de vítimas do regime militar (1964-1985). Zizo era o apelido do estudante Luiz Fogaça Balboni, morto em setembro de 1969, aos 24 anos, em uma emboscada preparada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, da polícia política paulista.

Durante muito tempo, pouco se falou em Zizo na casa de sua família, na cidade paulista de São Miguel Arcanjo. “A dor era tanta que levei dez anos para colocar o retrato dele na lareira”, lembra sua mãe, Francisca, a dona Quinha. Pelo menos outra década precisou passar para que o resgate da história de Zizo fosse além da imagem em preto-e-branco que dona Quinha mandara emoldurar. O ápice do processo ocorreu em 1998, quando o governo federal reconheceu a responsabilidade do Estado na morte do estudante. Com uma indenização de R$ 124,6 mil, a família teve dificuldade para decidir o destino do dinheiro. “Procurávamos algo que lembrasse o seu desejo de mudar o mundo”, conta Vital, um dos sete irmãos de Zizo.

Numa das muitas conversas sobre o tema, alguém se lembrou da antiga área de caça de Francisco, o Chico, 35 anos, um dos irmãos mais novos de Zizo. Depois de passar boa parte da adolescência e juventude embrenhado nas matas dos arredores da cidade, há oito anos Chico enterrou a espingarda de repetição, calibre 22, que tantas vezes usara para abater animais silvestres. “Foi um processo gradativo de conscientização”, lembra. Junto com os irmãos, ele vinha adquirindo as terras onde circulara antes como caçador, com o intuito de preservá-las. A área, de difícil acesso, fica a apenas 32 quilômetros de São Miguel Arcanjo, no começo do Vale do Ribeira, no entorno do Parque Estadual Carlos Botelho, que soma 37.644 hectares de Mata Atlântica e vai até a divisa de São Paulo com o Paraná.

Decidida a aumentar a extensão das terras a serem preservadas e a criar uma infra-estrutura para alojamento de pesquisadores e ecoturistas, a família Fogaça Balboni investiu os recursos da indenização no projeto ambiental, inaugurado como Parque do Zizo no último dia 30 de janeiro. Entre as pessoas que compareceram à abertura estava o publicitário Manuel Cyrillo, companheiro de Zizo na Ação Libertadora Nacional (ALN), uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro, que defendia a luta armada como alternativa para derrubar o regime militar. “Zizo era muito sereno”, lembra Manuel Cyrillo. “Tivemos umas duas reuniões preparatórias para a ‘expropriação’ de um carro”, conta o publicitário, usando o termo adotado pela guerrilha para roubo.

Na tarde do dia 24 de setembro de 1969, Manuel Cyrillo e Zizo chegaram juntos à alameda Campinas, em São Paulo, para pegar o carro “expropriado”, um Corcel, que haviam deixado estacionado na véspera. O carro seria usado no dia seguinte, na primeira grande ação da qual Zizo participaria: um assalto simultâneo a uma agência do Bradesco e a outra do Unibanco. A operação não chegou a acontecer. Naquela tarde de setembro, acompanhado de sua truculenta equipe, o delegado Fleury esperava por Manuel Cyrillo e Zizo do outro lado da rua, atrás de um muro.

Ao perceberam a emboscada, os dois tentaram fugir. Ainda na alameda Campinas, Zizo foi baleado. Depois de tentar, em vão, socorrer o companheiro, Manuel Cyrillo tomou a direção de um carro que passava pelas imediações e conseguiu escapar do cerco. Refugiou-se em São Sebastião, no litoral paulista, mas acabou preso com a mulher e os três filhos do coordenador-geral das operações armadas da ALN, Virgílio Gomes da Silva. Preso 40 dias antes, Virgílio foi um dos primeiros brasileiros a integrar a relação de 152 desaparecidos políticos do País. Em outro rol tenebroso, entre os mais de 200 mortos pelo regime, encontra-se o estudante Carlos Eduardo Pires Fleury, que coordenava o subgrupo ao qual Zizo se integrara.

Em depoimento à polícia política, obtido sob tortura, em dezembro de 1969, Fleury chegou a mencionar uma atuação de Zizo na Semana da Pátria daquele ano, citando apenas seu codinome na guerrilha – Matias. Tratava-se de um atentado a bomba contra o Mappin, um dos magazines mais requintados da época, que exibia em sua vitrine uma exposição enaltecendo o Exército. Ao lado de outros militantes, Zizo distribuiu panfletos às pessoas que passavam pela região, afastando-as da vitrine a ser atingida. “Foi tudo muito rápido”, recorda o advogado Takao Amano, que teve função similar na ação, mas quase não teve contato com Zizo. “Até por segurança, nós atuávamos compartimentados.”

Durante o pouco tempo em que viveu na clandestinidade – cerca de três meses –, Zizo continuou em contato com a família. Na véspera da emboscada, ele se encontrou com o irmão Aldo. “Zizo deu um azar medonho”, lamenta Aldo. “Mal entrou na clandestinidade e aconteceu aquela tragédia.” Primogênito, Zizo morava com os irmãos Aldo e Vital num apartamento da rua Maria Antônia, centro da efervescência político-estudantil na época. Os três estudavam e trabalhavam – Zizo e Vital atuavam originalmente na Ala Vermelha, uma cisão do Partido Comunista do Brasil. Quando se decidiu pela ALN e pela luta armada, Zizo deixou o apartamento. “Era uma quitinete minúscula, que vivia cheia de gente”, lembra dona Quinha. “Eu queria pernoitar lá, cozinhar para os meninos, mas não havia espaço.”

Depois do episódio da alameda Campinas, Vital, que atuava no setor bancário, escapou da ira do delegado Fleury por estar fora de São Paulo. Aldo, que não era militante, chegou a ser torturado para revelar informações que desconhecia. Ambos foram fundamentais na criação do parque. A homenagem em memória de Zizo, que estudou engenharia na USP, é comemorada entre os que o conheceram na época da militância. “Ele era um menino muito querido”, lembra a assessora sindical Cida Santos, ex-integrante da ALN. Mesmo quem não o conheceu aplaude a forma escolhida pela família para perpetuar sua memória. “A reserva ajuda a garantir a preservação de um importante corredor ecológico”, atesta o diretor do Parque Estadual Carlos Botelho, José Luiz Camargo Maia. Inédita no País, a iniciativa dos Fogaça Balboni representa, na verdade, uma homenagem à vida.